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Sitges 2007
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4. Ásia/Orient Express

Sitges sempre teve uma oferta muito abrangente no que toca ao cinema da Ásia, conseguindo trazer à Europa muitos dos títulos mais relevantes da produção recente do Japão, Coreia, Hong Kong e outros territórios. Apesar de estar atento às propostas deste ano, acabei por não ver tantos títulos asiáticos como inicialmente previ. Alguns mais interessantes passaram nos primeiros dias ou em horários incompatíveis, de forma que uma boa mão cheia ficou de fora do programa, incluindo os de acção made in Hong Kong.

Mário Dorminski, presidente do Fantasporto, conversa com o realizador Park Chan-uk, à saída da conferência de imprensa de «I'm a Cyborg, but That's OK». António Reis, director-geral do festival português está tapado pela tradutora, Yun Ji-yeong.
O filme deverá estar no Porto em 2008. E Park?
Mesmo que o conjunto de filmes apresentados não se tivesse revelado particularmente forte, os nomes eram-no, à partida, e reflectiam um critério de selecção: Kitano Takeshi, Miike Takashi, Otomo Katsuhiro, Nakata Hideo, Johnnie To Kei-fung, Andrew Lau Wai-keung/Alan Mak Siu-fai, Park Chan-uk, Ryu Seung-wan.

Sitges nunca deixou de apostar em Hong Kong e este ano os filmes foram sobretudo de acção. «Flash Point», «Invisible Target» e «Blood Brothers» foram três que, infelizmente, ficaram para uma próxima oportunidade.

Um dos mais esperados de Hong Kong (em co-produção com a RPC) era «Triangle» («Tit Saam Gok»), uma obra que reuniu três nomes fortes do cinema local: Johnnie To, Ringo Lam Ling-tung e Tsui Hark. Lam, no entanto, não se tem feito notar desde o período áureo do cinema de Hong Kong, anos antes de se dedicar a dirigir filmes de Van Damme, e Tsui tem sido muito irregular, com tendência a obras grandiosas e épicas, que acabam por ter de ser montadas para metade da duração que requeriam para funcionar. To é, de facto, o único que podemos considerar como estando “em forma”, e é também o seu estilo que acaba por sobressair no filme.

«Triangle» foi concebido como uma longa-metragem montada a partir de três segmentos sem quebrar narrativo. Uma história una sem capítulos anunciados. Apesar das mudanças de ritmo, que correspondem a mudanças de cenário e de sequências narrativas, o espectador que esteja a seguir o filme sem se preocupar com as passagens de testemunho, dificilmente notará quando a equipa muda. A intenção seria mesmo essa, mas, no que toca ao estilo, estamos mais perto de um dos filmes que Johnnie To despacha em duas semanas. A sua marca pode ser mais vincada devido a ser ele quem termina «Triangle», gerindo a confusão final, com todas as personagens a confluírem para o mesmo espaço.

«Mad Detective»: Lau Ching-wan.
O ponto de partida do filme envolve três amigos que dão um golpe e se apropriam de uma relíquia valiosa. Juntam-se mais planos para assaltos, polícias, gangsters e infidelidades conjugais (a mulher meio-louca do antiquário é amante do polícia corrupto que quer impedir o golpe, etc.). Se não esperar mais do que um pouco de entretenimento não se desiludirá, mas se for com a expectativa que a reunião destes três nomes pode suscitar, poderá sair da sala a dizer “e depois?”

Ainda To, mas agora ao lado de Wai Ka-fai, com quem volta a partilhar créditos de realização depois de «Running on Karma», de 2003. «Mad Detective» («San Taam»), apresentado na secção Premiere, assenta numa premissa e num recurso formal muito específicos. O centro nevrálgico da história é o detective Bun – interpretado por Lau Ching-wan, um rosto frequente nos primeiros anos da Milkyway e de um novo film noir de Hong Kong –, o qual utiliza unicamente a intuição para desvendar crimes e despreza o pensamento racional.

No mundo de «Mad Detective», um polícia pode continuar a exercer a sua função apesar de ser notoriamente louco. Bun só é despedido quando oferece uma orelha (das suas, cortada in loco) ao chefe, quando este se reforma. Já fora da força policial, um jovem detective pede-lhe ajuda para deslindar um caso complicado que envolve a morte de um polícia pelo próprio colega.

