Fantasporto 2007 — 27º Festival Internacional de Cinema do Porto
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I — Introdução
II — Filmes
1. Cinema de Autor
2. Fantástico Europeu
3. Horror Norte-Americano
4. Ásia
AAchi & SSipak,
Blood Trails,
The Cloud,
Hana,
La Hora Fria,
The Host,
Komma,
El Laberinto del Fauno,
Love Phobia,
Oculto,
Paprika,
Renaissance,
Silent Hill,
La Vie Sécrete de Personnes Heureux,
The Woods
III — Palmarés
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I — Introdução
As secções oficiais da edição de 2007 do Fantasporto, Festival Internacional de Cinema do Porto, decorreram entre 23 de Fevereiro e 3 de Março. Na semana que precedeu a abertura oficial foi projectada uma retrospectiva dedicada ao tema “Super-heróis”.
Em 2006, a Câmara Municipal do Porto anunciou que deixaria de suportar o Teatro Rivoli, cujas despesas eram cobertas com apenas 6% dos seus resultados de bilheteira, entregando a gestão a privados. A escolha recaiu sobre Filipe La Féria, que explorará o espaço durante os próximos quatro anos. Entretanto, a direcção do festival conseguiu garantir a utilização do edifício ainda na próxima edição, em 2008.
Este ano, o festival contou com um espaço novo, a Movietown, uma tenda de grande dimensão, montada na Praça D. João I, em frente ao Rivoli, onde ser realizaram conferências de imprensa, havendo também um espaço de lazer, exposição de produtos de patrocinadores, bar e venda de merchandising.
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O Teatro Nacional Rivoli e o novo espaço Movietown. À direita, a vitrine dos posters, no lobby do Rivoli. |
Questiúnculas formais (projecção)
Este ano registou-se uma tendência para a focagem imperfeita. Não com desfoque gritante, mas fora do ponto perfeito em muitas sessões. Em Portugal estamos simplesmente mal habituados a uma imagem bem focada. O projeccionista aguarda pela primeira linha de legendagem e, mal coloca as letras mais ou menos legíveis, dá o processo de focagem por terminado. Tal gera situações de cinco minutos desfocados no início de um filme, porque na cabina de projecção se aguardam os primeiros diálogos para fazer o acerto do foco. Escapa-me porque não se pode focar com referência à própria imagem ou pelos créditos no ecrã.
No que toca a gaffes relacionadas com formatos de projecção, "o caso" deste ano foi o canadiano «La Vie Secrète de Gens Heureux». Antes do filme começar, o ecrã preparado para 1.37:1 (formato aproximado da televisão tradicional, 4:3) anunciava o arranque atribulado: durante os créditos iniciais, o filme passou com mattes (faixas negras impressas na película), que desapareceram pouco depois, transitando para uma imagem a full frame, que permitia ver microfones e um buraco no topo do cenário. O projeccionista pensou resolver o problema da forma “tradicional”, puxando o filme para cima e cortando o topo da imagem até tal ser possível, mas, depois de alguns minutos, trocou a janela de projecção para a correcta (1.85:1). Uma séria melhoria em relação a situações similares, registadas em anos anteriores, nunca corrigidas até final da projecção.
II — Filmes
A programação da 27ª edição foi mais concentrada do que a de anos anteriores, reduzindo-se às duas salas do Rivoli, com excepção de duas sessões realizadas na Casa da Música, onde se apresentou a curta-metragem de animação «Sergei Prokofiev's Peter & the Wolf», acompanhada pela Orquestra Nacional do Porto. Tal como tem vindo a suceder desde há alguns anos, a segunda sala do Rivoli destinou-se sobretudo a projecções em DVD (vulgo "suporte digital"), o que reduz a sua capacidade de atracção (pelo lado positivo, facilita a escolha do programa). O guia não fornecia informações sobre os formatos dos filmes projectados em qualquer um dos ecrãs.
As salas do AMC, no centro comercial Arrábida Shopping, utilizadas para sessões alternativas ou ciclos, desde que o Fantasporto saiu do Auditório Nacional Carlos Alberto, não receberam filmes do festival este ano. O mesmo sucedeu com o Cinema Passos Manuel, onde o Fantasporto também exibiu alguns filmes nos dois últimos anos. No ano passado, foi aí realizada a secção Love Connection que não terá tido resposta satisfatória por parte do público, já que foi extinta logo depois da primeira edição, seguindo o caminho da Anima-te, criada em 2005, e que em 2006 já mal se fazia notar.
