5e Festival du Film Asiatique de Deauville
Links rápidos: Blessing Bell, Blind Shaft, Doing Time, Eliana, Eliana, Hero, I Love You,
Infernal Affairs, Love at 7-11, Mê Thao, The Missing Gun, Nothing to Lose,
One Night Husband, Plastic Tree, Popee, Saving My Hubby, Suicide Club,Tamala 2010
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I — Preliminares
Introdução
O 5º Festival de Cinema Asiático de Deauville decorreu entre os dias 12 e 16 de Março de 2003, naquela vila da Normandia, situada a cerca de 200 Km de Paris, nas margens do Canal da Mancha. Mais célebre pelo seu Festival de Cinema Americano, que terá a sua 29ªedição este ano, Deauville é um local bastante aprazível, ainda que o final de Inverno do mês de Março seja deveras gelado. Entre um Verão com cinema Americano ou um Inverno com cinema Asiático a escolha não se me afere particularmente difícil, apesar das necessidade de nos habituarmos a mudanças drásticas de temperatura, das ruas onde pode estar um frio de gelar os ossos — principalmente quanto faz vento — para o ambiente quente e abafado que é característico da generalidade dos interiores (mesmo esplanadas, cobertas ou não, possuem aquecedores). A indumentária mais prática seria um casaco muito quente, facilmente descartável, por cima de uma t-shirt.
O Festival de Cinema Asiático de Deauville é ainda um evento jovem, anunciando-se este ano a passagem de testemunho da organização para as mãos do Public Système Cinema, entidade responsável pelos festivais de Avoriaz e a respectiva “sequela” Fantastic'Arts de Gérardmer, pelo Festival de Cinema Policial de Cognac e pelo outro – e mais célebre – evento cinematográfico de Deauville: o acima referido Festival de Cinema Americano. Le Public Système Cinema tem também experiência na área das cinematografias asiáticas, comprovando-o com a criação de festivais no Japão (Aventura e Fantástico, em Yubari, Policial, em Morioka, Fantástico e Ficção Científica em Tóquio). Nesta edição, a selecção ficou ainda a cargo da equipa do fundador do festival, o Professor Alain Patel. Em 2004, a organização estará nas mãos de Le Public Système Cinema e Patel permanecerá como co-presidente do evento. Com esta mudança, pretende-se assegurar a continuidade e a evolução do festival, sendo de prever um crescimento nos anos seguintes. Há que aguardar para constatar as consequências práticas a nível editorial, isto é, na escolha dos filmes a projectar.
A realização do festival deve-se a uma perfeita associação de patrocinadores, num país onde “mecenato” não é um conceito abstracto. Ora veja-se: a Air France traz os convidados até França, os hotéis do grupo Lucien Barrière alojam-nos, os veículos da Renault deslocam-nos em Deauville, a Metrobus espalha a publicidade e a Mairie disponibiliza as excelentes instalações do Centro Internacional (CID). Não é de estranhar que os bilhetes sejam baratos (gratuitos para estudantes, independentemente da sua nacionalidade), que existam várias sessões gratuitas, e que o controle das entradas não seja particularmente rigoroso. Perante tal cenário, a organização do festival não partirá de grandes condicionalismos orçamentais para escolher e programar filmes.
Programação, Projecção e Público
Com uma selecção de cerca de 30 títulos (o filme tailandês «Sayew», inicialmente programado para o Panorama, acabou por não ser projectado), quatro dias e três salas, a arrumação das sessões dificilmente poderia ser melhor, nunca havendo lugar ao stress da transição entre projecções, com que aqueles que costumam frequentar festivais de cinema estão familiarizados. Por vezes os tempos de espera eram curtos, mas normalmente havia 30 minutos, por vezes uma hora, a separar as projecções e as sessões de abertura e encerramento, por natureza com uma duração difícil de prever, foram programadas para os finais do dia. A arrumação dos horários tornou inclusive possível ir à Sessão de Abertura, que incluía a apresentação do júri e a homenagem ao veterano actor indiano Amitabh Bachchan, escapulir mesmo antes da projecção de «Sholay» (204 minutos), comer qualquer coisa e assistir a «Suicide Club» na sala do Casino Lucien Barrière.
Os filmes em competição revelaram-se medianos, daí que «Blind Shaft», o título mais forte dos sete, tivesse recolhido a esmagadora maioria dos prémios (falhou Melhor Actriz pela falta de papéis femininos de relevo). Numa primeira análise, poder-se-ia considerar que a selecção foi baseada no factor "arte e ensaio", não propriamente na qualidade ou originalidade das obras, mas o Panorama — e provavelmente a secção de vídeo digital, da qual foi apenas possível assistir a um filme — continha propostas bastante interessantes, no âmbito de um cinema mais direccionado para o grande público. Todos os filmes visionados foram apresentados com legendagem em inglês, normalmente impressa na película, que foi electrónica nos casos de duas cópias destinadas à exibição comercial em França: «Hero» e «Plastic Tree». A regra era a situação inversa: legendas impressas em inglês e electrónicas em francês. «Mê Thao» foi apresentado apenas com legendas em francês. De acordo com o programa, havia apenas mais um filme sem legendas em inglês: «My Beautiful Girl, Mari».
Acesso
Um dia: €10
Todo o festival: €30
Gratuito para estudantes
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Estou relativamente convencido de que não haverão muitos locais, para lá de Portugal, onde falte um conhecimento mínimo dos formatos de projecção. Tal como em Sitges, as molduras de projecção empregues em Deauville foram sempre adequadas. Fora os filmes em projecção anamórfica ("scope"), praticamente impossíveis de projectar mal, usou-se um rigoroso rectângulo 1.85:1 para a generalidade dos filmes "esféricos", com o recurso ao mais alto 1.66:1 em dois casos («Mê Thao» e «I Love You»), opções que pareceram adequadas e coerentes com a colocação da legendagem na película, impressa na origem. O sistema de legendagem electrónica recorre a um projector que coloca o texto sob o filme, dentro do próprio ecrã de cinema, i.e., não se projecta a toda a altura disponível, deixando-se uma faixa livre para a legendagem. Este sistema resulta em maior legibilidade por comparação com aquele que recorre a pequenos quadros electrónicos ou faixas separadas sob o ecrã, pois tem tamanho e tipo de letra similares à legendagem impressa na película.
