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Sitges 2007
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2. Gore e Terror Clássico

2.1 Dentadas e Drama
George A. Romero com o Grande Prémio Honorífico de Sitges.
Uma das primeiras sessões a que assisti foi aquela onde George A. Romero seria homenageado pela sua carreira, recebendo o Gran Premi Honorífic do festival, antes da projecção de «Diary of the Dead». Romero disse que se tratava de um filme feito com muito baixo orçamento, não esperando mostrá-lo numa sala com a dimensão do Auditori.

«George Romero's Diary of the Dead» tem tudo para dividir as reacções dos fãs dos filmes de zombies de Romero: é mais do mesmo, mas diferente. Ou seja, temos as mesmas preocupações sociais, a mesma crítica ao poder político e à sociedade, com actualizações para a era Bush e dos reality shows. O formato é o de um documentário falso, que um grupo de jovens estudantes de cinema leva a cabo, quando surge uma epidemia de mortos vivos, com a intenção de registar o possível fim da humanidade para que os eventuais sobreviventes tenham acesso ao documento histórico. Romero tem a experiência no género (e no comentário), apesar de ter admitido no Q&A, a responder a uma pergunta de Pedro Souto (MOTELx), que não estava de todo à vontade com as “novas tecnologias” ou com o vídeo digital.

O que menos satisfaz não era, de todo, imprevisível. Sucede na generalidade dos documentários falsos ser difícil sustentar as razões para que A ou B continuem a filmar – já desde «Holocausto Canibal» (1979), de Ruggero Deodato (jurado da SO Fantàstic). Aqui, as motivações são o desejo mórbido/voyeurista dos “cineastas”, por um lado, e a referida vontade de documentar os acontecimentos, por outro. Uma ou outra vez é-nos difícil engolir que a câmara esteja ligada e apontada, mas Romero usa humor q.b. e diversifica o modo de enquadrar e captar a imagem, incluindo, por exemplo, tomadas de câmaras de vigilância. Também não falta gore e um pouco de drama – algo que fica sempre bem num filme de zombies.4

A actriz Jess Weixler avisa que "o sexo muda tudo" no poster de «Teeth».
De cadáveres comedores de carne humana passamos para outro tipo de dieta e uma ameaça mais púdica. «Teeth», de Mitchell Lichtenstein, tem como protagonista uma jovem chamada Dawn, que dá palestras no meio estudantil sobre a virtude, difundido noções de grupos cristãos que não só proclamam a virgindade até ao casamento, como incentivam os jovens a orgulharem-se disso, envergando símbolos, nomeadamente o “anel de pureza”. 5 Este procedimento é um misto de puro orgulho e do conhecido ensejo pelo martírio associado ao cristianismo, já que um adolescente que use tais símbolos é, garantidamente, alvo de chacota dos colegas (excepto se estudar na escola de uma comunidade religiosa).

O ponto de partida é, claro, uma crítica ao puritanismo exacerbado de um cristianismo evangélico norte-americano, por vezes com atitudes tão “radicais” como a que o poder conservador que nessa fé se alicerça critica, por exemplo, nas sociedades dominadas pelo islão. Um das formas de ilustrar esse puritanismo e os seus reflexos no sistema de ensino – não entramos na questão do “design inteligente” – é um livro de biologia onde existe um diagrama com a anatomia de um pénis, mas a página da vagina está tapada com um autocolante (integrado no poster que se reproduz à direita, ostentando o nome do realizador).

A personagem de Dawn acredita piamente nas suas convicções e orgulha-se da sua pureza. Quando chega o momento da verdade, dá-se a materialização do mito da vagina dentata, num registo que dificilmente poderia ser de “horror”, mesmo quando surgem algumas emasculações gráficas. Mantém-se um certo balanço entre o “juvenil” e o “adulto”, mas a personagem torna-se pouco credível na parte final do filme que, além do mais, tem dificuldade em suster o conceito durante tanto tempo. Sobre o medo da vagina (ou do feminino) Miike Takashi fez melhor em «Visitor Q» e «Gozu». É que o tema pedia muito da extravagância que o realizador japonês tão bem sabe dosear.

Radha Mitchell («Silent Hill») é uma guia turística em perigo
no filme «Rogue», de Greg Mclean.
Dentes mais normais ou pelo menos em locais de onde esperamos mais perigo: «Rogue», vindo da Austrália, com assinatura de Greg Mclean, realizador de «Wolf Creek» (2005) – aparentemente um dos mais interessantes filmes de terror do último par de anos que não vi – é um típico filmes sobre ameaças da natureza que cresceram um pouco demais, na tradição de «Jaws» (1975). Não é o primeiro filme sobre crocodilos assassinos, nem será o último, mas não me lembro de nenhum melhor. Não é 'B', tem uma atitude perfeitamente comercial, com outro à-vontade permitido pela produção off-Hollywood (apesar de ter investimento americano e produção executiva dos irmãos Weinstein), e mostra como se pode fazer um bom filme de género: directo ao assunto e acreditando que um filme com crocodilos assassinos devoradores de humanos pode ser levado a sério.

