1. China
O mercado cinematográfico da República Popular da China continua em franca expansão, transitando de um sistema de produção com filmes de autor financiados pelo Estado para um sistema onde intervêm privados, para financiar obras que reflectem o gosto popular e pretendem rivalizar com Hollywood. Estes filmes, claro, são bem sucedidos perante o público, pois trazem os ingredientes das grandes produções americanas com a vantagem de serem culturalmente próximos do público a que se destinam. Em 2004, de acordo com dados oficiais, o cinema chinês atingiu uma quota de 55%, em termos de resultados gerais de bilheteira, devido, em grande parte, aos sucessos de «A World without Thieves», «House of Flying Daggers» e «Kung Fu Hustle» (considerado filme chinês ao abrigo dos protocolos que regulam as co-produções com a Região Administrativa Especial de Hong Kong). Naturalmente, as importações de filmes estrangeiros continuam a ser limitadas, pelo que o número não nos impressiona excessivamente. O que pode impressionar é a mudança progressiva para uma verdadeira indústria cinematográfica, independente do financiamento estatal.
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Xu Jinglei e Jiang Wen em «Letter from an Unknown Woman». |
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Dois meses sem sair do ciber-café: «The Last Level» |
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Rene Liu em «A World without Thieves» |
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Zhang Bingjian apresentou «Suffocation» no Teatro Nuovo. (Passe com o rato para "zoom".) |
Apesar da censura da República Popular da China ter vindo a tornar-se mais tolerante, com as autoridades conscientes que uma mão muito pesada é prejudicial para a produção cinematográfica en masse, a necessidade de visto pelas autoridades continua a limitar a expressão dos cineastas. «Zhixi» [«Suffocation»] é um bom exemplo disso. Anunciando-se como "o primeiro filme de horror chinês", tanto o realizador como alguns analistas consideraram que se conseguiu contornar a tola proibição, imposta por Pequim, de representar o sobrenatural no cinema. Mas a verdade é que o filme deixa transparecer fortemente a necessidade de se manter conforme a essas disposições, com uma premissa que envolve o possível assassinato de uma mulher pelo marido, visões das suas perturbações mentais e idas ao psiquiatra. Formalmente, há motivos de interesse, mas a narrativa mais ou menos indefinida não nos convence ser uma opção por parte dos cineastas, tanto quanto uma forma de usar elementos de género, podendo-os negar logo em seguida. A psicanálise como substituição, tipo adoçante, do fantástico.
«Shengdian» [«The Last Level»] também mistura as fantasias de uma mente perturbada com a realidade. Baseado na história real de um homem que passou 40 dias num ciber-café de Wuhan a jogar um RPG online, até ser expulso pelos donos, devido ao mau cheiro que emanava. Os estabelecimentos de acesso à Internet têm licença para operar até à meia-noite, mas a voracidade por parte do público pelo entretenimento online leva a que alguns comerciantes fechem as portas mas continuem a operar 24/24h, como sucede no filme. O desenvolvimento é curioso, mas ficamos aquém de sentir aquilo que se passa na mente do protagonista e que o leva a enclausurar-se durante dois meses. Num momento, vemo-lo no local de trabalho e em casa com a namorada, no outro vemo-lo no ciber-café, a jogar sem parar, alimentando-se de take away, etc. O mais interessante são as histórias paralelas, dos donos do estabelecimento e das personagens que por ali circulam, como um homem que viajou centenas de quilómetros para se encontrar com a pessoa que afirma amar (e que não conhece).
Num registo mais próximo do filme de aventuras clássico de Hollywood, «Tianxia Wu Zei» [«A World without Thieves»] segue-se a «Cell Phone» — apresentado no FEFF do ano passado — na filmografia do "rei das bilheteiras" na China, Feng Xiaogang, que se dedica a um cinema comercial próximo do público local. As especificidades culturais não deverão trazer grandes dificuldades ao público ocidental, até porque Feng admite alguns compromissos, mesmo para uma apreciação pelo público global chinês, evitando regionalismos e dialectos. É um filme de aventuras, com personagens "más" que buscam a redenção via espiritualidade: a personagem de Rene Liu decide emendar-se e deixar a actividade criminal, depois de uma passagem por um mosteiro tibetano. O companheiro (Andy Lau) resiste à ideia e divide-se entre proteger um miúdo ingénuo ou roubar as suas poupanças. O filme cumpre a função de entretenimento, mas falha na execução da acção, com a câmara muito próxima e com uma estética do "blur", que ignora coreografia em prol de um estilo visual onde parece ser mais importante a velocidade do que ver-se o que sucede no ecrã.
Feng Xiaogang co-adaptou o texto original e interpretou o principal papel em «Baba» [«Father»] (1995), um bom drama familiar, dirigido pelo célebre escritor Wang Shuo, filme-surpresa do festival, apresentado depois da versão integral de «Yige he Bage» [«A One and a Eight»] (1984) , dirigido por Zhang Junzhao, fotografado por Zhang Yimou e referenciado como o marco do arranque da Quinta Geração. Os dois filmes foram apresentados na manhã de sábado, no Teatro Visionario, com introdução de Marco Müller, director da Mostra Cinematográfica de Veneza.
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Gu Changwei (à esquerda) dirigiu o filme vencedor do FEFF: «Peacock». |
«Yige Mosheng Nüren de Laixin» [«Letter from an Unknown Woman»] foi um dos títulos mais aplaudidos pelo público do Teatro Nuovo, talvez em parte devido à simpatia pela realizadora Xu Jinglei, presente para introduzir a sua obra, mas também pelo respeito que inspira ao produzir, realizar, adaptar o texto e protagonizar o filme. A base é uma história do austríaco Stefan Zweig, já adaptada para o cinema por Max Ophuls, em 1948. A direcção de Xu é segura, mas não ficámos inteiramente convencidos com o fascínio que a sua personagem desenvolve, desde o início da adolescência, por um homem mais velho (interpretado por Jiang Wen) e não particularmente atraente.
Mais próximo da tradição "arte e ensaio" do cinema chinês, «Kongque» [«Peacock»] ilustra um período da história chinesa, no início dos anos 70, depois da Revolução Cultural (o que, desde logo, evita problemas com o visto dos censores), seguindo três pontos de vista consecutivos de três irmãos. De acordo com Gu Changwei, o filme baseia-se nas suas vivências, ainda que não recorra a personagens reais, mas a composições com base na sua família e vizinhança. A recepção calorosa permitia prever a vitória do filme, que já vinha com o reconhecimento de um Urso de Prata no Festival de Berlim.
[vd. Encontro Cinema Chinês]
Continua
2ª Parte: Hong Kong
5/06/05
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