Numa cidade chinesa, nos anos 40, o temível "Bando do Machado" impõe a sua lei violenta, controlando a polícia e eliminando grupos rivais. A influência do grupo criminoso só deixa de fora locais remotos e pobres, como o Beco da Pocilga, um complexo de apartamentos onde reside um conjunto de personagens peculiares. Sing (Chow) e o amigo (Lam Tse-chung), dois marginais, chegam ao bairro e fazem-se passar por elementos do Machado para tentar obter proveitos, mas não são muito bem sucedidos. Tal vai chamar a atenção dos (verdadeiros) criminosos que, perante a resistência de alguns habitantes, mostram, violentamente, quem é que manda. Os confrontos vão obrigar alguns poderosos mestres de artes marciais, que viviam incógnitos entre os inquilinos do bairro degradado, a revelarem-se.
Apesar de virtualmente desconhecido no Ocidente, Stephen Chow Sing-chi (1) é uma das maiores estrelas na Ásia Oriental e o actual rei do box-office em Hong Kong. «Siu Lam Juk Kao/Shaolin Soccer» (2001) tornou-se o filme de produção local mais lucrativo de sempre e «Kung Fu Hustle» remeteu-o para a segunda posição, atingido os mesmos resultados de bilheteira num período de tempo mais curto.
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Stephen Chow Sing-chi. |
Os filmes mais recentes de Chow têm sido bem sucedidos graças a dois trunfos: um humor tolo e exagerado — "mou lei tau" que encaixa bem na definição de nonsense —, com o qual as audiência da RAE de Hong Kong estão familiarizadas, e sequências de acção elaboradas, reforçadas pela utilização de CGI, que, ainda que não seja da melhor qualidade (os orçamentos locais não se podem comparar com os de Hollywood), não deixam de funcionar devido ao contexto, pouco “sério”, em que são utilizados.
O cinema asiático tem maior facilidade em não se ater à observância das compartimentações de género. «Kung Fu Hustle» leva bem longe esses limites e alguns espectadores poderão ficar surpresos com o modo como se muda de um registo para outro. O filme não permite ficar a matutar nessas transições ou numa qualquer coerência de género, pede apenas à audiência que não se deixe prender com formalismos de tal espécie.
Chow transita, sem qualquer pudor, de um momento da mais extravagante comédia — como a tresloucada perseguição a la Road Runner que é de levar a palma da mão à testa, perante a audácia de levar o disparate tão longe, sem receio de perder parte da audiência —, para a acção, assente em artes marciais tradicionais, optimizadas por fios e CGI, ou para o mais puro sentimentalismo. Neste capítulo, a utilização da actriz Huang Shengyi, na sua estreia em cinema, é curiosa. O papel é um cliché total (e universal), mas a personagem funciona no registo e na dose adequada, ainda que a sua função pareça ser sobretudo a de “lançar mais uma nova estrela”.
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Xing Yu e Chiu Chi-ling. |
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Yuen Qiu. |
Chow recupera nomes conhecidos do cinema de artes marciais de outras décadas, como Leung Siu-lung (a “Besta”) ou Yuen Qiu (a senhoria) e dá-lhes espaço, colocando a sua própria persona na penumbra, durante boa parte do filme. Num dos papéis principais, há um nome muito familiar de todos os que conhecem um pouco do cinema de artes marciais de Hong Kong: Yuen Wah, que partilhou a formação numa escola de Ópera de Pequim, ao lado de Jackie Chan, Sammo Hung Kam-bo e Yuen Biao, mas também de Yuen Qiu, com quem aqui forma o casal proprietário do Beco da Pocilga (2). Hung Kam-bo colabora com “Pat” Yuen Woo-ping na coreografia de acção. Este último faz um pequeno cameo, cheio de ironia: é o burlão que vende os livrecos a miúdos ingénuos, convencendo-os que têm potencial para serem verdadeiros mestres de kung fu.
Tal como em «Shaolin Soccer», desfila perante nós uma caricata galeria de personagens. Chow, comediante-nato, tem olho para escolher secundários e para os caracterizar de uma forma extraordinária. Chow joga com as caricaturas que cria, surpreendendo pelo efeito resultante de ir “contra o tipo”. O maior contraste está patente na figura de Yuen Qiu: sempre com um cigarro na boa, a usar um chinelo ou as cordas vocais como arma, ar desmazelado, aborrecido, camisa de dormir. Eis uma dona de casa que não queremos irritar.
(1) O nome é por vezes romanizado como Chiao, supostamente a versão preferida pelo próprio, mas a pronúncia em cantonês é mais próxima de "tçáu". Romanização oficial para o mandarim (pinyin): Zhou ("tjôu") Xingchi. O caracter do apelido (周) é o mesmo de, por exemplo, Chow Yun-fat.
(2) O grupo dos “Seven Little Fortunes”, alunos do mestre Yu Jim-yuen, não era realmente constituído por sete intérpretes. Bey Logan (“Hong Kong Action Cinema”) diz que seriam “uns 14”. De acordo com a tradição, os alunos adoptavam o nome do mestre, mas nem todos, como Chan ou Hung, o mantiveram. Outro nome famoso que aí se formou é Yuen Kwai (Corey Yuen). |