|
Poster original, dificilmente utilizável nos EUA, devido à presença de sangue. |
Japão, durante a Era Muromachi (1333-1568). Ao defender o seu povo do ataque de um javali gigante, o jovem Ashitaka é vítima de uma maldição; o contacto com o animal deixa-lhe uma marca no braço direito, cuja expansão só terminará com a sua morte. A vidente da aldeia aponta-lhe o caminho a seguir. Deve abandonar os Emishi, para nunca mais voltar, procurando a fonte do mal que transformou o animal, um deus-javali, numa besta sanguinária descontrolada. O destino de Ashitaka é tentar ver com olhos não velados pelo ódio a razão da "corrupção" do deus. A sua viagem leva-o à Tataraba, a Cidade do Ferro, governada por Eboshi, uma mulher tão decidida a defender os seus protegidos, como a usar os recursos da floresta para seu benefício. Eboshi tem de lidar com as investidas dos samurais do Senhor Asano e de negociar com Jiku, um agente do imperador, que procura a cabeça do Deus da Floresta, o Shishigami, à qual se atribuem poderes de vida eterna. Ashitaka conhece também San, uma rapariga criada por Moro, uma deusa-loba, que procura matar Eboshi, para pôr cobro ao processo de destruição da floresta.
«Mononoke Hime» estreou em 250 ecrãs de cinema japoneses, em Julho de 97, batendo recordes de bilheteira, vindo o mesmo a suceder com a edição vídeo. Como se tem dito, a posição cimeira só se manteve até ao surgimento de «Titanic», de James Cameron. Apesar das diferenças óbvias entre os dois filmes (haverão dois filmes mais diferentes?), provocaram efeitos semelhantes, pelo menos no Japão, onde 20% dos compradores da cassete com o filme de Miyazaki declararam ter comprado pela primeira vez na vida uma cassete vídeo. O filme de Cameron foi um sucesso gigantesco em todo o globo, mas o de Miyazaki não poderia nunca "passar a linha" para fora da Ásia, dado tratar-se, por um lado, de animação e, por outro, de um filme falado em "língua estrangeira". Ou seja, não é falado em inglês. Isto é válido igualmente para países não anglófonos, incluindo os que não dobram por sistema, como Portugal, o que se pode confirmar pela estreia da versão Miramax, entre nós, cortesia do distribuidor nacional, Castello Lopes [ver texto].
|
Ashitaka, um guerreiro forçado a abandonar o seu povo. |
O projecto andava na cabeça de Miyazaki desde os anos 80 e começou como uma variação de "A Bela e o Monstro". Era a história de uma princesa forçada a casar com um "mononoke" (que significa "o espírito de uma coisa", de algo indeterminado, um animal ou um objecto inanimado). Alguns dos esboços da criatura acabaram por ser usados na criação do Gato-Autocarro de «Tonari no Totoro» e entretanto a Disney lançou a sua versão de «A Bela e o Monstro», pelo que em 1997 o projecto já havia sofrido alterações substanciais. O título, no entanto, manteve-se. Miyazaki quis mudá-lo para algo directamente relacionado com a verdadeira personagem central, Ashitaka – como «A Viagem de Ashitaka» –, mas tanto o distribuidor japonês, como mais tarde a Disney, preferiram «Princesa Mononoke». É de frisar que "mononoke" não é um nome próprio, como alguns textos induzem – a personagem chama-se San – mas um adjectivo. Uma tradução possível de "mononoke hime" é "princesa fantasma".
Apesar de vir a demorar dois anos e meio até chegar ao maior mercado ocidental, pelas mãos da Disney (sendo um título "maduro" passou para o controle da Miramax), e de vir a ganhar uma considerável reputação em circuitos paralelos, festivais de cinema e perante cinéfilos atentos à animação japonesa que se vai fazendo, «Mononoke Hime» foi distribuído timidamente pela Miramax, ficando-se por modestos resultados de bilheteira nos EUA, ao contrário do que sucedeu no mercado francês, onde os resultados foram bastante positivos. A crítica, em ambos os lados do Atlântico, foi, de um modo geral, muito receptiva, tendo Roger Ebert – o qual não deixa de ter os seus ocasionais "bloqueios" culturais perante produtos estrangeiros – escrito que esta obra devia concorrer ao Oscar de Melhor Filme.