Infelizmente, a possível perfeição da apresentação na sala do CID foi manchada pela focagem imprecisa de alguns filmes. Não em muitos, é certo, mas a notória má focagem em dois títulos fortes rodados em scope e particularmente adequados a uma projecção em grande ecrã — «Hero» e «Infernal Affairs» — constituiu uma considerável decepção.
O público francês é mais educado do que o espanhol e — obviamente — do que o português. A educação e o respeito — a civilização, a civilização — dominam e chegam a um nível quase comovente. Bom, é certo que houve episódios isolados de telefones a tocar e alguns leves cochichos, mas uma sala com 1500 pessoas em absoluto silêncio durante quase toda a projecção de um filme não é algo a que estejamos propriamente habituados por terras lusas. Por outro lado, pelo que um amigo francês me relatou, também sucedem os casos dos grupos de jovens que vão ver certos filmes por acidente e que passam o tempo a rir-se das coisas estranhíssimas que vêem no ecrã (pessoas a falar em línguas “esquisitas”, por exemplo). Isto na sala, mais pequena, do Casino, onde podemos, talvez, encontrar um paralelo, com o Pequeno Auditório do Rivoli, em certas sessões do Fantasporto. Um estudo sociológico precisa-se.
As Salas do Festival
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Auditório do Centro Internacional de Deauville.
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CID
Uma sala enorme e confortável, com 1497 lugares, o que a tornará numa das maiores da Europa. Ligeiramente maior que o Auditório do Hotel Melià Gran Sitges, mas com uma disposição mais profunda do que larga (por isso mesmo, o ecrã pareceu-me um pouco mais pequeno). A sala tem uma utilização diversificada, podendo ser fechada em segmentos, reduzindo-se a área disponível – para 847 ou 523 cadeiras –, consoante a dimensão dos eventos. O que torna a sala particularmente apropriada para um festival de cinema é a segmentação e os largos corredores que a atravessam na horizontal e o espaço que, de um modo geral, permite movimentações de pessoas sem grandes atropelos. Para além disso, há a tradição dos convidados ficarem alguns minutos depois das sessões, na mesma área da sala, mostrando-se acessíveis ao público para autógrafos ou para responder a alguma questão. O CID tem uma sala dedicada ao vídeo, mais ou menos improvisada no que à plateia diz respeito, com cadeiras agrupadas ou fixadas no chão, ocupando uma área considerável, tendo em conta o seu fim. A julgar pela exibição de «Popee», a qualidade de projecção DV era excelente.
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Auditório de projecção vídeo do CID.
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Casino
É uma sala aceitável, no formato tradicional de plateia de balcão, tendo talvez uns 500 lugares, com a estranha particularidade de possuir uma inclinação no chão, a partir de um terço da parte da frente da plateia. O estranho é que a inclinação é para cima, i.e., as cadeiras da frente estão mais altas do que as de trás. Em todo o caso, como uma faixa inferior do ecrã era usada para projectar as legendas em francês, no único filme ali visionado («Suicide Club») foi possível ver todo o rectângulo, incluindo as legendas em inglês, sem recortes dos crânios dos espectadores da fila da frente.
Morny
O Morny é uma sala mais pequena, a qual não tive oportunidade de visitar, até porque foi muito reduzido o número de sessões aí realizadas.
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II — Filmes
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Popee (DV)
Mê Thao (P)
Love at 7-Eleven (C)
Eliana, Eliana (C)
The Missing Gun (P)
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Doing Time (P)
I Love You (C)
Plastic Tree (C)
Suicide Club (P)
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One Night Husband (C)
Saving My Hubby (P)
Blessing Bell (C)
Hero (P)
Tamala 2010 (P) |
Blind Shaft (C)
Nothing to Lose (P)
Infernal Affairs (P)
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C — Competição; P — Panorama; DV — Competição em vídeo digital |
Sessão de Abertura
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O actor indiano Amitabh Bachchan recebe a distinção das mãos do Maire de Deauville, Philippe Augier.
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Apresentação do juri da longas metragens em competição.
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Apesar dos filmes da competição oficial terem começado a ser exibidos na quinta-feira, a sessão oficial de abertura foi no dia seguinte. Estranhamente, o programa mencionava o filme programado para ser projectado no final, «Sholay», mas não identificava o carácter especial da sessão programada. O referido filme foi precedido pela homenagem ao actor indiano Amitab Bachchan, que recebeu das mãos do Maire de Deauville, Philippe Augier, o estatuto de cidadão honorário da cidade, um agraciamento atribuído anteriormente ao Papa, à Rainha Isabel II e a Yuri Gagarin. Augier relembrou o estatuto do homenageado de Actor do Milénio, ao lado de Orson Welles e Charlie Chaplin. Bachchan, que começou por admitir que não tinha ouvido falar em Deauville, antes de ser convidado pelo festival, disse encarar a homenagem como um reconhecimento à indústria do cinema indiano e pediu para ser convidado todos os anos para estar presente no festival.
A sessão de abertura serviu também para apresentar os membros do júri (da esquerda para a direita, na foto ao lado): Pierre Jolivet (argumentista e realizador, a presidir) — ao fundo, Lionel Chouchan, da Public Système Cinema, co-presidente do Festival — Denis Robert (escritor e realizador de documentários, que preferiu esconder a cara), Antoine de Caunes, Sandrine Dumas, Jean-Marc Barr, Clotilde Courau e Christy Cheung (actores). Cheung foi a mais requisitada pelos fotógrafos, certamente pela sua fotogenia. Courau revelou-se algo preocupada com a possibilidade da parte superior do seu vestido vir a ser afectada pela Lei da Gravidade.
