Doce Tortura/Dalkomhan Insaeng
A Bittersweet Life
달콤한 인생
Realizado por Kim Ji-un [Kim Ji-woon, Kim Jee-woon]
Coreia do Sul, 2005 Cor — 119 min Cor – 119 min. Anamórfico.
Com: Lee Byeong-heon, Kim Yeong-cheol, Shin Min-a, Kim Roe-ha, Hwang Jeong-min, Moon Jeong-hyeok, Kim Hae-gon, Oh Dal-su, Lee Gi-yeong, Jin Gu
drama crime artes-marciais
Poster
Seon-u (Lee) é um "tenente" de uma poderosa família, temido e respeitado. Conduz um bom carro e veste fatos caros, que parece não amarrotar nem quando usa a sua destreza física para colocar fora de combate indivíduos que ameaçam a tranquilidade do hotel onde trabalha. Ao ausentar-se do país durante alguns dias, o patrão Kang (Kim Yeong-cheol) pede-lhe que mantenha a sua jovem namorada, Hui-su (Shin), debaixo de olho. As instruções são claras: se ela o trair, o assunto deve ser resolvido de forma definitiva. Entretanto, o Boss Baek (Hwang), líder de um grupo menor, ameaça tornar-se um sério problema para Seon-u e para a organização a que pertence.

Kim Ji-un é um dos mais reputados realizadores sul-coreanos e os seus filmes têm sido presença regular em festivais internacionais. «A Tale of Two Sisters», Grande Prémio do Fantasporto 2004, será o seu título mais conhecido, mas Kim já havia assinado «The Quiet Family» (1998) e «The Foul King» (2000), também exibidos no Festival Internacional de Cinema do Porto.

Numa das últimas edições da revista britânica Sight and Sound (1), Tony Rayns refere, com pertinência, quão improvável nos pode parecer que um “auteur” como Kim Ji-un, tendo liberdade criativa (2), faça “cinema de género”: «A Tale of Two Sisters» e «The Quiet Family» podem ser referidos como "horror" e ninguém ficará contrariado por dizermos, simplificando, que «The Foul King» é uma "comédia".

Não será preciso dar o exemplo de Kim para contrariar o cliché de que um realizador só trabalha num tipo de cinema direccionado para o grande público na posição de tarefeiro contratado por um estúdio. Não faz sentido fazer corresponder a paixão pelo cinema (de ver ou de fazer) à apreciação exclusiva de filmes de autor, “arte e ensaio”, e à rejeição do que seja concebido com intuitos comerciais — como se o auteur não quisesse que o filme fosse pago por quem dele desfruta.

Sobremesa Kim, Lee
Seon-u (Lee Byeong-heon) é o homem de confiança do Boss Kang (Kim Yeong-cheol, à esquerda na segunda imagem).

Porque é que Kim não faz filmes abstractos e “densos” se o pode fazer, é algo que não nos interessa procurar "compreender", já que disso não depende à nossa maior ou menor estima pela obra. O desejo de trabalhar em “cinema de género” não invalidaria a ausência de marcas autorais, mas se elas existem serão menos vincadas ao nível de conceitos e temas do que na abordagem formal: montagem, utilização da música, composição ou design de cenários (um cínico entediado poderia referir a “obsessão” do realizador com padrões e papel de parede).

Partindo de uma base narrativa convencional, «A Bittersweet Life» dá ênfase à relação entre as personagens, onde se procura ir um pouco para lá do "simples" filme de gangsters. Mais do que um acto (qualquer acto) que motive uma vingança e sirva de justificação à acção e a actos de violência para entretenimento, «Dolkomhan Insaeng» ganha fôlego com aquilo que intriga duas das personagens principais: "Porquê?"

Perseguição Shin, Lee
Seon-u tem por missão vigiar a jovem namorada de Kang, Hui-su (Shin Min-a).

A determinada altura, a resposta já não é essencial para o bom ou mau término de um confronto sangrento, que duas posições opostas insistem em levar até ao fim; ultrapassou-se uma fronteira, e a resposta continua a ser desejada, de um e de outro lado, mas a clarificação já não é suficiente para alterar o destino dos envolvidos. Há uma dualidade de intenções por parte do realizador: o desejo de explorar os dilemas internos das personagens, face a injustiças e crueldades da vida, e o intento de realizar uma obra estilizada e meritória de apreço por parte das audiências do cinema de género.

Kim, que em entrevista publicada no número da Sight and Sound acima citado, assume influências de Jean-Pierre Melville, inicia o filme com uma parábola budista que Tony Rayns relembra ser a similar à que abre «Ashes of Time» (1994), de Wong Kar-wai (3). Os filmes não são formalmente comparáveis e o de Wong está muito menos preocupado com a linguagem do filme de género (no caso, wuxia), mas regista-se esta semelhança conceptual. O “momento decisivo”, um conceito frequente no cinema do realizador chinês, é ilustrado numa frase do Boss Kang: “podes fazer 100 coisas bem, mas um só erro pode destruir tudo”.

Negócio Pt1 Negócio Pt2
Seon-u negoceia com traficantes de armas (Oh Dal-su, rosto familiar dos filmes de Park Chan-uk, à esquerda).