O texto está bem escrito, mas sentimos que se poderia ir um pouco mais além, depurando situações e personagens. Aquilo que mais facilmente recordaremos é o “efeito especial” no budget que To e Wai utilizam para ilustrar a visão das múltiplas personalidades por parte de Bun: cada personalidade, ou traço de personalidade, é representada por um actor. O vilão tem nada menos do que sete (incluindo o habitué de To, Lam Suet, que também não falhou «Triangle»)

O poster de «Confession of Pain»
opõe Tony Leung Chiu-wai
a Kaneshiro Takeshi.
Também apresentado na Premiere, e ainda no âmbito do policial, mas agora sem elementos de fantasia, «Confession of Pain» (Hong Kong/China/Japão), marca a reunião de outra dupla com provas dadas no passado: Lau Wai-keung e Mak Siu-fai, os responsáveis pela célebre trilogia «Infernal Affairs». Os pontos de contacto com a obra anterior estão presentes na estrutura-base do filme, que se alicerça na oposição entre dois homens e na investigação de um para apanhar o outro. Mas Lau e Mak não quiseram ir pelo caminho de mais uma variação de «Infernal Affairs». Três filmes e um remake chegam e sobram.

O elenco de «Confession of Pain» («Seung Sin») é constituido por uma mão cheia de super-estrelas pan-asiáticas. Tony Leung Chiu-wai (originário de Hong Kong) e Kaneshiro Takeshi (Japão/Taiwan), Shu Qi (Taiwan) e Xu Jinglei (China). Tal como em «Infernal Affairs», a mulheres têm uma presença sobretudo decorativa e secundária, ainda que Xu (uma das mais populares actrizes da RPC, também realizadora), como mulher da personagem de Leung, tenha um papel importante (mas acessório).

É um filme de texto, ao qual a acção é subordinada e que, podendo não trazer nada de “original”, se mantém sólido até ao fim, com descobertas de dados novos que fazem sentido e não foram escritas pela necessidade de mostrar "esperteza". Leung, em particular, tem um desempenho notável e credível, na pele de um polícia que está longe de ser bonzinho. Kaneshiro podia fazer um alcoólico melhor.

«A Battle of Wits».
«A Battle of Wits» («Muk Gong»), a concurso na Orient Express, é uma co-produção que envolve as principais indústrias da Ásia Oriental: Hong Kong, China, Japão e Coreia do Sul. O sabor mais vincado no cozinhado é necessariamente o chinês, devido à equipa técnica dominante e ao cenário: a China do tempo das Nações Guerreiras, em 370 A.C., altura que o território estava divido em sete estados, em conflito uns com os outros.

O filme baseia-se numa obra nipónica, sendo o guião também assinado por um japonês, Kubota Sentaro. Idem para a música, pelo célebre Kawai Kenji. Já a acção é de Tung Wai, de Hong Kong. À frente do elenco estão Andy Lau Tak-wah (notoriamente dobrado em mandarim) e o veterano da Coreia do Sul An Seong-gi (surpreendentemente não dobrado).

Trata-se também de um filme onde a acção é colocada numa posição subserviente em relação ao texto. É, na sua essência, uma obra sobre estratégia militar, em certa medida comparável a «Musa» (2001) – este, um filme coreano, com participação da RPC na produção, e também com a presença de An no elenco. A comparação surge porque em ambos os casos estamos perante um grupo de resistentes sitiados, que procuram resistir contra um inimigo mais poderoso e numeroso. «Musa», no entanto, tinha outra força dramática. «Battle of Wits» está bem escrito, mas torna-se demasiado longo e frio, apesar de um final forte.

A Coreia do Sul não teve uma presença muito vincada a nível de cinema fantástico. Os filmes mais notáveis em Sitges foram «The City of Violence», de Ryu Seung-wan, e «I'm a Cyborg, but That's OK», de Park Chan-uk, em parte devido à presença dos realizadores na vila catalã. Sobre os filmes já falámos anteriormente, com base no visionamento dos DVDs. Outro título já visionado e comentado foi «Aachi & Ssipak» (Anima't), exibido na última edição do Fantasporto. Sobram «Tazza», um filme sobre jogo (visto, mas nunca comentado), «The Restless» (que não foi possível ver) e, o único de terror, «Black House».

Dois realizadores coreanos em Sitges: Park Chan-uk (durante a conferência de imprensa)
e Ryu Seung-wan (no jardim do Hotel Meliá Sitges, no decorrer da nossa entrevista).

Apesar de raramente ir com expectativas elevadas para um filme de terror sul-coreano, «Black House» («Geomeun Jip»), conseguiu ficar bem abaixo do esperado. Talvez estivesse mal-disposto, talvez a sessão às 10 da manhã não ajudasse. Kim Kyu [Q] Hyun, alguém com bom gosto e com notáveis conhecimentos de cinema e de cinema de terror, faz um balanço positivo em Koreanfilm.org, apesar de listar uma imensidão de defeitos. Talvez seja um daqueles casos em que o filme nos “perde” no início e depois não há nada a fazer. Em todo o caso, é duvidoso que lhe dê segunda oportunidade. Em caso de dúvida, o leitor poderá considerar dar mais importância a quem percebe mais de cinema, i.e., ao professor Kim.