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Dia 1
Uma das opções para começar o festival foi ver «Popee», a primeira obra em competição na sessão de vídeo digital. O meio não me agrada propriamente, em particular quando não existe um conceito estético ou narrativo que compense o decréscimo de qualidade que nos faz suspirar por uma boa cópia em filme "a sério". A sala de projecção vídeo do CID têm um tamanho considerável, tendo em conta que esta selecção seria sempre tomada como acessória pela maior parte das pessoas e a qualidade de exibição revelou-se irrepreensível. «Popee» foi rodado de dia e em interiores bem iluminados, de modo que a imagem revelava boa qualidade e definição, mesmo num ecrã de proporções generosas. O filme baseia-se em experiências da realizadora Kim Ji-hyun e conta a relação de algumas pessoas com os seus cães de estimação, focando os bons momentos e os maus. No centro, está a história de Popee, que foi escolhido pelo dono na sequência de um anúncio de papel higiénico. Em novo, tinha um quintal e era o terror das cadelas da vizinhança, mas a mudança para a cidade acabou com o seu reinado. O pobre animal fina-se, logo no início do filme, e a narrativa descola em flashback. Em jeito de documentário, com depoimentos na primeira pessoa, «Popee» apresenta um ponto de vista sobre a relação entre os coreanos e os cães um pouco diferente daquele a que poderemos estar mais familiarizados, de obras como «Barking Dogs Never Bite» ou «Address Unknown», em que em vez de roupinhas e pedigree as referências são panelas e tachos.
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Viet Linh apresenta «Mê Thao».
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«Mê Thao, Thoi Vang Bong» [«Mê Thao - Il Fuit une Fois»] é uma co-produção franco-vietnamita cuja acção decorre no início do século XX, quando o Vietname estava sob a soberania da França. As personagens principais são Nguyen, um senhor feudal que reina sobre o domínio de Mê Thao, situado no norte do país, e Tam, um músico caído em desgraça, quando se vê envolvido na morte do filho de um cidadão poderoso. Nguyen acolhe Tam no seu domínio e nomeia-o intendente. Entretanto, o senhor sofre um sério revés emocional que o leva a rever a sua atitude perante o progresso, os bens manufacturados e a cultura europeia (francesa). Quase à beira da loucura, decreta, em toda a extensão do seu domínio, a destruição dos vestígios da "modernidade", desde livros a artefactos, e estipula que ninguém passará a fronteira do seu território trajando roupas ocidentais ou com objectos de produção industrial. Tanto Nguyen como Tam são afectados por tragédias pessoais, mas o modo como cada um deles lida com a situação é radicalmente diferente. Parte drama romântico, parte narrativa de época sobre a resistência à modernização — simbolizada na intenção da França em construir um caminho de ferro que atravessa Mê Thao — o filme de Viet Lihn pecará por um ritmo demasiado lento para a sua duração e por ser demasiado formal, ainda que acirre a atenção do espectador com cenas de sexo com vegetais inanimados.
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No final da projecção de «Love at 7-Eleven», os actores Ko Huan-ju e Jay Miao autógrafam alguns catálogos.
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De Taiwan veio «7-Eleven zhi Lian» [«Love at 7-Eleven»] para a competição. O filme é sobretudo um exercício formal e narrativo, com sede numa loja de conveniência do franchise norte-americano — que, obviamente, contribuiu para a produção do filme —, funcionando em três níveis distintos. Temos uma história principal, onde um músico e documentarista visita diariamente o 7-Eleven da sua área, cruzando-se com uma jovem que foge do passado e de uma ligação com um marginal. O "passado" entretanto encontra-a e torna difícil a nova relação que se parece avizinhar. A segunda história é um documentário sobre gueishas, realizado pelo cliente do 7-Eleven acima referido, onde contactamos, via imagem vídeo granulosa, com o dia-a-dia de uma jovem licenciada em filosofia que quis ser "geiko", por ser uma apaixonada pela dança tradicional japonesa. O terceiro nível narrativo surge na história da gabardina — "uma invenção do realizador", conforme o actor Jay Miao esclarecia a um espectador no final da sessão — que apresenta dois jovens estudantes em intercâmbio linguístico: ela ensina-lhe japonês e ele ensina-lhe mandarim. A princípio, o jovem apresenta-se como anti-japonês, mostrando-se pouco à-vontade com o convívio regular com a estudante japonesa, mas esse pormenor acaba por ser eliminado subitamente. O que Miao quis dizer com o facto deste segmento se tratar de uma "invenção" não é que o resto do filme seja "real", mas que a história paralela serve apenas para intercalar com o centro narrativo essencial, reforçando-o como uma nova ilustração sobre a impossibilidade da realização de uma relação amorosa. A certa altura. vemos o poster de uma série televisiva, a cuja imagem voltaremos mais tarde, altura em que se confirma a "ficção". Mas a verdade é que o próprio poster já anuncia esse estatuto, ainda que o título (衣雨, gabardina) não seja traduzido pela legendagem (inglesa ou francesa).
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T'as vu Riri? Riri Riza apresentou «ELIana, eliANA».
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«ELIana, eliANA» foi rodado em vídeo digital, no formato scope (algo que não é propriamente frequente, e que foi uma opção de Von Trier em «Dancer in the Dark»). O filme indonésio aborda o reencontro de uma mãe com a filha que abandonou a aldeia na direcção de Jacarta, cinco anos atrás, para fugir a um casamento arranjado. A história passa-se ao longo de uma noite, durante um período de umas doze horas, desde a chegada da mãe, até ao momento da partida do avião que poderá, ou não, levar as duas de volta ao lar. Enquanto a matriarca tenta convencer a filha que o seu regresso é um facto consumado, Eliana procura a sua companheira de quarto, que desapareceu sem deixar rasto, ao mesmo tempo que procura evitar os perigos resultantes da sua personalidade explosiva (tem tendência a usar o joelho em pontos centrais da anatomia masculina). A interpretação das duas actrizes é convincente (ganharam ex-aequo o Lotus para Melhor Actriz), mas o filme não é particularmente apelativo, com um final delicodoce previsível. O suporte DV é particularmente pouco agradável, sobretudo porque o filme foi todo rodado à noite.
