Chihiro (Hiiragi), de 10 anos, viaja com os pais para a nova casa. Com dúvidas quanto à estrada correcta, seguem pelo que parece ser um atalho, mas esse caminho acaba junto a um longo túnel. Decidem deixar o carro e atravessar o túnel a pé, chegando a uma cidade aparentemente deserta. Os pais da menina, atraídos pelo agradável aroma, entram num restaurante e começam a comer, apesar de não haver ninguém no local. Desconfortável com a situação e com vontade de voltar para trás, a pequena caminha pela cidade, deparando com fantasmas e outras criaturas estranhas. Volta, a correr, para junto dos pais para descobrir, horrorizada, que os dois foram transformados em dois porcos bem gordos. A cidade é afinal uma estância de repouso para deuses e Chihiro vê-se forçada a trabalhar na casa de banhos da bruxa Yubaba (Natsuki), enquanto procura uma saída e um meio de salvar os pais.
Devido às suas conhecidas dificuldades em lidar com material culturalmente diverso, a Disney não fez muito pelo sucesso de «Mononoke Hime» (1997) – nº 1 nas bilheteiras do Japão até à estreia de «Titanic» –, igualmente realizado por Miyazaki, e o mau resultado nas bilheteiras poderá ter contribuído para que a companhia do Rato Mickey não tivesse adquirido os direitos universais do novo filme. Uma má opção, provavelmente, tendo em conta que «A Viagem de Chihiro» se aproxima mais do filme infantil que a distribuidora gostaria que «Princesa Mononoke» fosse, mas os cinéfilos nacionais vão certamente aplaudir o facto da distribuição não vir directamente da Disney ou da Miramax (que pega nos títulos mais “maduros”, que não se adeqúem ao espírito “para todos” da casa-mãe), pois teríamos uma provável repetição do cenário de cópias dobradas em inglês, sem opção (e alguns comentadores entretinham-se a falar da excelência do trabalho de John Lasseter). Felizmente, tal não aconteceu desta vez e podemos assistir ao filme em toda a sua glória, no japonês original e legendado em português. Sendo certo que muitas famílias ficarão felizes por poder levar os seus miúdos à versão dobrada – e estou certo que o trabalho do actores e directores de dobragem português é de boa qualidade, ainda que não me interesse particularmente –, também é verdade que «Chihiro» é um filme que é narrativamente demasiado complexo para crianças com menos de nove ou dez anos, i.e., a idade da protagonista e do público-alvo mais relevante. Uma criança que não saiba ainda ler provavelmente não terá maturidade suficiente para entender a história, prevendo-se muita interactividade pai-filho nessas projecções, que normalmente ficaria reservada para aqueloutras que “deveriam” ser dobradas, mas que afinal são legendadas (“quem é aquele?”, “ele está morto?”, “ele é mau?” “o que é que está a acontecer?” “quero fazer chichi!”)
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Uma refeição saborosa, mas demasiado cara.
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«A Viagem de Chihiro» é actualmente o filme que ocupa o número 1 nas bilheteiras japonesas e o seu sucesso têm-se estendido por outros territórios asiáticos e por festivais de cinema onde tem vindo a colher prémios diversos. Tem dado nas vistas no Ocidente sobretudo depois de vencer o Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2002 (ex-aequo com «Bloody Sunday», de Paul Greengrass). O filme de Miyazaki é também um dos filmes mais bem apreciados pela crítica, o que é reflectido em vários índices da Internet e nas diversas listas de melhores do ano, tanto nos EUA, como na Europa (ocuparia metade do texto a referi-las, bem como todos os prémios).