Mclean, também argumentista, não povoa o texto de gracinhas nem sente necessidade de criar um enlace romântico forte ou que constitua a saída narrativa do filme. No fundo, concentra-se no que interessa: o crocodilo. O bicho é quase sempre digital (Weta), com animatrónica sempre que necessário (Creature Workshop) mas a integração é convincente, por uma mistura de boa execução técnica e de habilidade na direcção e da montagem, suficientes para criar tensão que não nos impela a olhar com demasiada atenção para elementos pós-produzidos. Não deixa de ter os seus defeitos, sendo o maior os convenientes estragos mínimos com que uma personagem sai da bocarra do crocodilo. Fora isso, prende-nos bem, mesmo até ao final.

Família feliz: «Joshua».
De volta à metrópole e aos perigos humanos, com mais três títulos a concurso na Fantàstic, começando por «Waz» (RU/EUA), num estilo “clássico” sobre psicopatas assassinos. A obra, assinada por Tom Shankland, tem Stellan Skarsgård na pele de um detective que se vê a braços com uma série de crimes, com requintes macabros. O assassino captura as vítimas, tortura-as e dá-lhes uma saída: podem parar de sofrer e ser libertados trocando de posição com um ente querido – amante ou familiar. Os métodos e a violência forte remetem para alguns dos títulos extra-fortes dos últimos anos ou, como Derek Elley ilustra na Variety, mescla conceitos de «Se7en» (1995) e «Saw» (2004). Elley refere outra coisa que mesmo fora dos EUA seria difícil de não notar, que é o cenário e os actores que pretendem (supostamente) passar-se por norte-americanos. Mas, para nós, europeus, pouco nos interessarão as pronúncias ou que a cidade tenha um ar estranhamente irlandês.

Não sendo brilhante, é um entretenimento bem produzido, e com um desenvolvimento curioso. Não faltam os twists obrigatórios e, no caso, a surpresa advém também do facto de não esperarmos algumas decisões no âmbito da “moral social” (se assim se pode dizer) por parte do argumento. Se pararmos para pensar, há muita coisa difícil de engolir, mas o filme progride com elán suficiente para que não queiramos fazê-lo.

Afastando-nos do gore e do sangue – mas só até ao fim deste sub-capítulo – chegamos a «Joshua» (EUA), produção independente, distribuída pela Fox. Uma realização de George Ratliff, que deu o prémio de interpretação no festival a Sam Rockwell. Ao lado de Rockwell está Vera Farmiga, que vimos recentemente no remake americano de «Infernal Affairs». Os dois interpretam um casal que acaba de ter o segundo filho, uma menina. Joshua, de 9 anos, comporta-se de forma cada vez mais estranha, mas o espectador é levado a duvidar do que realmente se passa na sua mente. Na verdade, até ao final, o filme resiste a uma definição. Joshua pode ser um filho do demónio ou um miúdo perturbado ou até algo diverso. Não é aqui que vai sabê-lo.

Entrada e exterior do Casino Prado, onde se encontra o terceiro ecrã do festival.

Ratliff dirige um filme que muito provavelmente só poderia ser completado a nível “independente”. Rejeita “ritmo” e deixa que a tensão e a atmosfera se vão delineando naturalmente, ao longo deste drama familiar que se vai travestindo de thriller psicológico. Farmiga, a caminho de uma depressão originada pelo stress da dupla maternidade, contribui em muito para que o filme funcione e para que se afira tão “quotidiano”.

George Romero no Casino Prado, durante a sessão de perguntas e respostas que se seguiu à projecção de «Creepshow». Passe com o rato sobre a imagem para uma visão geral da sala.
Ainda fora de sangrias e do sobrenatural, «Stuck» (Canadá/EUA/RU) é uma investida no socio-realismo por parte do cineasta “oficial” de H.P. Lovecraft, Stuart Gordon, que esteve em Sitges para uma masterclass – associada a “The Black Cat”, da série “Masters of Horror” (exibido no MOTELx, em Setembro). Gordon, que também escreve a base do texto (o argumento é de John Strysik), filma a história de uma técnica de geriatria que, com uma promoção à vista, atropela um sem-abrigo e fica com ele preso no pára-brisas do carro. Como consumiu ecstasy a rodos, fica confusa e não sabe o que fazer, deixando o carro (e o homem atordoado e a esvair-se em sangue) na garagem. Enquanto pensa se liga ou não liga para as emergências bebe uns copos e vai para a cama com o namorado. Entretanto, o que fazer com o corpo? Corpo? Mas o homem ainda está vivo!

Nada desilude em «Stuck». Sem choques ou surpresas enxertadas no corpo narrativo, Gordon limita-se a ser fiel a uma premissa que podia ser uma daquelas peças pequenas numa coluna do Destak. “Homem passa dois dias preso no pára-brisas de um carro”. (Estou certo que encontrariam um título mais conciso; concisão não é o meu forte.)



A seguir: Midnight X-Treme
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4 Cfr., por exemplo, «Return of the Living Dead III» (1993) e «Shaun of the Dead» (2004).

5 Pode adquirir um anel da pureza em purityring.com

5/12/07

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