O desenrolar da acção exporá uma forte ironia do título original do filme, reforçada pelas palavras de Baek: “a vida é injusta”, diz, em jeito de provocação, mas ilustrando a fragilidade de tudo o que tomamos por seguro. Ainda que o inglês soe bem e introduza um interessante contraste (“agridoce”), o coreano está despojado do “acre”. É, afinal, o equivalente em coreano ao nome do bar, segunda casa do protagonista e verdadeiro símbolo do seu estatuto: “vida doce”, La Dolce Vita.

A imagem de um movimento que existe apenas no coração ou na alma transmite uma certa beleza poética, ainda que possa soar a cliché, mas o realizador não é contido na ilustração do violento percurso de vingança do protagonista. Há quem saia da sala a dizer que “não era preciso” mostrar tanto sangue, mas tudo é relativo (uma bala não se vaporiza em contacto com uma aura imaginária que envolve os corpos; provoca danos sérios).

Hwang, Lee Lee, Kim
De um momento para o outro, Seon-u vê-se rodeado de inimigos mortais.

Kim reforça a intensidade de combates corpo a corpo, brutais, improvisados com o que está à mão, explorando novas formas de capturar o dinamismo da acção, como quando fixa a câmara ao corpo de um lutador. Ao invés de uma tomada de ponto de vista, do agressor ou do agredido, cujo “dinamismo” se consubstanciaria num trepidar violento da imagem, a câmara é colocada de forma a captar essa dinâmica, evitando, ao mesmo tempo, “falsear” a acção (usa a câmara para o registo e não como efeito em si).

Há espaço para algum humor no seio de um sólido film noir, com a entrada em cena de um gang com ligações à Rússia, que conduz a uma das cenas de maior tensão do filme, enquanto se espera por um telefonema que dita a concretização de um negócio ou a morte de um dos contraentes. Um humor mais “subtil” é exemplificado logo no final dos créditos iniciais, quando Seon-u, em busca de apoio, entra numa sala onde estão três grandalhões tatuados, mas sai com o seu homem de confiança, Min-gi (Jin Gu), de estatura modesta.

Numa altura em que «A Bittersweet Life» estreia em Portugal com apenas uma cópia — e com um título português não muito feliz, pois parece sugerir uma comédia S&M —, não podemos deixar de esperar uma boa recepção por parte do público, que vá possibilitando a manutenção da diversidade do nosso panorama nacional.

São vários os factores que ditam o sucesso comercial de um filme: número de cópias, salas onde estreia vs. tipo de público que estará mais interessado, a divulgação, o word-of-mouth, ou até, quem sabe, a recepção crítica. Esperemos que se associe cada vez menos nacionalidade a género e que o público de uma obra como esta não seja reduzido aos que "já viram" em DVD de importação (ou por meios menos lícitos), uma vez que os filmes de cinematografias menos presentes no nosso mercado só continuarão a estrear se forem sustentáveis financeiramente.

Existem outras sequências inspiradas, que renegam desenlaces tradicionais. O tiroteio no lounge, que poderá remeter para uma matança num saloon, no contexto de um western, inclui uma resolução “anti-dramática” que nos fez recordar um momento similar no «Time and Tide» (2001), de Tsui Hark (4); ao mesmo tempo que se abraça a linguagem do género, afirma-se que timings perfeitos nas movimentações de inimigos mortais — como o dispara-esconde à vez, a pausa mútua para recarregar, etc. — só existem dentro da realidade própria do cinema.

Sendo um grande filme de género, «A Bittersweet Life» sustém um pendor dramático (e filosófico) efectivo, assente na melancolia decorrente da irrealização dos desejos mais profundos da personagem. Imagem da indiferença e da auto-confiança, não transmite o que tem dentro de si, nem ele próprio o entende. Só depois da vida que tinha por perfeita ser posta em causa, quando poderá ser tarde demais, o conseguirá fazer. (Anote-se que há uma diferença substancial na concretização das motivações do protagonista entre a versão de cinema e o director's cut.)

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Notas comparativas com o director's cut » (spoilers)

1) Sight and Sound, Fevereiro 2006, pp. 46.

2) Não obstante, a versão de cinema de «A Bittersweet Life» difere ligeiramente do director's cut disponível em DVD na Coreia do Sul, com uma diferença que poderá sugerir pressão do estúdio para tornar motivações mais transparentes. Ver comparação (contém spoilers).

3) Um dos nossos favoritos. O texto em causa, aliás, está no fundo da página de entrada do site desde a sua criação: “O vento não sopra, as bandeiras também estão inertes; é o próprio coração do Homem que está em tumulto”. A tradução poderia ser diversa, no original o verbo é sempre “mover”, mas é natural ser adaptado em cada oração (“o vento não se mexe”, seria um péssimo começo).

4) Não será um spoiler, mas leia com precaução; referimo-nos ao “impasse mexicano” (mexican stand-off) celebrizado no Ocidente por Tarantino, que Tsui despreza, como que a dizer “isto não é um filme de John Woo”, cortando diálogos cool com um tiro súbito por parte do interveniente que não está para essas coisas.

Estreia nacional (Ecofilmes/Vitória Filme) a 2 de Março de 2006. O DVD sul-coreano (CJ Entertainment, R3) é uma edição dupla com um digipak dentro de uma slipcase de cartão rígido. O disco de extras (sem legendas) contém entrevistas, making of, cenas apagadas e alternativas, passagem por Cannes, trailers, etc.

publicado online em 4/3/06

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