Aqueles que conhecem a obra de Miyazaki não estranharão que, uma vez mais, estejamos perante uma narrativa que não segue as fases normais de introdução, conflito e resolução, nem dispõe bons e maus em dois campos opostos e delimitados. Com excepção das primeira obras do realizador japonês – «Lupin III: Cagliostro no Shiro» (1979) e «Tenku no Shiro Laputa» [Laputa: Castle in the Sky] (1986) –, o cinema de Miyazaki não mostra preocupações em apresentar “maus” claramente definidos, nem em centrar o objectivo da história na eliminação ou derrota dessa personagem, antes optando por desenvolver um percurso complexo que os seus protagonistas têm de seguir e vencer, para, de algum modo, se encontrarem, se conhecerem, ou conseguirem superar determinadas dificuldades e transitar para outra fase das suas vidas. Tal é mais facilmente sobreposto a «Majo no Takkyubin» [Kiki's Delivery Service] (1989), mas a mecânica é comum à generalidade da obra de Miyazaki. Seria fácil imaginar que se «A Viagem de Chihiro» fosse produzido no Ocidente a bruxa seria realmente má e o objectivo de Chihiro, para libertar os pais e sair da cidade, passaria por um confronto directo e pela derrota da terrível vilã. Isso é outro filme.
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Yubaba não vê com bons olhos a presença de uma humana no seu estabelecimento. À dta: Sen é ajudada por Haku.
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Para poder trabalhar na casa de banhos de Yubaba, Chihiro é despojada do seu nome, sendo rebaptizada de Sen. Não é por coincidência que o primeiro caracter de Chihiro (千尋) é o mesmo de Sen (千), ainda que se pronunciem de forma diferente. Tal vem acentuar que, ao abdicar do nome, Chihiro, está a perder uma parte importante de si, sem a qual não poderá nunca deixar aquele local místico. E esquecer-se do seu nome original poderá ser fatal. Este é também um elemento essencial à relação entre ela e Haku (Irino), como se irá ver, à medida que o filme se desenrola.
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Acima: Sen encontra um Kaonashi (Deus Sem-Face).
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Miyazaki criou uma história – “para todos os que têm 10 anos e para os que já tiveram” – que poderá ter uma mensagem simples, como a necessidade de lutar e enfrentar as adversidades, em vez de fazer birra, num canto. «A Viagem de Chihiro» envolve-se numa narrativa densa, com múltiplas personagens e situações elaboradas, fundadas em mitos e tradições japonesas – ainda que a arte seja, de um modo geral, saída da imaginação do autor –, que não haverão de parecer estranhos mesmo a quem nunca tenha visto um filme sobrenatural produzido no Japão.
Visualmente, o filme demonstra que a animação tradicional pode ainda surpreender e que a simplicidade aliada ao talento continua a ser um grande trunfo. Não se abdica da utilização de imagens geradas por computador (CGI), mas a sua utilização é muito comedida (mais do que seria de esperar) e apropriada aos momentos que seriam muito complicados de animar à mão, como, por exemplo, travellings, como aquele em que Sen atravessa um corredor de flores, ou a água que transborda de um tanque usado por um deus “sem-face” (kaonashi). Qualquer semelhança entre o modo como as CGI são empregues aqui e o usual show-off técnico em outros filmes animados é mera coincidência. Mas, maior impacto que da arte e da técnica advém de personagens e de uma história capaz de nos prender desde os primeiros frames de celulóide. E até mesmo de nos comover. «A Viagem de Chihiro» é mais do que um bom filme de animação; é uma magnífica obra cinematográfica e, sem dúvida, um dos melhores filmes do ano.
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«A Viagem de Chihiro» abre o caminho para o que poderá ser o melhor ano de sempre para ver cinema japonês nos ecrãs de cinema portugueses. Já foi anunciado, também pela New Age Entertainment, «Avalon», de Oshii Mamoru. Não há-de tardar muito – esperemos – para que estreie a obra-prima de Kitano, «Dolls» (será que se pode começar já a adjectivá-la de “incompreendida”? – fica sempre bem). E será um caso de pensamento positivo irracional esperar que o último filme de Imamura Shohei («Água Quente sob a Ponte Vermelha»?) tenha igualmente honras de estreia em sala, seguindo os anteriores «Unagi» (1997) e «Kanzo Sensei» (1998)? E «Honogurai Mizo no Soko Kara» (ou «Dark Water»), de Nakata?
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