Em Janeiro de 1968 um comando norte-coreano infiltrou-se em Seul, com o objectivo de assassinar o presidente Park Jeong-hee [1]. A operação fracassa. Como medida de retaliação, os serviços secretos sul-coreanos decidem pôr em prática um plano para eliminar Kim Il-seong, o “querido líder” da Coreia do Norte. Para esse efeito, recrutam indivíduos à margem da sociedade, sobretudo condenados à morte. A força aérea treina de forma rigorosa e desumana três dezenas de homens em Silmido, uma ilha deserta, situada no Mar Amarelo, a oeste da cidade de Incheon, com o objectivo de os tornar máquinas de morte e de os motivar ao cumprimento de uma missão que, supostamente, precipitaria a união da península coreana. Mas, no início dos anos 70, e antes da operação de retaliação ser levada a cabo, surgem ventos de mudança e possibilidades de aproximação entre os dois regimes que se encontram, ainda hoje, tecnicamente em guerra, na ausência da assinatura de um tratado de paz.
A história de «Silmido» não pode deixar de ter um impacto muito profundo nas populações locais, por assentar em factos reais, ainda que envoltos na necessária dramatização — é preciso criar, inventar, personagens e conflito entre elas —, mas, aparentemente, seguindo uma linha narrativa genericamente fiel aos acontecimentos. O filme tornou-se o número 1 das bilheteiras sul-coreanas, destronando o anterior campeão — «Amigo/Chingu» —, com o apoio de uma campanha de marketing bem engendrada. Resultado: mais de 11 milhões de bilhetes vendidos à data da escrita deste texto, o que significa que (em abstracto) mais de um quinto da população foi às salas de cinema ver o filme [2]. Como exercício mental, tentemos imaginar um filme português "comercial" a ter mais de dois milhões de espectadores em Portugal. Há que ter em conta as características específicas de um mercado que conheceu um boom recentemente, no final dos anos 90, com uma faixa de população jovem, ávida por cinema e desejosa de apoiar a produção local e um número de nomes consagrados, estrelas pop ou da TV capazes de arrastar massas às salas de cinema [3].
É sintomático que alguns dos maiores êxitos de bilheteira na Coreia do Sul sejam filmes mainstream de acção, mas tematicamente relacionados com a situação política na península coreana: «Swiri» (1999), «Joint Security Area» (2000) e «Taegeukgi Huinalrimyeo» (2004), de Kang Je-gyu. "To close to home", como reza a expressão inglesa. A provar a vitalidade do cinema actual está o facto de «Taegeukgi» ter superado as receitas de «Silmido», apenas alguns meses depois.
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A unidade 468 treina intensamente. |
Naturalmente, fora da Coreia do Sul um sucesso desmedido seria impensável, porque continua a ser complicado encontrar espaço no mercado para cinema comercial não falado em inglês e com caras reconhecíveis. Quando «Swiri» estreou em Portugal, poderia ocorrer-nos a estranheza de um filme mainstream ser levado para uma sala de "arte e ensaio", como o defunto Mundial, em Lisboa, por onde passava cinema de autor europeu ou filmes independentes norte-americanos. «Silmido», por outro lado, estreia em centros comerciais: no Colombo, em Lisboa, e no GaiaShopping de Vila Nova de Gaia (a terceira cópia foi para o Fórum Almada). Se as salas são “adequadas” para a natureza "grande público" do filme, o mesmo já não se pode dizer da promoção (que não existiu) e do número de cópias disponíveis. Ou seja, é previsível que o filme passe tão despercebido no Columbo, como «Swiri» no Mundial.
No que toca ao público receptivo a títulos mais específicos, "estrangeiros", o "word of mouth" não contribuirá muito porque essas pessoas — refiro-me à capital — provavelmente evitam tout court ir ao Columbo. E não se podem censurar: a frequência é má, com pessoas que estão ali como poderiam estar noutro sítio, que entram e saem da sala durante a projecção e se divertem a dizer piadas para o filme, para os amigos se rirem. Os dísticos "proibido utilizar telemóveis" estão ultrapassados (além de que se usam, independentemente do aviso): é preciso algo que englobe a utilização inadequada do cérebro em locais públicos. A projecção precisa de revisão e o mesmo se aplica para o som; as colunas da sala nunca se manifestaram e o som stereo até ruído apresentava.