O dia foi ganho com «Xun Qiang» [«The Missing Gun»], apresentado no Panorama. O filme do chinês Lu Chuan é uma produção da Columbia Asia, de modo que tem boas possibilidades de chegar ao nosso circuito comercial, mesmo que directamente para vídeo. A história e o registo formal situam-se entre os modelos de arte e ensaio e o cinema de entretenimento, sendo refrescante ver uma obra da "6ª Geração" que foge ao realismo social, com câmaras estáticas, planos gerais e montagem lenta. Aqui as câmaras movem-se, os ângulos variam e usa-se toda a espécie de efeitos formais para contar a história. É uma comédia que funciona, abafando as linhas gerais que poderiam estruturar um thriller, mas também tem uma componente dramática equilibrada, que virá a dominar o filme à medida que se aproxima da conclusão. A premissa é simples, com um desenvolvimento eficaz e muito satisfatório: um polícia de uma pequena aldeia acorda de manhã sem a arma de serviço. Perante a humilhação e face a consequências que se reflectirão em todos os elementos da sua esquadra, Ma Shan dá tudo por tudo para descobrir o paradeiro da pistola, que continha três balas na altura em que lhe perdeu o rasto. «Xun Qiang» resulta enquanto mero entretenimento, mas consegue ir mais longe, recusando-se a trabalhar exclusivamente para a boa disposição do espectador, caminhando para uma conclusão bem orquestrada e sem compromissos. O sucesso do filme é, em boa parte, devido ao desempenho do actor e realizador Jian Wen, que venceu o Grande Prémio de Cannes em 2000, com «Guizi Lai le» [«Devils on the Doorstep»] (adquirido pela Atalanta há algum tempo, mas ainda por estrear entre nós). «Guizi Lai le» não agradou às autoridades chinesas e o facto de Jian o ter levado a Cannes sem autorização, teve como consequência a imposição de uma proibição de filmar e de representar, esperando-se que o seu trabalho em «Xun Qiang» seja um sinal de que o castigo estará prestes a ser completamente levantado.
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Dia 2
A sexta-feira arrancou com «Kimusho no Naka» [«Doing Time»], de Yochi Sai (Chang Yang-il), filho de um japonês e de uma norte-coreana e baseado na experiência pessoal do "mangaka" Hanawa Kazuichi, que serviu três anos de prisão por porte de arma e uso de explosivos. Na prisão, Hanawa criou uma manga, com base na rotina diária do estabelecimento, que Yochi aqui adapta num filme irrepreensível, ainda que seja um conjunto de pequenos "nadas". As regras e a rotina de uma prisão japonesa revelam-se de uma organização, arrumação e formalismo caricaturais na perspectiva do ocidental médio, pouco familiarizado com os conceitos de respeito e deferência interpessoal japoneses, mas «Doing Time» consegue elevar a insignificância do dia-a-dia em cativeiro a uma surpreendente reflexão filosófica existencial. Não acontece nada e ao mesmo tempo acontece muita coisa. A rotina de Hanawa e dos seus quatro colegas de cela inclui a limpeza rigorosa das respectivas celas, que culmina no empilhar geométrico de roupas e lençóis, o trabalho nas oficinas para onde têm de marchar no ritmo certo e dentro das linhas marcadas no chão ou os banhos regulares, onde também se geram temas de conversa “fascinantes”. De tempos a tempos, alguns prisioneiros podem assistir a uma sessão de cinema, onde até têm direito a refrigerantes e doces — um acontecimento por todos esperado — caso em que podem marchar pelos corredores de modo casual (a sessão, a propósito, foi «Kids Return» de Kitano Takeshi, o que teve o bónus de permitir-nos ouvir uns segundos de Hisaishi).
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Zhang Yuan apresentou «I Love You» («Wo Ai Ni»).
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Igualmente directo-ao-assunto e sem artifícios como «Doing Time», «Wo Ai Ni» [«I Love You»], de Zhang Yuan, é uma história revestida de ironia, sobre um casal unido pelo grande amor das suas vidas. Ou talvez não. A introdução é bastante explícita; enquanto rolam os créditos, presenciamos um diálogo onde dois jovens fazem juras de amor e confessam ao outro que estão perante a pessoa pela qual esperaram desde sempre. Minutos depois ouvimos as mesmas juras e só um dos elementos do casal se mantém. Xiao Ju, enfermeira, volta a encontrar-se com Yi, um amigo que não via há algum tempo. Recordam o passado, começam a encontrar-se regularmente e, num ápice, fazem juras de amor e estão casados. No momento seguinte não se suportam um ao outro. Ela é um tanto ou quanto neurótica e ciumenta, mas ele é machista e dominador q.b. — ainda que esteja tendencialmente desempregado e seja ela a sustentar o lar — de modo que a atribuição de culpas ou a identificação com uma das personagens dificilmente será relevante. Os diálogos são trespassados por alguma sinceridade decorrente do improviso dos dois actores, que têm um bom desempenho. O problema do filme é o factor "mas e depois?", pois essa é a questão que mais rapidamente colocamos. O tom "naturalista", semi-documental, não chega a descolar. Não tomamos o partido por nenhuma das personagens e, por muita ironia que seja injectada por Zhang ou que esteja já presente no texto original (um livro de Wang Shuo), falta algo mais para nos captar o interesse, num filme que quase se reduz a hora e meia de diálogos exaltados entre duas pessoas.
