O que menos satisfaz não era, de todo, imprevisível. Sucede na generalidade dos documentários falsos ser difícil sustentar as razões para que A ou B continuem a filmar – já desde «Holocausto Canibal» (1979), de Ruggero Deodato (jurado da SO Fantàstic). Aqui, as motivações são o desejo mórbido/voyeurista dos “cineastas”, por um lado, e a referida vontade de documentar os acontecimentos, por outro. Uma ou outra vez é-nos difícil engolir que a câmara esteja ligada e apontada, mas Romero usa humor q.b. e diversifica o modo de enquadrar e captar a imagem, incluindo, por exemplo, tomadas de câmaras de vigilância. Também não falta gore e um pouco de drama – algo que fica sempre bem num filme de zombies.4
De cadáveres comedores de carne humana passamos para outro tipo de dieta e uma ameaça mais púdica. «Teeth», de Mitchell Lichtenstein, tem como protagonista uma jovem chamada Dawn, que dá palestras no meio estudantil sobre a virtude, difundido noções de grupos cristãos que não só proclamam a virgindade até ao casamento, como incentivam os jovens a orgulharem-se disso, envergando símbolos, nomeadamente o “anel de pureza”. 5 Este procedimento é um misto de puro orgulho e do conhecido ensejo pelo martírio associado ao cristianismo, já que um adolescente que use tais símbolos é, garantidamente, alvo de chacota dos colegas (excepto se estudar na escola de uma comunidade religiosa).
O ponto de partida é, claro, uma crítica ao puritanismo exacerbado de um cristianismo evangélico norte-americano, por vezes com atitudes tão “radicais” como a que o poder conservador que nessa fé se alicerça critica, por exemplo, nas sociedades dominadas pelo islão. Um das formas de ilustrar esse puritanismo e os seus reflexos no sistema de ensino – não entramos na questão do “design inteligente” – é um livro de biologia onde existe um diagrama com a anatomia de um pénis, mas a página da vagina está tapada com um autocolante (integrado no poster que se reproduz à direita, ostentando o nome do realizador).
A personagem de Dawn acredita piamente nas suas convicções e orgulha-se da sua pureza. Quando chega o momento da verdade, dá-se a materialização do mito da vagina dentata, num registo que dificilmente poderia ser de “horror”, mesmo quando surgem algumas emasculações gráficas. Mantém-se um certo balanço entre o “juvenil” e o “adulto”, mas a personagem torna-se pouco credível na parte final do filme que, além do mais, tem dificuldade em suster o conceito durante tanto tempo. Sobre o medo da vagina (ou do feminino) Miike Takashi fez melhor em «Visitor Q» e «Gozu». É que o tema pedia muito da extravagância que o realizador japonês tão bem sabe dosear.
Dentes mais normais ou pelo menos em locais de onde esperamos mais perigo: «Rogue», vindo da Austrália, com assinatura de Greg Mclean, realizador de «Wolf Creek» (2005) – aparentemente um dos mais interessantes filmes de terror do último par de anos que não vi – é um típico filmes sobre ameaças da natureza que cresceram um pouco demais, na tradição de «Jaws» (1975). Não é o primeiro filme sobre crocodilos assassinos, nem será o último, mas não me lembro de nenhum melhor. Não é 'B', tem uma atitude perfeitamente comercial, com outro à-vontade permitido pela produção off-Hollywood (apesar de ter investimento americano e produção executiva dos irmãos Weinstein), e mostra como se pode fazer um bom filme de género: directo ao assunto e acreditando que um filme com crocodilos assassinos devoradores de humanos pode ser levado a sério.
Mclean, também argumentista, não povoa o texto de gracinhas nem sente necessidade de criar um enlace romântico forte ou que constitua a saída narrativa do filme. No fundo, concentra-se no que interessa: o crocodilo. O bicho é quase sempre digital (Weta), com animatrónica sempre que necessário (Creature Workshop) mas a integração é convincente, por uma mistura de boa execução técnica e de habilidade na direcção e da montagem, suficientes para criar tensão que não nos impela a olhar com demasiada atenção para elementos pós-produzidos. Não deixa de ter os seus defeitos, sendo o maior os convenientes estragos mínimos com que uma personagem sai da bocarra do crocodilo. Fora isso, prende-nos bem, mesmo até ao final.
De volta à metrópole e aos perigos humanos, com mais três títulos a concurso na Fantàstic, começando por «Waz» (RU/EUA), num estilo “clássico” sobre psicopatas assassinos. A obra, assinada por Tom Shankland, tem Stellan Skarsgård na pele de um detective que se vê a braços com uma série de crimes, com requintes macabros. O assassino captura as vítimas, tortura-as e dá-lhes uma saída: podem parar de sofrer e ser libertados trocando de posição com um ente querido – amante ou familiar. Os métodos e a violência forte remetem para alguns dos títulos extra-fortes dos últimos anos ou, como Derek Elley ilustra na Variety, mescla conceitos de «Se7en» (1995) e «Saw» (2004). Elley refere outra coisa que mesmo fora dos EUA seria difícil de não notar, que é o cenário e os actores que pretendem (supostamente) passar-se por norte-americanos. Mas, para nós, europeus, pouco nos interessarão as pronúncias ou que a cidade tenha um ar estranhamente irlandês.
Não sendo brilhante, é um entretenimento bem produzido, e com um desenvolvimento curioso. Não faltam os twists obrigatórios e, no caso, a surpresa advém também do facto de não esperarmos algumas decisões no âmbito da “moral social” (se assim se pode dizer) por parte do argumento. Se pararmos para pensar, há muita coisa difícil de engolir, mas o filme progride com elán suficiente para que não queiramos fazê-lo.
Afastando-nos do gore e do sangue – mas só até ao fim deste sub-capítulo – chegamos a «Joshua» (EUA), produção independente, distribuída pela Fox. Uma realização de George Ratliff, que deu o prémio de interpretação no festival a Sam Rockwell. Ao lado de Rockwell está Vera Farmiga, que vimos recentemente no remake americano de «Infernal Affairs». Os dois interpretam um casal que acaba de ter o segundo filho, uma menina. Joshua, de 9 anos, comporta-se de forma cada vez mais estranha, mas o espectador é levado a duvidar do que realmente se passa na sua mente. Na verdade, até ao final, o filme resiste a uma definição. Joshua pode ser um filho do demónio ou um miúdo perturbado ou até algo diverso. Não é aqui que vai sabê-lo.
Ratliff dirige um filme que muito provavelmente só poderia ser completado a nível “independente”. Rejeita “ritmo” e deixa que a tensão e a atmosfera se vão delineando naturalmente, ao longo deste drama familiar que se vai travestindo de thriller psicológico. Farmiga, a caminho de uma depressão originada pelo stress da dupla maternidade, contribui em muito para que o filme funcione e para que se afira tão “quotidiano”.