2.2 Midnight X-Treme
“Ai, que horror!” Todos nos rimos das jovens6 que vão ver filmes de terror e depois se mostram tão “sensíveis” com qualquer cortezinho ou esventramento. Felizmente, não as esperamos em sessões da meia-noite que se anunciam “x-tremas”.
Sitges programou meias-noites apetecíveis. Todas. Três por dia, com excepção da abertura, até ao último sábado. “Meias-noites apetecíveis” dificilmente constituiriam um problema. Mas todos os dias e em três horários concorrentes reforçam aquela sensação que temos assim que começamos a tentar organizar o nosso programa, de que há demasiado no menu para o que conseguiremos alguma vez abocanhar e digerir (isto para remeter para o capítulo anterior, onde dentições saudáveis deram o mote).
Os filmes que seriam mais atraentes nas meias-noites (na verdade, a maioria das sessões começava à uma ou às 00h45), eram os integrados na Midnight X-Treme. O nome não engana: são obras escolhidas por serem fortes no que toca ao tema e à violência gráfica. Os título agrupados sob a epígrafe Mondo Macabro, foram exibidos em duas sessões, no Casino Prado. Além dessas projecções, filmes de outras secções foram também exibidos nas meias noites. Uma sessão dupla muito bem pensada foi a projecção de «Death Note» e «Death Note: The Last Name» (Orient Express), filmes cuja acção é contínua e concebidos inicialmente como uma coesão narrativa em duas partes (cada uma com mais de duas horas). 7
Uma sessão de 4 horas e meia, como a de «Death Note» não era algo que assustasse os cinéfilos. Havia desafios maiores: sessões duplas, triplas e uma quadrúpula só com filmes de zombies (que tinha de ser “estragada” com um filme lá no meio já visionado no MOTELx: «Mulberry Street»). Toda a noite ou nada. Quanto a mim, só joguei com duplas. Assim ainda poderia considerar opções matinais.
Quando se vêem muitos filmes, estas sessões podem complicar-nos o programa. Se só queremos ver um filme, que passa em terceiro numa maratona, por exemplo. Quando se trata do primeiro, é como se fosse uma sessão normal. Essas maratonas repetiam e a ordem dos filmes era alterada (esta é apenas um dos exemplos de como se pensou bem a programação), de modo que quem quisesse podia ver dois filmes em duas sessões diferentes – ainda que desvirtuasse o conceito das maratonas.8
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«The Devil Dared Me To». |
Nos primeiros dias, talvez por estar ainda a duvidar das minhas renovadas capacidades para visionamentos non-stop desisti a meio de uma maratona. Tratava-se de um “pack” constituido por uma curta espanhola («Pétalos Grillados») e duas longas: «The Devil Dared Me to» e «Recon 2022: The Mezzo Incident» (Canadá). Este último, uma suposta sequela, não me convenceu a ficar para lá das quatro da manhã. Baixo orçamento, vídeo e a atitude auto-consciente de se estar a fazer um filme mau para cabo ou DVD. Uma espécie de Playboy FC, com nudez e cenários pouco convincentes. Talvez tenha melhorado substancialmente depois dos 10 ou 15 minutos que vi, a resistir ao sono. Não me parece que o possa vir a saber.
Mas primeiro foi projectado «The Devil Dared Me to» (Nova Zelândia), um filme fora deste tempo, tal como «Jack Brooks Monster Slayer», de que se fala mais abaixo. Produção muito recente, a estrear na Nova Zelândia alguns dias depois da projecção no El Retiro, apresenta um grupo de personagens atípicas, marginalizadas pela sociedade, e que se dedicam a acrobacias com veículos motorizados. 9
O “herói”, Randy Cambell, vive numa quinta na Ilha Sul da Nova Zelândia, mas quer seguir a profissão da família. Essa profissão não trouxe ainda fama, apenas mortes horríveis a quatro gerações de Cambells, mas isso não o impede de se querer tornar o melhor “duplo” do país. O mau gosto é grande, partindo de um conceito simples que enforma todo o filme: acrobacias que correm horrivelmente mal. A comparação com os primeiros filmes de Peter Jackson, o primeiro dos quais se chamava precisamente «Bad Taste» (1997), não é descabida no que toca à atitude e estética do grotesco.
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Patrick White, produtor de «Jack Brooks Monster Slayer». |
O filme é idiota e com muito orgulho. Randy tem o sonho de saltar numa rampa gigante para a Ilha do Norte – onde se situa a capital Wellington, logo depois do Estreito de Cook, e Auckland – que representará riqueza e sofisticação para os “rudes” do sul. O seu mecânico descreve as mulheres a norte do Estreito ao filho: “rapam os sovacos e as virilhas”.
Chris Stapp (realizador e protagonista) e Matt Heath (co-produtor e actor) formam um duo de comediantes com carreira na TV (de onde as personagens vieram) e um passado de filmes em vídeo low budget, incluindo um inspirado em John Woo, chamado «Arse/Off». De Hong Kong veio outra inspiração. Stapp diz que Jackie Chan lhe mostrou que se quiser fazer uma acrobacia perigosa bem feita deve fazê-la ele mesmo.