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Cho Eun-sook fala sobre «Plastic Tree». Até à subida ao palco da actriz coreana parecia que estavam presentes no CID apenas dois ou três fotógrafos, incluindo o nosso, que se esforçou por não recorrer a um ângulo impróprio.
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«Plastic Tree» é um filme coreano produzido pelos estúdios RG Prince, propriedade do francês Régis Ghezelbash. Realizado por Eo Il-seon, relata a história de um triângulo amoroso, formado com a chegada de Byong-ho, um amigo de infância de Sue, um cabeleireiro que vive com a namorada, Won-young. Enquanto espera para embarcar num navio, Byongho fica a morar com o casal, destabilizando a relação aparentemente harmoniosa. Won-young — interpretada por Cho Eun-sook, presente em Deauville, com um vestido que fez muito sucesso — trabalha como estafeta num serviço de entregas, ao volante de uma moto. Como única mulher na empresa a exercer essa função é regularmente vítima de discriminação e até de alguns abusos. A relação com Sue é posta em causa pela chegada de Byong-ho, principalmente a componente sexual — e é aqui que o filme pode revelar-se algo incómodo. Um dos cenários parece preparar a história da reacção de Won-young aos abusos dos colegas (e ao machismo da sociedade sul-coreana), mas há um momento de violência que se transforma numa espécie de libertação sexual (uma cena que constituiria censura automática no Reino Unido). Noutro plano, Sue é também sujeito a uma pressão gradual, que prepara uma explosão final, mas a origem é obviamente outra (o peso na testa, desgraçado). A arquitectura das relações chega a ser frustrante, levando-nos, por um lado, a tomar partido por Byong-ho, enquanto vítima de uma sociedade fortemente discriminatória, mas, ao mesmo tempo, a não conseguir-mos sentir grande empatia por uma personagem que parece mais imatura e irracional do que propriamente perturbada. Por seu lado, Sue é afectado por sérios traumas de infância, que remetem para outra tradição sul-coreana em que os pais educam e tratam os filhos como se fossem do sexo oposto, caso gostassem de ter tido uma menina em vez de um menino ou vice-versa (cfr. «My Sassy Girl» ou... outro cujo título não é conveniente revelar). Há aqui elementos interessantes de um prisma sócio-cultural e os actores têm bons desempenhos, mas os ingredientes não resultam num cozinhado particularmente saboroso.
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«Suicide Club», também conhecido como «Suicide Circle», de Sono Shion.
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O dia começou bem com «Doing Time» e acabou melhor com o magnífico «Suicide Club», um filme que não é recomendado a pessoas sensíveis (foi o único com dois assustadores asteriscos no programa). Algumas cenas são passíveis de suscitar reacções na audiência, havendo uma em particular que teve um efeito de mola, removendo algumas pessoas da fila de trás, que voltariam segundos depois porque, com a pressa (pânico?), alguém se esqueceu de um qualquer objecto pessoal. «Jisatsu Circle» é assinado por Sono Shion, que é também escritor de poesia “avant-garde”, um dado que poderá ajudar a entender um pendor filosófico que trespassa um filme que se organiza estruturalmente como uma investigação policial e que é temperado por algumas cenas de grande crueldade. «Suicide Club» pode chocar e pode também fazer rir — ou as duas coisas ao mesmo tempo, em determinados momentos —, partindo de um tema com bem mais impacto na sociedade nipónica (o Japão é a “capital mundial do suicídio”, nas palavras de Tony Rayns, reproduzidas no catálogo do festival) do que na nossa e desenvolvendo uma reflexão sobre as relações entre os seres humanos. A notícia, na semana posterior ao festival, publicada no jornal “Público” sobre suicídios colectivos no Japão organizados via Internet, veio-nos relembrar que o balanço entre os elementos de ficção e de realidade presentes no filme poderia não ser exactamente como pensávamos. O filme arranca com grande impacto, quando com um grupo de mais de 50 raparigas estudantes de liceu, se junta na gare de comboios de Shinjuku, em Tóquio. A câmara ao ombro acompanha a reunião, num estilo de documentário, imagens casuais da hora de ponta. A voz ao microfone anuncia a passagem do comboio expresso e relembra aos passageiros a importância de se manterem para trás da linha amarela, por razões de segurança. As raparigas, descontraídas e sorridentes, ultrapassam a linha, dão as mãos e contam até três. O comboio passa.
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Dia 3
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Pimpaka Towira desenvolveu consideravelmente os temas presentes no seu filme «One Night Husband», antes da respectiva projecção.
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«Kuen rai Ngao» [«One Night Husband»] é a primeira longa-metragem da realizadora tailandesa Pimpaka Towira, autora de diversas curtas-metragens, e com uma carreira profissional onde se inclui o teatro experimental e a crítica de cinema. O filme, seleccionado pelo Pusan Promation Plan, ligado ao reputado festival sul-coreano, tem passado por vários festivais internacionais com vista a criar reputação, antes da estreia no próprio território de origem que deverá suceder nos próximos meses. Uma perspectiva feminina “pura” sobre a relação entre duas mulheres de classes sociais e meios diversos, unidas pelo desaparecimento do marido de uma delas, logo na noite de núpcias, poderia dar origem a algo mais interessante. Tal como as personagens, também as actrizes provêm de meios diversos: Nicole Theriault é uma estrela pop local e Siriyakorn Pukkavesa é actriz de carreira. A performance das duas não é certamente um problema. O mesmo não se pode dizer do ritmo do filme, constituído por uma sequência de travellings e zooms muito lentos, prolongados durante mais de duas horas, e da indefinição narrativa entre o drama pessoal e o thriller. Este último género parece dominar o início e no final do filme, com todo o recheio, onde se pretende construir a relação entre as duas mulheres como o essencial da obra, a ficar muito mal ensanduichado. A certa altura ainda se sugere uma relação mais intima entre as duas, o que poderia não chegar para salvar o filme, mas sempre lhe poderia trazer algum colorido.