|
Eboshi, líder e protectora da Tataraba. |
Entre nós, houve muitas preocupações em falar dos méritos do filme, por referência às obras de Kurosawa ou Mizoguchi, para além de algumas menções honrosas à dobragem feita para um público americano que se recusa a ler no cinema. Estivemos longe da unanimidade, com comentários negativos que quase pareciam ser baseados em outro filme qualquer. Se Manuel Cintra Ferreira parece ter ficado bem impressionado com este "prodígio de animação", apesar do comentário não parecer coerente com as três estrelinhas atribuídas, os seus colegas do "Expresso" ficaram algo aborrecidos com o visionamento do filme. Jorge Leitão Ramos afirma que «Mononoke Hime» está longe de ser "uma obra maior nas artes da animação"... A frase seguinte parece apresentar o porquê: é demasiado longo e não se destina ao público infantil. De onde se poderá concluir, a contrario, que as grandes obras da animação têm 80 minutos e são produzidas pela Disney. Já Francisco Ferreira, depois de elogiar os picados e os contra-picados, remata com a falta de originalidade do produto. Demonstra também uma certa falta de informação, ao dizer que a banda sonora (de Hisaishi Jo) é "francamente pobre", talvez devido a tratar-se da versão inglesa. Como se sabe, os americanos não puderam alterar a banda sonora. O que é verdadeiramente de pasmar é a referência à "dimensão humana das personagens", que, segundo Fragata, "nunca ultrapassa a componente de entretenimento para os espectadores mais pequenos". Há quem faça questão de avisar os pais de que os temas presentes são adultos, mas eis que há quem ache o filme demasiado infantil.
|
San, a terceira "filha" de Moro. |
Os temas do filme não se centram tanto na "ecologia", como no equilíbrio entre os elementos. O equilíbrio natural por um lado e o equilíbrio entre pontos de vista e modos de viver dos seres humanos, por outro. As análises que destacam a componente ecológica do cinema de Miyazaki têm tendência a ser demasiado redutoras. Se esquecermos momentaneamente os deuses e a floresta, e nos debruçarmos apenas sobre as personagens, não podemos deixar de apreciar a grande riqueza no delinear das suas características próprias. Temos aqui um tema que podia facilmente ser ilustrado numa história do tempo presente. Para um filme virado para o entretenimento dos mais pequenos, a estrutura é, no mínimo, complexa. Existem diversos interesses em conflito:
- San, quer ver o seu habitat livre da interferência dos humanos, que destroem a floresta e matam os deuses;
- Eboshi, quer prosperidade e paz, para si e para o seu povo, mesmo que tal passe pela destruição da floresta e pela morte dos deuses;
- Jiko, trabalha para o imperador, mas está interessado apenas na riqueza material que possa advir do seu trabalho, sem interesse por qualquer moral ou pelas consequências dos seus actos;
- Os deuses-javali querem aniquilar os humanos, a qualquer custo, preparando-se para morrer tentando;
- Os deuses-lobo têm interesses semelhantes aos javalis, mas não são tão impulsivos, talvez devido a alguma influência de San;
- Ashitaka quer apenas encontrar uma solução de harmonia entre os deuses, a natureza e os humanos, apesar de tal parecer impossível.
|
A caçadora prepara-se para atacar a sua presa. |
O que é profundamente original no filme de Miyazaki é a apresentação de todos estes interesses e facções sem que seja necessário tomar parte ou rotular um deles como "certo" ou "moralmente correcto". Não existem vilões, tal como estamos habituados a vê-los. Os samurais são demasiado secundários para assumirem esse papel. As personagens centrais apresentam razões lógicas para o respectivo comportamento e todos têm a sua razão. A Ashitaka atribuímos uma "razão" superior à dos outros, porquanto procura encontrar um equilíbrio entre os diversos modos de vida e necessidades. A impossibilidade de materialização deste desejo não revela a ingenuidade da personagem (trata-se sim de pureza de coração, para quem ainda não ache ridícula tal expressão), sendo consequência da intransigência geral.
A animação é de primeira, na falta de uma frase mais elaborada. Foram feitos 144 mil desenhos, dos quais Miyazaki terá retocado pessoalmente 80 mil, assegurando-se de que o conjunto se integrava na sua visão artística. Utilizaram-se imagens criadas por computador, perfeitamente integradas com a animação tradicional, sem que a distinção seja demasiado evidente. É a mão humana que se destaca, do mesmo modo que a "alma" do filme se sobrepõe ao mero entretenimento funcional. A banda sonora de Hisaishi é muito rica, acompanhando os momentos-chave do filme e reforçando uma grande variedade de emoções, situações de tensão, cenas de acção ou planos de contemplação da natureza. A BS da versão americana é idêntica, com excepção da canção principal, que se mantém musicalmente fiel à original, interpretada por Mera Yoshikazu.
Muito se pode ler em «Princesa Mononoke», mas parece-me que a harmonia entre elementos diferentes e a procura da convivência com o "outro", são claramente mais relevantes do que uma qualquer "defesa da natureza".
Vd. Mononoke, o Espírito da Dobragem" |