Chan Wing-yan (Yue/Leung) é seleccionado na escola de cadetes da polícia de Hong Kong para ser uma “toupeira” infiltrada no submundo do crime. Lau Kin-ming (Chen/Lau) é um dos homens da tríade de Sam (Tsang), seleccionado para se alistar na polícia. Dez anos depois, Yan quer deixar de ser um agente infiltrado, assumir-se como polícia e dar início a uma vida normal. A pressão leva-o a comportamentos erráticos e violentos e é forçado a frequentar sessões de psicanálise com a Dra. Lee (Chen). O agora Inspector Lau é um respeitado oficial do Gabinete de Crime Organizado e Tríades (OCTB), apesar de continuar a trabalhar para Sam. O sucesso da carreira e a mudança para um novo apartamento com a namorada Mary (Cheng) são factores que o levam a repensar a sua posição entre a lei e o crime. Entretanto, polícias e criminosos começam a caça às toupeiras.
«Infernal Affairs» é um thriller criminal criteriosamente manufacturado, do texto à fotografia, passando pela (excelente) selecção do elenco, com dois actores de primeira linha, acompanhados por dois óptimos secundários (Anthony Wong e Eric Tsang). Na sua essência, a narrativa não nos traz nada de novo; agentes infiltrados, com problemas de integração num e noutro lado da lei, não são raros mesmo fora do cinema de Hong Kong (aqui ocorrem-nos duas interpretações de Chow Yun-fat – em «Laat Sau San Taam/Hard-Boiled», 1992, e «Lung Foo Fung Wan/City on Fire», 1987, esta última adaptada por Tarantino para «Cães Danados/Reservoir Dogs», com Tim Roth na posição de Chow). A relação entre os dois homens, em conflito gerado por motivos profissionais, com espaço para alguma admiração e respeito (mútuo ou não), também é um tema clássico (para não dizer cliché), mas o argumento de Alan Mak e Felix Chong Man-keung adiciona mais algumas camadas, nomeadamente o menos usado ingrediente do tríade infiltrado na polícia. Não sendo raro vermos um polícia corrupto ou a colaborar directamente com os criminosos, é menos frequente que surja como um verdadeiro agente infiltrado e treinado para esse fim.
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O Superintendente Wong é a única ligação de Yan com a polícia.
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Andrew Lau dirigiu um filme que se leva a sério do início ao fim, com o acento tónico no desenvolvimento do texto e no conflito (interno e externo) das suas personagens. Leung e Lau conseguem transmitir-nos as agruras do inferno que calcorreiam no dia-a-dia, ainda que em planos diferentes; o primeiro aproxima-se e revela-se mais ao espectador, enquanto que o Ming de Lau se apresenta algo indefinido até perto do final, quando tem de tomar decisões irrevogáveis. O inferno de Yan é mais óbvio, o seu trabalho no seio da tríade torna-se insuportável, enquanto o de Ming é mais um estado de espírito, um dilema moral, mas também a forte consciência de poder deitar tudo a perder (o filme ilustra uma vida cada vez mais perfeita, com a promoção e o novo apartamento). Tal é reflectido nas interpretações dos dois actores, sendo natural que Leung Chiu-wai se destaque (ganhou o prémio de interpretação masculina nos Hong Kong Film Awards). Mas Lau, num desempenho contido e subtil, transmite satisfatoriamente os constrangimentos da sua personagem e sobretudo a sua indefinição (a milhas dos esgares infindáveis e do overacting indigerível em «Chuen Chik Saai Sau/Fulltime Killer»).
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Wong, com ajuda de Yan, procura encurralar Sam, que, por sua vez, recorre aos préstimos do seu homem no interior do OCTB.
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A «Infernal Affairs» podem-se anotar mais atalhos narrativos e o subdesenvolvimento de certos segmentos do que propriamente falhas. O filme poderia beneficiar com um regresso (mais para o final) à relação entre Ming e Mary e com a apresentação mais desenvolvida de determinadas revelações, que podem parecer tiradas do bolso no momento ideal (sentimos que houve um esforço em não deixar a duração ultrapassar demasiado os 90 minutos da praxe). Por outro lado, há subentendimentos que acabam por funcionar na perfeição, como a relevância da personagem da estreante Elva Hsiao. É certo que as três personagens femininas se podem confundir com “ramos de flores” por terem muito pouco tempo de ecrã, mas May surge pelo tempo suficiente e nos momentos adequados para reforçar o drama. Já os enlaces românticos se vão submeter à vertente thriller. Mary enforma o elemento essencial que pressiona Ming, tal como a Dra. Lee representa, no fundo, o cerne da “vida normal” que Yan almeja e persegue.
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Pelo olhar podemos ter a certeza de que a Dra. Lee é uma excelente profissional (Chen Wai-lam, acima).
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O argumento apresenta-se de forma precisa, rigorosa, quase matemática, pelo que nos vemos constrangidos a usar o termo “reviravolta” para nos referirmos a um par de surpresas ou choques com que somos confrontados. A severidade com que o material é moldado, confere grande credibilidade a esses momentos, que nos surgem como mero acaso ou consequências naturais de uma decisão tomada. Consegue-se também, curiosamente, gerar uma reacção de frustração perante alguns acontecimentos ao mesmo tempo que somos levados a questionar certos conceitos de “final feliz”. Nesse plano, o final alternativo, aparentemente criado para satisfazer as autoridades da RPC, e destinado à estreia nesse território, afere-se com redobrada inadequação.
É preciso notar que não estamos perante um filme de acção, nem Andrew Lau se preocupou particularmente com a gestão dos momentos mais movimentados por entre o diálogo. É uma obra que vive da tensão criada por um jogo de gato e rato onde se torna difícil saber quem assume qual posição no tabuleiro e a atmosfera criada pela montagem, música e cuidada fotografia (de Andrew Lau e Lai Yui-fai; Christopher Doyle, que ganhou o troféu nos HKFA por «Ying Xiong/Hero», trabalhou no filme durante alguns dias e recebeu um crédito de consultor visual), aliada ao excelente elenco, combinam-se para tomar a forma de um grande thriller, fadado a tornar-se uma referência durante os próximos anos (e, aparentemente, mas não surpreendentemente, um filme americano protagonizado por Brad Pitt).
A metáfora do sofrimento ininterrupto é introduzida no texto de abertura, que se refere ao pior dos Oito Infernos – o Inferno Contínuo. É desse conceito que decorre o título original em chinês (wujian dao – via ou caminho infinito, sem fronteiras). Em «Infernal Affairs», cedo se estabelece que a saída dessa via de infindáveis tormentos conduz a um conflito mortal.
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