Partindo também de uma situação em que uma mulher é confrontada com a ausência do marido, o filme coreano «Gutseula Geumsoona» [«Saving My Hubby»] surge num registo completamente diferente, pois trata-se de uma comédia de acção servida por uma fascinante galeria de personagens. A primeira obra de Hyum Nam-sub, argumentista de «2009 – Memórias Perdidas», tem a actriz Bae Doo-na («Sympathy for Mr. Vengeance», «Barking Dogs Never Bite») como protagonista, no papel da jovem Geum-soon, uma estrela de volleyball retirada. A imaturidade da protagonista e a dificuldade em lidar com a vida de casada é ilustrada nos primeiros momentos do filme, quando Geum-soon, acordada pelo choro ininterrupto da bebé, exige ao marido que faça qualquer coisa (qualquer coisa!) para a calar. A tensão começa a gerar-se quando os sogros dela decidem visitá-los, para mais chegando às 5 da manhã do dia seguinte. A piorar, o marido, Joon-tae, começa no novo emprego e as boas-vindas surgem na forma de um festim pós-laboral quase suicida, com o patrão e os colegas, afogado em karaoke e concursos de ingestão alcoólica cronometrada. Geum-soon recebe um telefonema de um clube nocturno de onde lhe dizem que o marido ficará refém enquanto ela não lhes levar uma quantia absurda para pagar as bebidas alcoólicas que ele supostamente consumiu. Deixando a culinária a meio, com a bebé presa às costas, Geum-soon embarca num percurso por ruas iluminadas e becos escuros, à procura de um bar com um nome difícil de memorizar, envolvendo-se com personagens estranhas e, inadvertidamente, causando um embate entre dois grupos de gangsters rivais. «Saving My Hubby» é uma excelente comédia que conseguiu o feito de ser também o filme mais “emocional” de um festival em que o recheio da competição foi constituído por exercícios formais distanciados. Bae Doo-na está uma vez mais em grande forma (em mais que um sentido do termo), sendo uma pena que os seus filmes tenham tendência a não funcionar muito bem comercialmente na Coreia do Sul, como sucedeu com este, esperando-se que, no mínimo, gere algum culto no mercado vídeo e DVD.
«Koufuku no Kane» [«Blessing Bell»] de Sabu, foi o segundo filme da competição a erguer-se acima da mediania, logo depois de «Blind Shaft». Com Terajima Susumu — um rosto muito familiar dos filmes de Kitano Takeshi — «Blessing Bell» pode ser encarado como uma longa tira de banda desenhada absurda: a história arranca da esquerda para a direita, atravessando diversos quadros e cenários, até que, a determinada altura, o percurso se inverte. O protagonista vê-se no meio de acontecimentos no mínimo invulgares, que começam com o encerramento de uma fábrica onde supostamente iria iniciar o seu primeiro dia de trabalho (não parece ser claro concluir isto do filme, mas é o que se refere nas notas de produção, no catálogo), e que passam por um atropelamento, uma passagem por um hospital, pela prisão, conversas com espíritos, um grande prémio na lotaria, o salvamento de crianças, gangsters que morrem inesperadamente, etc. O registo pode fazer-nos recordar as personagens de Kitano, silenciosas e passivas até que são forçadas a agir. O final parece existir apenas para dizer à audiência “apanhei-vos!”, vindo, de certa forma, negar o registo “arthouse” da hora e meia anterior, arriscando-se a tornar o filme num exercício formal limitado e mais adequado a uma curta-metragem, mas a verdade é que o filme de Sabu não se revela aborrecido em momento algum, nem o tempo é difícil de passar. O fluir permanente da câmara, atravessando os diversos quadros, em muito contribui para tal.
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Cheung Man-yuk e Leung Chiu-wai num dos posters de «Ying Xiong».
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«Ying Xiong/Hero» era certamente o título mais esperado no Festival de Cinema Asiático de Deauville e, não sendo incluído em nenhuma sessão especial, (de encerramento ou abertura), constituiu uma das várias enchentes de público, mais ou menos garantida à partida com metade da sala reservada para convidados. Este sistema não originava pessoas à porta sem conseguirem entrar — não creio que tal tenha chegado a suceder, mas nas sessões mais populares conviria chegar com 20 minutos ou meia hora de antecedência, devido ao risco de se ficar mal sentado — pois a organização desbloqueava algumas filas inicialmente reservadas, à medida que se ia verificando o real número de convidados que correspondiam à chamada em confronto com as necessidades de sentar o público. A organização mostrou-se muito bem oleada, sem quaisquer falhas neste capítulo, graças a um número de funcionários adequado, distribuídos pelas entradas e por vários pontos da sala, comunicando via walkie-talkies. Na prática, nunca se viu um lado da plateia apinhado de público e outro lado “reservado”, com meia dúzia de pessoas sentadas.
O wuxia pian de Zhang Yimou não desapontou, apesar de conseguirmos entender, sem concordar, os que o consideram um exercício visual oco e pretensioso, pois o filme é tão belo visualmente (fotografia de Christopher Doyle) que nos faz pensar que deve haver qualquer coisa de errado ali. É notório, ou talvez seja sugestão (mania da perseguição?), que o filme beneficiaria com alguma exposição narrativa. Parece-me que o “director's cut”, que se espera começar a aparecer em edições de DVD em Hong Kong e na China, no início de Abril — depois do mercado ter sido inundado com uma mão cheia de edições com a versão mais curta —, poderá melhorar substancialmente a apreciação do filme. A narrativa de «Ying Xiong» é complexa, fugindo à linearidade de muitos filmes de género, apresentando segmentos com acontecimentos que se vão repetindo duas e três vezes, consoante a perspectiva da pessoa que conta ou da interpretação do interlocutor. É um filme “patriótico”, mas assim também se podem considerar quase todos os filmes de artes marciais de época, de modo que parece um disparate pegado rotulá-lo de “propaganda”, como já li algures. Funciona bem como filme de acção (coreografias e wirework de Ching Siu-tung), que não se sobrepõe ao contar da história. Funciona no plano estético e também no narrativo. Apesar da estratificação e da revisitação progressiva dos acontecimentos, passível de quebrar a ligação emocional às personagens, as mudanças de atitude de algumas, confrontadas com a necessidade da união dos reinos da antiga China, aferem-se convincentes.