Quando um homem desce as escadas:
Hwang Jeong-min em «Black House».
Trata-se de um co-produção com o estúdio japonês Kadokawa, com base num romance japonês, da autoria de Yusuke Kishi. Os problemas do filme começam pelo casting. Hwang Jeong-min não parece frágil e sensível o suficiente para reagir como reage a determinadas ameaças; há momentos em que bem poderia ser uma adolescente assustada (estamos a falar da mesma pessoa que interpretou um gangster cruel em «A Bittersweet Life»). Acrescem coisas que nos parecem inverosímeis, como os golpes com seguros, que algumas personagens levam a cabo, as “pequenas” mutilações a que estão dispostas e a facilidade com que as seguradoras pagam (ou então têm uma atitude mesmo muito diversa das que nós conhecemos por cá).

Não somos sequer poupados ao cliché do trauma do passado que é enfrentado no clímax (tédio), mas o pior é toda a luta contra o “mal” 11, que parece ridícula por ser um encadeado de sequências em que o protagonista se livra momentaneamente da ameaça e lhe volta as costas, apenas para ser atacado mais uma vez. São casos em que não entendemos porque é que ele não lhe dá logo cabo do canastro quando está no chão. Parece fácil, mas ele volta-se, choraminga, etc.

Um das grandes expectativas do festival era o regresso de Nakata Hideo ao Japão, para dirigir «Kaidan» (Orient Express), depois de fazer o remake do seu próprio filme nos EUA – ou «The Ring Two» foi apenas uma sequela do remake do «Ring» original? (Pergunta retórica, ninguém se importa). “Kaidan” é uma expressão que significa “história de fantasmas” e não tem relação com o clássico de Kobayashi Masaki, de 1964.

«Kaidan», de Nakata Hideo.
Expectativas, quem precisa delas? Em todo o caso, não ia à espera de ficar estupidificado na cadeira, como em 2002, quando tive a oportunidade de ver «Dark Water» (2002) no Auditori de Sitges. E «Dolls» (2002), de Kitano; mesmo ano, mesma sala, dois japoneses cuja marca não se vai apagar tão cedo. Mas quantos filmes como «Dark Water» pode a mesma pessoa dirigir?

«Kaidan» é um filme de fantasmas aceitável, que dificilmente deixará grandes memórias. Segue um registo clássico, no contexto do cinema japonês do género, com uma introdução formalmente teatralizada, em que os actores se movem sobre cenários pintados.12 Um samurai mata o homem a quem deve dinheiro. Este proclama a vingança e anuncia uma maldição. Anos depois, os filhos de um e de outro vão cruzar-se, iniciando uma história de amor (obviamente) condenada.

A narrativa é desnecessariamente confusa, uma vez que da ameaça da maldição do passado passamos para um fantasma do presente, com o filme a prolongar-se por mais de duas horas, com ciclos característicos da narrativa de terror moderna: sucedem-se várias sequências isoláveis com a morte de uma personagem secundária. É também um caso em que a (breve) utilização de CGI distrai.

Atípico, «Mushishi» (Fantàstic), é assinado por Otomo Katsuhiro, um nome ainda e sempre associado a «Akira» (1987) – algo que não falta no poster internacional –, não só pela ausência de uma obra tão marcante na sua filmografia, como também pela importância do filme no contexto da animação moderna (japonesa, mas não só). Não é a primeira vez que Otomo dirige imagem real – já o havia feito em «World Apartment Horror», em 1991 –, mas permanece ainda ligado à manga: «Mushishi» é baseado no trabalho da mangaka Urashibara Yuki.

Aoi Yu luta contra a escrita tradicional em «Mushishi».
Antes de avaliarmos o filme como “mau” ou “bom”, o mais imediato é ser “difícil”. Tem um ritmo muito próprio (ou não tem ritmo, sequer), e não assenta numa estrutura que vise facilitar a melhor apreensão por parte da audiência. A sua realidade e mitologias particulares, uma espécie de universo alternativo, podem também complicar o processo. Tudo questões mais sentidas, certamente, por uma audiência ocidental, mas mesmo no Japão, «Mushishi» estará longe de ser um filme “comercial”.