Se «The Devil» tem um look chunga anos 70, o canadiano «Jack Brooks, Monster Slayer» é todo 80's. Apresentado em estreia mundial em Sitges, «Jack Brooks» fez-me lembrar, de imediato, «The Evil Dead» (1982) e a sua primeira sequela (1987). Arranca com grande ritmo, com um monstro a atacar uma tribo no meio de uma floresta e muda (para o passado?, para o futuro?) para uma universidade norte-americana onde conhecemos Jack Brooks, canalizador, a frequentar a universidade nocturna e a visitar regularmente um psiquiatra, devido ao seu terrível mau feitio, acompanhado por explosões de raiva.
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O realizador Michael Manasseri («Babysitter Wanted», imagem da esquerda com a actriz Sarah Thomas) e o produtor Patrick White («Jack Brooks») introduziram a "Meia-Noite Extrema" no Cinema El Retiro onde foram apresentadas as duas longas-metragens. |
Jack é contratado para arranjar a canalização da residência do professor Crowley (interpretado por Robert Englund), e as suas acções vão provocar o despertar do mal – aqui na forma de um coração demoníaco (não é metáfora) – e levar o canalizador a encontrar-se com o seu destino de “matador de monstros”. Seguem-se metamorfoses e zombieficações ao estilo, já referido, dos primeiros filmes de Sam Raimi. Machados (confirmado), efeitos de maquilhagem baratos mas eficazes (confirmado), terra a fumegar (confirmado), árvores lascivas... (bom, não).
A sessão da meia-noite de «Jack Brooks» foi dupla e começou com «Babysitter Wanted», um filme de muito baixo orçamento, rodado em vídeo, mas a levar-se muito a sério e sem floreados. A intriga é mínima e coloca a personagem central, uma jovem que acabou de chegar à universidade, a tomar conta de um miúdo numa quinta isolada. Segue-se gore, tortura e uma luta entre o bem e o mal onde não falta um padre e uma personificação do demo. Tem um espécie de surpresa, mas nada de in-your-face-oh-we-are-so-smart. É um filme destinado a passar despercebido, mas que merece ser visto.
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Apesar do ar jovem, Andrew van den Houten é produtor de «The Girl Next Door» e não um dos miúdos do filme. |
A meia-noite mais forte, no entanto, viria a ser uma obra despedida de fantasias satânicas ou gore extremo. Adaptando um livro de Jack Ketchum, publicado em 1989 e inspirado num caso real, que ocorreu em 1965 e resultou na morte de uma menor, «Jack Ketchum's The Girl Next Door» (EUA) é uma história de horror suburbano, que nos atinge como um soco no estômago, pela familiaridade do meio e das personagens. Tal como é sugerido pelo título, e apesar de um certo distanciamento por a acção se passar nos anos 50, sentimos os actos vis cometidos e entranhamo-los como se se tratasse de algo que poderia estar a acontecer ao fundo da nossa rua, na cave de uma senhora respeitável a quem damos sempre os bons dias.
No centro da narrativa, está Meg e a irmã, Susan, duas menores órfãs que ficam a cargo de uma tia, divorciada e com três filhos a seu cargo. Por razões que não são afloradas, a tia odeia Meg, e dos maus tratos virá a passar para a tortura, amarrando-a na cave e sujeitando-a a humilhações e, posteriormente, a violência física e de cariz sexual, com a participação dos filhos, e face a uma assistência de crianças da vizinhança. O que mais choca é, naturalmente, crianças estarem envolvidas. Ainda que a actriz Blythe Auffarth, com uns 20 anos, se tente passar por 14, a partir de certo ponto não há atenuação possível. Contundente, mais difícil de digerir do que meia dúzia de torture porn.
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Blythe Auffarth em «Jack Ketchum's The Girl Next Door». |
Há que respeitar opiniões, mas escrever, como fez o New York Post, que não há nenhuma razão para ver o filme, “excepto se se excitar com a exploração sexual de raparigas menores” é um perfeito disparate. Vale a pena explicar porquê? 10
Em competição, na Fantàstic, esteve «An American Crime», de Tommy O'Haver, com protagonismo de Catherine Keener, mais focado no court drama do que na violência e intensidade dos actos, e dramatizando a história real. Seria uma interessante contraposição, mas não foi possível visioná-lo.
A seguir: Ultraviolência Francesa
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6 Não é sexismo, é que os homens têm vergonha de manifestar fraqueza.
7 O leitor não terá pensado que este site, ao analisar os dois filmes num mesmo texto, o fez por razões de economia.
8 Claro que pagando bilhetes pelas maratonas levaria a ponderar tais opções. Os bilhetes custavam 10 (2-3 filmes) e 12 EUR (4 filmes).
9 O título – "o diabo desafiou-me a fazê-lo" – faz um trocadilho com "daredevil" expressão que se pode traduzir por "destemido".
10 "It's a Sick Flick", 1/2 em 4. Pegue-se no "argumento" de V.A. Musetto sobre este filme "realmente repugnante" e aplique-se-lo a filmes respeitados por público e crítica, com conteúdos fortes, a nível de violência ou sexo. Por exemplo, «Schindler's List», essa exploração do sofrimento, não há razão para o ver, "excepto se gostar de ver pessoas a levarem tiros na cabeça". Pode dizer-se o mesmo em relação a filmes de acção. O facto de um filme ter coisas desagradáveis não significa que quem o fez ou quem vê, tire "prazer" dos actos representados ou que esses actos sejam "aprovados" pelos cineastas. É um processo que não deveria ser estranho a um crítico, mesmo os que cometem gralhas básicas, como trocar "your" por "you're", mais naturais em estrangeiros. Em todo o caso, servirá para avisar o leitor de que se trata de um filme fácil de odiar.
5/12/07
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