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t.o.L. (com o microfone), Tsutsumoto Michiro e Okada Kenji, os responsáveis pela animação 3D de «Tamala 2010».
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«Tamala 2010, A Punk Cat in Space» encerrou o dia de sábado, com pitadas de surrealismo. A equipa encabeçada por t.o.L apresentou o filme, descrevendo-o como algo que “não é bem animação, nem é bem cinema” e afirmando que no Japão as audiências se dividiram entre os que gostaram muito e os que o detestaram completamente. «Tamala 2010» é uma história de ficção científica a preto e branco (com cor, aqui e ali), com um estilo de desenho muito retro, a fazer lembrar Mighty Mouse ou talvez Astro Boy. Num mundo paralelo, o universo é dominado quase integralmente pela corporação Catty & Co. Tamala, uma gata de um ano (mas de língua afiada, sempre a praguejar) faz uma viagem até Orion, em busca das suas origens, mas é forçada a parar no violento Planeta Q, cujas cidades vivem no caos, assoladas por violência nas ruas e terrorismo. Tamala revela-se uma peça numa engrenagem complexa, que a própria não entende. Com uma narrativa que não segue um rumo lógico, «Tamala 2010» intercala momentos de puro surrealismo, com exposição narrativa na forma de diálogos de uma extensão pouco frequente no cinema animado. É difícil de dizer se será um filme para ser apreciado pelos fãs da anime tradicional, pois tratar-se de uma obra que é tudo menos convencional. Esta foi a primeira projecção do filme fora do Japão.
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Dia 4
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Li Yang falou muito brevemente das dificuldades de produção de «Mang Jing».
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«Mang Jing» («Blind Shaft/Blinder Schacht»), co-produção China/Hong Kong/Alemanha foi o vencedor unânime da competição desta edição do Festival de Deauville. Rodado sem autorização em minas do norte da China, este é o género de filme que não só está fadado para ser banido no seu país de origem como o seu realizador será sujeito a uma proibição de aí poder voltar a trabalhar em cinema. «Blind Shaft» conta a história de Song e Tang, dois homens que recorrem a um esquema mórbido para conseguir dinheiro: convencem jovens ingénuos a passarem-se por familiares de um deles, como condição necessária para obterem um emprego numa mina de carvão. Chegado o dia e proporcionando-se a oportunidade, matam a vítima no interior da mina, simulando um acidente, e chantageiam o dono da exploração (ilegal) para que lhes pague a compensação devida. Filmado num estilo distanciado, semi-documental, «Blind Shaft», chegado a Deauville já com um Urso de Prata de Berlim, beneficia de boas interpretações (o jovem Wang Baoqiang recebeu o prémio de interpretação) e de um argumento equilibrado, bem estruturado, com a duração adequada, que se reveste de forte ironia, sem sentir a necessidade de se armar em espirituoso. Curiosamente, tal como sucedeu em relação a «Suicide Club», enquanto este texto era elaborado surgiu igualmente na imprensa uma notícia relacionada com a temática aqui explorada: uma explosão numa mina de carvão no norte da China provocou mais de 50 mortos. A mina operava ilegalmente e não foi encerrada devido às ligações do proprietário a um funcionário do Partido Comunista. Se as autoridades permitem que estas notícias sejam publicadas na imprensa chinesa (algumas, pelo menos), já o cinema é encarado como um meio que requer maior controle.
O apelido Pang tornou-se célebre na sequência de dois títulos-referência do cinema asiático moderno: «Bangkok Dangerous» e «The Eye», realizados pelos detentores desse apelido, os irmãos Danny e Oxide. Oxide já havia realizado sozinho um segmento do tríptico sobrenatural «Bangkok Haunted» [vd. Sitges 2002] a agora chegou a altura de Danny assinar «Nothing to Lose» [com o curioso título original «1+1=0»], uma comédia de acção co-produzida pela Tailândia, Hong Kong e Singapura, cuja sinopse parece interessantíssima, mas com um resultado final a revelar-se decepcionante, consubstanciando no domínio da forma sobre o conteúdo, onde a atenuante de ser “divertimento puro” não é suficiente para atenuar a desilusão. O ponto de partida é o encontro de dois potenciais suicidas, no topo de um edifício alto de Bangkok: Somchai (Pierre Png), um rapaz cheio de dívidas de jogo e Fresh (Gogo), cujas motivações ficam para revelar mais tarde. Depois de interagiram e de “estragarem o momento”, concluem, singelamente, que se não têm nada a perder, porque não hão-de fazer o que lhes apetece? Tal poderá passar por sair de uma loja sem pagar ou até por assaltar um banco, mas o envolvimento com uns rufias ligados ao jogo ilegal pode sair-lhes caro. O problema do filme é o tom mais dramático que se pretende misturar com a comédia descomprometida, filmada e montada a alta velocidade, com toda a espécie de artifícios visuais. O drama não convence e o filme não consegue redimir-se do tom de piloto automático criando um final com algum impacto. Há algumas cenas de acção e de matança, filmada de modo surpreendentemente contido, incluindo um grupo inteiro de indivíduos a ser eliminado off-camera que nos pode fazer questionar se se trata de uma opção estética ou se o filme foi montado de acordo com a censura rígida de Singapura.