«Mushishi» é a história de um “mestres dos insectos”, que vaguea por aldeias e montanhas a ajudar os que são afectados por essas criaturas. Os mushi são entidades etéreas, uma espécie de espíritos, que “infectam” os humanos. O conceito dá azo a imagens de grande beleza, pois o filme integra deslumbrantes paisagens naturais (dizem as notas de produção que a distância percorrida para escolher os cenários equivale a circundar o Japão 15 vezes), com CGIs cuidadas no plano estético, cuja intrusão se reduzirá à ilustração dos próprios mushi. Uma das mais belas sequências com animação digital é aquela em que a actriz Aoi Yu escreve caracteres que saem do seu corpo para o papel e para as paredes do quarto. Calculo que seja uma obra melhor apreciada numa segunda vez. Não recomendado para ver em maratonas.

O comediante Matsumoto Hitoshi
dirige e protagoniza «Dainipponjin».
Um dos mais notáveis títulos em competição, poderia apelidar-se também de “atípico”: «Dainipponjin» (“grande japonês”, literalmente) é mais um gozumentário sobre um super-herói nipónico que combate criaturas gigantes, quais delas a mais estranha.

O protagonista, Daisato (“Dai”, é o mesmo caracter chinês para “grande”) segue uma tradição de família – os seus ascendentes foram os anteriores Dainipponjin –, ao serviço do país. Sempre que é preciso entrar em acção, dirige-se a uma central eléctrica, sendo bombardeado com alta voltagem que provoca o crescimento do seu corpo até à altura de um edifício. Os combates entre monstros são executados em CGI (excepto uma sequência que não se deve revelar ao leitor), sem se pretenderem “realistas”.

«Dainipponjin» funciona muito bem como comédia, mas toma-se muito a sério como documentário, formalmente, durante a maior parte do filme. O início, para quem entre na sala com pouca paciência, pode ser intrigante; uma sequência de entrevistas e excertos da vida banalíssima de Daisato, demorando um pouco até que o vejamos a entrar em acção. A premissa podia esgotar-se, se não houvesse imaginação, mas Matsumoto Hitoshi, que dirige, co-escreve o argumento e interpreta Daisato, gere bem os tempos e vira a mesa numa anarquia total no momento em que o espectador poderia estar a ficar demasiado habituado à realidade do filme.

«Glory to the Filmmaker!», de e com Kitano.
O novo filme de Kitano Takeshi, «Kantoku Banzai» («Glory to the Filmmaker»), foi recebido com grande expectativa e, no final, desiludiu algumas pessoas. Talvez este não seja o último filme do cineasta japonês, mas poderia perfeitamente sê-lo, pelo seu tom e e mensagem implícita. Kitano narra, em primeira pessoa, as dúvidas de um realizador de cinema desejoso de romper com a sua carreira anterior, e com a sua ligação ao cinema de gangsters. Um atrás do outro, experimentará todos os géneros de filmes, descartando a maioria, por narrarem histórias demasiado confortáveis e que não se ajustam aos seus interesses. Assim, durante quase duas desconcertantes horas, Kitano ri-se do cinema japonês, de si mesmo e até do público, pois não existe outra explicação para a absurda história que acaba por contar na parte final do filme. Depois de «Takeshis'»e deste – duas obras tão auto-referenciais, humorísticas e, aparentemente, conclusivas – é uma incógnita até onde o grande “Beat” levará o seu discurso cinematográfico. [JC]

Com «Sukiyaki Western Django» (Fantàstic), Miike Takashi adiciona mais uma entrada à sua longa filmografia de 60 e tal títulos: um western, inspirado nas produções italianas dos anos 60, maxime as assinadas por Sergio Leone e Sergio Corbucci. Corbucci dirigiu «Django» (1966), filme que, como é natural, inspirou o título desta verdadeira obra de fusão, mas a estrutura narrativa essencial deriva de Kurosawa Akira via Sergio Leone. «Sukiyaki Western Django» é, assim, mais um fechar de círculo de influências recíprocas Ocidente<>Oriente: de «Yojimbo» (1961) para «A Fistfull of Dollars» (1964) para «Sukiyaki».

O humor slapstick é servido em doses generosas, começando, no prólogo – em cores berrantes e cenários teatrais –, com Piringo (Tarantino) a discorrer sobre como fazer um bom sukiyaki e a recitar poesia. A acção tem os seus momentos imaginativos, e torna-se intensa no final, com uma participação feminina essencial, a contribuir para a sangria há muito anunciada. «Sukiyaki Western Django» poderia ser um pouco mais curto, mas não permite aborrecimentos. Ou, por outro lado, se o espectador não se irritar nos primeiros cinco minutos dificilmente sairá desiludido. Já se desenvolveu sobre o filme de Miike, aqui.

