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Sitges 2007
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3. Novas Visões

Sem que nos afastemos muito do fantástico, a secção Noves Visions junta um conjunto de propostas tematica e formalmente arrojadas, filmes que, pelas suas características, mais dificilmente encontrarão uma carreira a nível de exibição comercial – para lá de uma ou outra sala de arte e ensaio que queira pegar neles.

Gozumentário 1: «Nos Amis les Terriens». Sem graça.
Da meia dúzia de filmes que vi integrados nesta secção, apenas um foi uma com-ple-ta perda de tempo: «Nos Amis les Terriens», um disparate total vindo da França, cujo conceito se esgota em menos de cinco minutos. Aliás, o conceito esgota-se na sinopse. OK, exagero, poderia sair dali algo com interesse com outra visão para lá do espirituoso light, tão óbvio, demasiado óbvio, que até dói. Um dos muito raros casos em que consultei as horas e o programa para confirmar que não demoraria a terminar. Na altura não saí porque me ocorreu que não havia nada lá fora e a noite estava um pouco fria.

Mas não deixemos de dar algum espaço à sinopse desde documentário falso sem ponta de graça. O filme é feito pela perspectiva de extraterrestres que observam a terra e raptam humanos para estudo, colocam-nos em cativeiro e tiram conclusões idiotas. O nível do humor “espirituoso” nunca vai muito mais longe do que o comentário ao facto dos humanos – que estranhos e exóticos, etc. – passarem horas “dentro de caixas de metal com rodas”, sobre uma imagem de carros em hora de ponta.

A parte mais interessante poderia ser a observação em cativeiro, estilo reality show, onde se adiciona alguma marotice. Material para sexploitation não aproveitado, preferindo levar-se a sério – o que é irónico, tendo em conta que é suposto ter graça. Mas não tem nenhuma. Zero de humor.

Gozumentário 2: «American Zombie»,
uma co-produção EUA/Coreia do Sul, dirigida por Grace Lee.
O outro gozumentário nesta secção foi «American Zombie», uma co-produção EUA/Coreia do Sul, realizado por Grace Lee, cineasta norte-americana de ascendência coreana, que se coloca novamente à frente da câmara, depois de «The Grace Lee Project» (2005), onde enquadrava a mulher asiático-americana média (o seu nome é uma espécie de cliché geracional).

Em «American Zombie» Lee co-dirige um documentário sobre zombies normais – artistas, operários, activistas – com John Soloman, e uma das dinâmicas do filme é o conflito entre a visão social dela e a visão Fulci dele. Solomon é fonte de alguns momentos de humor ao pretender provar, movido pelos seus preconceitos, que os zombies, que vivem entre nós como quaisquer outras pessoas banais e chatas, passam-se por hippies vegetarianos, mas escondem carne humana no frigorífico. O filme é convincente q.b. e o humor é quase sempre certeiro. A revelação porque é que os cristãos aceitam bem os zombies provocou a histeria na audiência.

Lucky Mckee em «Roman»,
de Angela 'May' Bettis.
Dois registos arte e ensaio distintos, com «Roman» (EUA) e «The Ugly Swans» («Gadkie Lebedi», Rússia). Este último comparado algures a Andrei Tarkovski – porque é russo, ficção científica sem “entretenimento”, mas também porque se baseia num livro de Arkadi e Boris Strugatski, criadores da obra original (e do guião), onde assentou «Stalker» (1979). O filme tem uma abordagem interessante sobre as relações entre os humanos e uma raça que se supõe de origem extra-terrestre, mas não há aqui a “acção” do cinema comercial ou sequer intriga – tão só maquinação política. Não é, por outro lado, uma obra que se digira da melhor forma num festival, pleno de maratonas e noites mal dormidas.

«Roman» é apresentado como o reverso de «May» (2002) de Lucky McKee, com Angela Bettis no principal papel. Cinco anos depois, é Bettis que dirige McKee, numa personagem não totalmente distinta da May do primeiro filme: um solitário, com problemas de socialização, rodeado de uma aura de morbidez. Desconheço estudos, mas pelos filmes talvez se possa discutir a relação entre a solidão e corpos decepados? Hoje sinto-me só, vou convidar a miúda do 3º esquerdo para um chá de camomila e depois cortá-la em pedaços. Angela Bettis esteve em Sitges com a actriz Angela Rose e membros da equipa técnica, tendo participado num Q&A depois da projecção na Tramuntana.

A equipa de «Roman»: com a realizadora Angela Bettis e a actriz Nectar Rose,
estavam a directora artística (que falava bom espanhol e serviu de tradutora) e um produtor.
«Roman», cujo texto é também de McKee, tem uma fracção do orçamento de «May». Rodado em vídeo e mais limitado cenograficamente, não deixa de contar a história que tem para contar, sobre isolamento, amor e morte. Sobretudo morte, para onde os dois filmes caminham invariavelmente. Aqui, acrescenta-se também uma visão da arte sobre a morte. Rose comentaria, com humor, que é curioso que a personagem tenha um fascínio com a morte não sendo uma "gótica".

«The Swordbearer».
Um pouco mais afastado da “arte e ensaio” que tende a caracterizar a Noves Visions, «The Sword Bearer» («Mechenosets») tem algo de novela gráfica moderna, centrando-se em Sacha, um (anti-)“super-herói” em fuga da Lei e de uma vingança privada. A personagem tem um poder fantástico que se vai revelando ao longo do filme. No início, sabemos que tem uma capacidade sobre-humana para destruir e matar, mas só mais tarde viremos a saber como. O poder que detém rasga-lhe a alma e leva-o a cometer crimes. Os que se atravessam no seu caminho são mortos e a polícia tem dificuldade em mantê-lo preso. Onde está a arma do crime, afinal?

Além de um filme negro e violento – com algumas cenas de gore retorcidas (Sitges foi mesmo rico nisso, até em filmes russos) – «The Sword Bearer» é também, a partir de certa altura, uma história de amor. Deixa de ser apenas o “herói” contra o mundo, para passar a estar algo mais em causa. Uma razão para parar de bocejar, caro leitor (masculino, heterossexual), poderia ser Chulpan Khamatova. Mas a mais importante é a própria coerência interna do filme, que não suspende a acção por causa do romance. O clímax, talvez grandioso demais (e a pedir efeitos especiais um pouco para lá do orçamento), não deixa de ser um bom ponto final dramático.

"Marylin" e "Michael" em «Mister Lonely».
Para terminar o capítulo, Harmony Korine e o seu «Mister Lonely» (EUA), história de um imitador americano de Michael Jackson (Diego Luna) a viver em Paris, onde conhece uma imitadora de Marylin Monroe (Samantha Morton), que o convidará a juntar-se a um grupo de pessoas com a mesma ocupação, numa quinta escocesa.

O marido de “Marylin” é “Charlie Chaplin” (Denis Lavant) e, em seu redor, juntam-se os “Stooges”, a “Rainha”, o “Papa”, “James Dean”, “Abraham Lincoln” e outros. Momentos de humor intercalam com outros que parecem meramente autocontemplativos, mas Korine espreme óptimos resultados da premissa. Uma comédia mais surreal é adicionada com uma história paralela sobre o milagre das freiras que saltam de avião sem pára-quedas. O arranque dessa história consegue despertar-nos de uma possível sonolência e manter-nos mais interessados no que aí vem. Será um truque para nos agarrar ao que realmente interessa? Werner Herzog participa pela segunda vez num filme de Korine, oito anos depois de «Julien Donkey-Boy».

A seguir: Orient Express
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5/12/07

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