«Miu Gaan Diy/Infernal Affairs», de Andrew Lau Wai-keung e Alan Mak Siu-fai foi outro dos títulos fortes apresentados no Panorama de Deauville. Com as super-estrelas Andy Lau Tak-wah e Tony Leung Chiu-wai, «Infernal Affairs» — um trocadilho no título inglês, não uma gralha — é um filme de polícias e tríades sustido por um argumento bem delineado, que dá mais importância às personagens do que a complexidades ou surpresas da história. Lau e Leung têm um trabalho exemplar, principalmente o último, sendo acompanhados por Anthony Wong Chau-sang e Eric Tsang Chi-wai, com papéis menores de Sammi Cheng Sau-man e Kelly Chen Wai-lam, no papel dos interesses românticos. Eric Tsang, mais conhecido por desempenhos em comédias, compõe o vilão de serviço, conseguindo transmitir inteligência e ameaça, ainda que a sua função não venha a ser exactamente a tradicional de um filme deste género. O rumo da narrativa não segue formulários e não aceita compromissos, nem no final (a edição DVD inclui um alternativo). Há um ou dois momentos em se avança através de algumas facilidades de escrita do texto, as quais se conseguem perdoar. Não se trata de um filme de acção, antes se desenvolvem as políticas e estratégias no seio de um jogo de gato e rato entre a polícia e um grupo de traficantes de droga, com os dois peões principais ao centro. No início do filme, apresenta-se o recrutamento de “toupeiras” na polícia e nas tríades e usam-se actores diferentes, mais jovens, talvez com a intenção de não tornar tão fácil identificar de imediato quem assume esses papéis (mas qualquer sinopse facilmente o revelará).
«Infernal Affairs» foi uma boa forma de rematar um festival com uma boa selecção de títulos na Secção Panorama e com uma Secção Competitiva que acabou por assumir um pendor sobretudo cultural, permitindo o acesso a obras que, devido à sua proveniência, não seriam visionadas numa sala de cinema de outro modo. Isto é uma forma positiva de encarar a temperatura relativamente morna que se fez sentir no CID, durante a projecção da maioria dos títulos em competição, reunidos por forma a possibilitar uma grande variedade de origens (China, Coreia, Indonésia, Japão, Taiwan e Tailândia), procurando sempre uma linguagem do cinema de arte e ensaio, que por vezes cai na falta de imaginação narrativa e formal, reduzindo-se a uma história improvisada, pouco interessante, enquadrada por uma câmara demasiado conservadora. Resta esperar pelo próximo ano para vermos como evoluirá a linha editorial do festival, agora com uma nova direcção. Tudo indica que o festival deverá crescer e tornar-se cada vez mais importante, no âmbito da divulgação das várias cinematografias asiáticas.
Sessão de Encerramento e Entrega de Prémios
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O realizador Li Yang, numa das cinco ocasiões em que subiu ao palco.
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Plano geral com o júri e os premiados: Riri Riza, à esquerda, com os dois Lotus para as suas actrizes e Li com as mãos cheias.
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O facto mais destacável da sessão de entrega de prémios foi, obviamente, as repetidas chamadas ao palco do realizador Li Yang, cujo filme «Blind Shaft» foi galardoado com cinco dos sete Lotus atribuídos: Melhor Realizador, Melhor Filme, Lotus Air France, Melhor Actor (Wang Baoqiang) e Lotus do Público. Sobrou o Lotus Numerique, atribuído a Ryota Sakamaki, por «Moon Overflowing» («Koboreru Tsuki»), e o Lotus para Melhor Actriz que foi atribuído não a uma, mas a duas actrizes: Rachel Maryam Sayidina e Jajang C. Noer pelo filme indonésio «ELIana, eliANA». O troféu foi recebido pelo realizador Riri Riza, que afirmou ir enviar mensagens de SMS para as actrizes, assim que voltasse para o seu lugar (ter-lhe-á ocorrido que era madrugada na Indonésia?)
Li Yang mostrou-se naturalmente satisfeito com os diversos troféus, a que correspondem benefícios efectivos, para lá da posse de uma estatueta com design, e que fica bem no topo de qualquer lareira: o Lotus Air France consiste numa viagem para um destino à escolha do realizador, dentro da rede do operador, com vista à promoção do seu filme, e o Lotus do Melhor Filme, é suportado pelo patrocinador Métrobus, que oferece 60 000 Euro para a campanha promocional do filme, nos seus placards distribuídos em estações e redes de transportes públicos francesas. Li teve a honra de se sentar na Cadeira do Realizador (desconheço se podia levá-la com ele), afirmando ser “a primeira vez que tenho o privilégio de me sentar numa cadeira de realizador. Na China sento-me numa caixa de fruta.”
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Na foto: Ao centro, Kim Sung-chul, Director Executivo Delegado da Asia-Europe Foundation, entidade patrocinadora da secção DV. Por trás, da esquerda para a direita, os jovens realizadores: Kim Ji-hyun, («Popee», Coreia do Sul), o vencedor Ryota Sakamaki («Moon Overflowing», Japão), Colin Goh («Talking Cock», Singapura), Vincent Chui («Leaving in Sorrow», Hong Kong) e James Lee («Room to Let», Malásia). Faltou o britânico Daniel Gordon, realizador de «The Game of Their Lives». A ASEF inclui representantes de 25 países europeus e asiáticos e a promove a deslocação de jovens realizadores asiáticos à Europa, no âmbito dos seus objectivos de promover trocas culturais entre os povos dos dois continentes. |
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III — Palmarés
Lotus Melhor Filme: «Blind Shaft»
Lotus Melhor Realizador: Li Yang («Blind Shaft»)
Lotus Air France (prémio da imprensa): «Blind Shaft»
Lotus do Público: «Blind Shaft»
Lotus Melhor Actor: Wang Baoqiang («Blind Shaft»)
Lotus Melhor Actriz: Rachel Maryam Sayidina e Jajang C. Noer («ELIana, eliANA»)
Lotus Digital: «Moon Overflowing»
IV — Galeria de Fotos
Uma selecção de fotografias dos convidados do festival e das sessões de abertura e encerramento.
Agradecimentos: Pedro Oliveira e Paulo Luís. Agradecimento especial a Thomas, HongKong CineMagic.
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29/03/2003 |