Poster original de «Tales from Earthsea»
Um nome que chama a atenção de todos os que seguem a animação japonesa com atenção é o de Miyazaki. Mas agora não se fala de um filme novo do realizador de «Nausicaa of the Valley of the Wind» e d' «A Viagem de Chihiro», Miyazaki Hayao, mas sim do filho, Goro. «Tales from Earthsea» («Gedo Senki»), baseado nos livros de Ursula K. Le Guin, é o filme que Miyazaki (sénior) aparentemente não gostaria que o filho tivesse feito; o famoso realizador deu tudo menos apoio ao filho, dizendo publicamente que aquele não tinha experiência para dirigir um filme, havendo até rumores de que terá saído antes do final de uma projecção. 13

Conta-se aqui a história de um mundo num passado mítico, na altura em que um profundo desequilíbrio afecta as forças da natureza. Arren, a personagem central é um jovem que abandona o seu país depois de ter morto o pai – uma forma excelente de arruinar a carreira comercial do filme no Ocidente –, e se torna discípulo do feiticeiro mais poderoso de Terramar. Juntos terão de lutar contra o tipicamente andrógino senhor do mal, Cob, responsável pelo caos, devido ao seu ensejo em alcançar a vida eterna.

Há pontos em comum com a obra de Miyazaki Hayao, cuja obra se desenvolve, em grande parte, a partir do choque entre o homem e a natureza, mas esse tema, também aqui presente, dilui-se no combate entre Bem e Mal, vincadamente expresso em figuras tradicionais de “bons” e “maus”, algo que Miyazaki sénior tem evitado. Falta-lhe também personagens fortes. Tem um design de personagens retro, que me recordou de Miyazaki de meados dos anos 80, como «Laputa» ou «Nausicaa of the Valley of the Wind», mas que derivará do facto de Goro ter usado como fonte de inspiração a manga do pai, “Shuna no Tabi” (“A Viagem de Shuna”), de 1983.14

«Brave Story» é um filme aceitável. Talvez mais do que isso. As paisagens do mundo imaginário que recria são realmente atractivas (potenciadas, além disso, pela espectacular combinação de animação 2D e 3D), as suas personagens apelativas e divertidas, e as respectivas aventuras, certamente emocionantes. Em suma, este filme dirigido por Chigira Koichi, demonstra uma grande imaginação e óptima técnica, que é o que se pede deste tipo de produtos. Mas «Brave Story» não deixa de ser um filme infantil. Não o digo num sentido negativo. Não é por ser pouco exigente com o espectador, ou porque os adultos não possam apreciar a sua fantasia; mas porque uma criança não terá encontrado este mesmo filme tantas vezes como alguém que, com mais alguns anos de experiência de vida, já conheça todas as aventuras produzidas desde «O Feiticeiro de Oz» (1939), até Miyazaki Hayao. Um olhar mais virgem permitirá ver com mais emoção e surpresa este filme que não é particularmente extraordinário. [JC]


Notas finais

Apesar da intensidade com que me dediquei a assistir a projecções de filmes, a extensa selecção do festival obrigou a que muitos filmes tivessem ficado de fora: La Habitación de Fermat», «Redacted», de De Palma; demasiados da Anima't: «Tekkonkinkreet», «Nocturna» e «Vexille»; metade da Orient Express: «14 Amazons», «Blood Brothers», «Dororo», «Eye in the Sky», «Flash Point», «Invisible Target» e «Restless»; alguns da Midnight X-Treme: «The Slit-Mouthed Woman», «Hell's Ground», «Flight of the Living Dead» ou «The Tripper»; os cinco da Mondo Macabro; a sessão especial com o «Grindhouse» original, de Tarantino e Rodriguez. E mais alguns.

No entanto, não aconteceu sentir ter feito más escolhas, no lugar de um dos filmes referidos. Para o ano dificilmente conseguirei ver mais em quantidade, mas espero que a qualidade geral se possa manter.


Agradecimentos: João Monteiro, Pedro Souto, Catarina Ramalho (MOTELx), Jordi Codó (Cinema Kim).



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11 Trata-se apenas de uma palavra para evitar dar pistas quanto ao género, ao número ou à natureza do terror, não de uma abstracção.

12 Mark Schilling: "Nakata fez o que seria considerado um clássico, se tivesse sido feito em 1957".

13 Não gosto de espalhar rumores e não encontrei confirmação escrita, mas quem mo disse costuma saber do que fala.

14 Vd. página sobre a manga em Nausicaa.net.

5/12/07

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