Tematicamente, «Silmido» assemelha-se a alguns títulos de acção e aventura, maxime «The Dirty Dozen» (1967), onde se dá uma oportunidade a marginais de fazer algo de significativo pelo seu país em troca da comutação das penas. Algo que cedo se transforma na redenção do crime pela via do patriotismo e leva umas lágrimas de comoção às audiências mais sensíveis. Até marginais dão a vida pelo país. O mesmo não se passa exactamente com o filme de Kang Wu-seok: ainda que o mesmo sentimento acabe por motivar as suas personagens, o filme questiona e aponta o dedo ao poder político. Aos governantes da época, mas também aos que se seguiram, por terem ocultado os factos (muito material foi desclassificado na sequência de pressões que surgiram com o lançamento do filme).
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Jeong Jae-yeong e Seol Gyeong-gu. |
«The Road Taken» (2003), exibido em Udine, é outro título cuja produção seria impossível há uma dezena de anos atrás, devido à abordagem de material politicamente sensível. Também lhe subjazem tensões políticas entre as duas coreias, acompanhando prisioneiros comunistas numa prisão sul-coreana, ilustrando-se igualmente a aproximação do início dos anos 70, que parecia apontar para um caminho curto para a reconciliação. Se existem pontos de intersecção temáticos, as duas obras não poderiam sem mais diferentes nos restantes aspectos: em escala, em orçamento, na facilidade de chegar ao público e mesmo a nível de distribuição e festivais de cinema — a que não ajuda nada o facto de «The Road Taken» humanizar simpatizantes comunistas.
«Silmido» tem duas características identificáveis em muito do cinema coreano recente: uma duração próxima do excessivo e inevitáveis laivos melodramáticos. Felizmente, um e outro aspecto ficam relativamente contidos e o "male bonding" também é doseado de modo a que poucos pensarão falar em "homo-erotismo" (ajuda que andem mais à porrada uns com os outros do que a trocar sorrisos e elogios mútuos). As personagens são bem definidas e credíveis, apesar de se ir um pouco longe demais no tempo de ecrã dispensado aos comic relieves e a algum humor desnecessário e redundante — que também contribui para que alguns cérebros mais frágeis na plateia prolonguem o riso alarve aos momentos dramáticos. O elenco sustém-se sobre três fortes pilares de representação: o veterano Anh Seong-ki (que já pôde ser visto noutro título estreado no nosso mercado: «Embriagado de Mulheres e Pintura/Chwihwaseon»), Heo Jun-ho (muitos leitores reconhecê-lo-ão de «Volcano High») e, sobretudo Seol Gyeong-gu, que encabeçou o elenco do anterior filme de Kang, «Public Enemy» (2002), no papel de um polícia corrupto que limpa a consciência perseguindo um yuppie psicopata assassino. Seol tem aqui um papel com alguma exigência, mas certamente mais fácil — talvez descontando o treino militar — do que o ex-presidiário de inteligência limitada de «Oasis» (2002).
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Anh Seong-ki. |
Kang dá bom uso ao espaço scope — mas com projecções assim mais vale pedir um DVD emprestado —, no que acaba por não ser um filme mainstream demasiado dependente do equilíbrio entre ingredientes (51% acção, 49% drama...), mas que sustém o ritmo da narrativa e se mantém convincente enquanto retrato de um episódio histórico verídico, ainda que uma dramatização mais fantasista estivesse coberta pelo aviso de que as personagens foram compostas e se tomaram algumas liberdades, num texto a abrir o filme que ficou por traduzir na cópia portuguesa. (Ficou de fora, por exemplo, a morte de um civil no final.) No capítulo da dosagem dos ingredientes, fica-se alguns furos acima dos épicos do outro Kang (Je-gyu) — «Swiri» ou «Taegeukgi». Prezemos ainda a estreia do filme entre nós numa altura em que poucos territórios não asiáticos tiveram oportunidade de o ver, ainda que a distribuição seja limitada.
[1] O Brigadeiro Park Jeong-hee tomou o poder através de um golpe de estado, em 1960, apesar de vir a ser eleito democraticamente um ano depois. Usou manobras políticas para se manter no poder, nomeadamente alterando a constituição. Foi assassinado em 26 de Outubro de 1978 por Kim Jae-kyu, chefe da KCIA.
[2] Estimativa da população na Coreia do Sul no final de 2001: 47 676 000 habitantes.
[3] Sobre os factores dinamizadores do actual estado do mercado cinematográfico sul-coreano, sugere-se a leitura de duas peças no âmbito do Festival de Sitges de 2003: Dia da Coreia e Fórum: Coreia, Cinema Explosivo.
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