Mann (Lee) é uma jovem de 20 anos, cega desde os dois, que se sujeita a um transplante de córnea, para poder recuperar a visão. A operação parece ser bem sucedida, mas, enquanto não ganha a capacidade plena para distinguir as pessoas e objectos em seu redor, Mann vê sombras e figuras que não pertencem ao mundo físico. O seu médico não a leva a sério, preferindo acreditar que o problema é emocional ou um mero efeito secundário da operação que, mais cedo ou mais tarde, irá desaparecer. Mas, à noite, no hospital, a jovem vê pacientes a abandonarem os quartos, sem esperarem pela alta médica, acompanhados por figuras negras e de traços indistintos. Em casa, continua a ser atormentada por sons e imagens, que aparecem e desaparecem, sem aviso prévio. [1]
«The Eye», o segundo filme dos gémeos Pang, seguindo-se a «Bangkok Haunted» (2001), é um exemplo da regeneração que alguns cineastas tentam actualmente levar a cabo no cinema de Hong Kong, um território que nunca foi propriamente célebre pelo horror dito “sério”. Se nos tentarmos recordar de títulos de horror produzidos na ex-colónia britânica, mais facilmente chegaremos a comédias de horror («Bio-zombie»), a sexploitation («The Imp» ou «Eternal Evil of Asia») ou a títulos mais extremados («Dr. Lamb» ou «The Untold Story»), ainda que assentassem num misto de comédia tola, sexo gratuito e violência gráfica explícita, podendo ainda mencionar-se o subgénero dos "Kung-fu zombies", popular a partir de meados dos anos 80, depois do sucesso de «Mr. Vampire», que deu origem a sequelas e derivados.
«Gin Gway» [2] não se integra em nenhum dos (sub-)géneros referidos no parágrafo anterior e, por esse prisma, talvez se possa dizer que não se reconduz a um filme típico de Hong Kong. Por outro lado, passados alguns meses, já se encontravam em distribuição vários títulos similares, incluindo comédias que se apropriavam dos seus elementos, tendo assim de admitir que o “tipo” possa já ter sido criado.
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Angelica Lee Sinje (Mann).
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Apesar de haver quem rapidamente lhe aponte o dedo como mais um derivado do popular «O Sexto Sentido» — como se o filme de Shyamalan fosse o primeiro a incorporar uma personagem com capacidade especial para ver mais “além” —, «The Eye» segue uma estrutura radicalmente diferente, onde eventuais "twists" não assumem grande importância, da forma como são integrados num conjunto narrativo bastante coeso. É certo que algumas cenas poderão recordar o referido filme, pois, com esta premissa, é incontornável que existam semelhanças formais entre as duas obras (e entre estas e muitas outras), mas o modo como (e quando) os espíritos se manifestam é diverso. Na sua essência, o filme dos Pang é marcadamente asiático e destituído de uma sensibilidade ou de um motor narrativo específicos do cinema anglo-saxónico, que o poderiam impregnar se houvesse o intuito de recriar mecanismos ou temas de um filme ocidental, tornado popular numa escala global.
Estamos na presença de um horror tornado eficaz tanto pela sugestão como por métodos mais explícitos e convencionais. Danny e Oxide Pang não estão interessados num cinema particularmente contido, com câmaras imóveis ou planos que se desenrolam lentamente, assentando apenas no suspense ou na criação de tensão com base no que não se mostra, apenas se sugere; antes pelo contrário, abundam formalismos visuais, movimentos rápidos da câmara e ângulos que geram perspectivas desconcertantes. O mesmo se poderá dizer do design sonoro, incorporando bons exemplos de como a separação de canais traseiros pode dar grandes contributos para que o espectador se sinta ameaçado por uma força desconhecida, que pode surgir, a qualquer momento, de qualquer direcção.
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Candy Lo como Yee, irmã de Mann.
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Filmes com "videntes" não são novidade e existem diversos elementos quase obrigatórios. Ninguém acredita no detentor do poder especial, até ao momento em que aparece alguém que quer ajudá-lo/a (mesmo que não esteja muito seguro/a do que realmente se passa). Também é costume criarem-se situações elaboradas de modo a ilustrar esse poder ou visão, sendo aqui onde podemos apontar uma semelhança com o «O Sexto Sentido», nomeadamente em relação ao contexto em que os protagonistas tomam contacto com alguns espíritos. E não é, de todo, invulgar que estas capacidades sejam vistas como um tormento ou uma maldição (quanto a ver fantasmas é difícil tomar tal capacidade como uma bênção). É certo que estamos no meio de ingredientes familiares, mas os irmãos Pang dominam o material e moldam-no na forma de um bom filme de horror, que não necessita de choques ou surpresas gratuitas e que não se arrepende do rumo para onde aponta, por via de compromissos ou cedências, à medida que nos aproximamos da conclusão. Aqui, não se pode propriamente falar em surpresas (nem há "twist" que sugira reinterpretar tudo o que vimos até então), mas consegue-se contrariar a previsibilidade e o aligeiramento dramático que se pareciam prestes a instalar, talvez sugeridos por condicionalismos cinéfilo-pavlovianos.
Os Pang não se coíbem de enegrecer um filme que nunca foi muito luminoso, ao invés de enveredar por mecanismos de cliché, sossegando a audiência, segundos depois de vermos as personagens a correrem desesperadas, em câmara lenta, em luta contra o relógio. Nesse sentido, se há uma surpresa nos momentos finais, será afinal a opção de apresentá-la com uma estranha naturalidade, reforçada pelo facto de estarmos num filme de temática sobrenatural.
Rodado em Hong Kong e na Tailândia, falado em cantonês, mandarim e tailândes, «Gin Gwai» guarda em si outras distintas características do meio histórico e cultural de onde provém, demarcando-se de possíveis subsunções a mecanismos tornados demasiado familiares no cinema de Hollywood, nomeadamente a especificidade de tudo o que está relacionado com a morte e os espíritos, que se reconduz à filosofia daoísta. «The Eye» esteve em competição na Secção Oficial Fantàstic, em Sitges, onde obteve o Prémio para a Melhor Fotografia.
[1] O nome da personagem na legendagem da versão portuguesa (baseada num guião inglês) foi remisturado para Mun Wong Kar, apesar de em algumas ocasiões ser referida como "Miss Wong". O apelido não deve ser, naturalmente, usado no meio do nome, nem o nome próprio deve ser fragmentado deste modo (o nome original é Wong Kar-mun e a sua ocidentalização, i. e., inversão do apelido com o nome próprio, seria Kar-mun Wong).
[2] O título é constituído pelos caracteres de "見 ver" e "鬼 fantasma" (ou "espírito") mas juntos formam o verbo "ir para o inferno".
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