Uma secção que se tem consolidado é a Orient Express. Este ano, houve um pouco mais de diversidade no que toca à selecção de filmes asiáticos, ainda com maior peso da Coreia do Sul. A «The Host», «Time» e «AAchi & SSipak» juntaram-se «To Sir with Love» (horror) e «Love Phobia» (melodrama), dois filmes que se aferiam menos cativantes. Em todo o caso, melhor uma mão cheia de títulos variados, do que meia dúzia de filmes de terror medianos.
Para além dos coreanos, apresentaram-se outros filmes provenientes da Ásia Oriental: «Isabella» (Hong Kong), «Paprika» (Japão), «Re-Cycle» (Hong Kong/Tailândia), «The Promise» (China/Hong Kong/Japão/Coreia do Sul) e «Wicked Flowers», «Hana» e «Haze» (Japão). A maioria dos filmes asiáticos integraram-se naturalmente na competição Orient Express, mas alguns estavam também a concurso na Secção Oficial Cinema Fantástico («Paprika», «Re-Cycle», «The Host» e «The Promise») ou na Semana dos Realizadores («Isabella» e «Time»).
Cinema de Autor
Desde 1991, os programadores do Fantasporto têm investido tanto ou mais na selecção de filmes de autor ou de cariz independente, do que na vertente do cinema fantástico, que subjaz à criação do festival. Este ano, voltou a apresentar-se uma selecção diversificada de títulos provenientes da Europa, América e Ásia.
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Stéphane Lapointe, realizador de «La Vie Sécrete des Personnes Heureux». |
“Comédia dramática”, foi como o realizador Stéphane Lapointe definiu «La Vie Sécrete des Personnes Heureux» («Secret Life of Happy People»). É uma obra canadiana que foca relações familiares. O pai é pressionado pelo amigo a diversificar, experimentando ter amantes; o filho tem uma namorada nova que parece preferir a companhia de outros homens; a mãe aplica a sua cultura geral num programa televisivo e vive frustrada com a rotina doméstica e a falta de disponibilidade do marido. Os actores têm bons desempenhos gerais, mas o texto fica aquém de algo consequente. O protagonista é Marc Paquet, do mais interessante «La Peau Blanche», apresentado no Fantasporto de 2005.
O alemão «A Nuvem/Die Wolke», apresentado em cópia legendada em português, para uma futura estreia comercial, poderá remeter para os filmes-catástrofe dos anos 1970. Ergue-se aqui uma voz em protesto contra a energia nuclear, base do drama que circunda dois adolescentes que acabaram de se apaixonar. Não perdia nada se tivesse dispensado o posfácio, com dados estatísticos sobre centrais nucleares ainda em operação no país, que confere esse pendor de “denúncia” ou filme-manifesto, quando estamos absorvidos e interessados num drama ficcional que atinge aí o seu clímax. No entanto, foi um dos mais consistentes de entre os que pude ver durante o festival; sem necessidade de efeitos visuais que se fizessem notar, explosões ou o que quer que seja de esperar do cinema de acção (não é, claro, o caso).
«Komma» (Bélgica/França) vinha com a recomendação da Semana da Crítica do Festival de Cannes, onde foi exibido em 2006. A realizadora, Martine Doyen, apresentou o filme sumariamente e abandonou de seguida o palco, deixando o representante do festival a falar sozinho. Trata-se de um filme de arte e ensaio com uma narrativa dispersa e personagens desintegradas à procura delas mesmas; um homem acorda na morgue, apropria-se de outra identidade e inventa relações e um passado com uma mulher que conhece casualmente. Esta, uma artista neurótica e deprimida, porque o povo não entende a sua arte, parece aceitar a companhia, talvez por causa do excesso de anti-depressivos ou do abuso do álcool. Viajam entre três países e falam-se três línguas. A vertente road movie tem o efeito de fazer parecer que o filme vai a algum lado, mas, bom, nem por isso.
Fantástico Europeu
A Espanha, mesmo aqui ao lado, tem uma produção rica e diversa, com a qual esperamos sempre ser surpreendidos. O Fantasporto tem projectado bons filmes espanhóis, onde não se têm incluído as produções da Fantastic Factory. (Não que o festival não as tenha apresentado, a produtora é que tem feito muito pouco que se aproveite.) Este ano voltou a registar-se uma forte presença do cinema do país vizinho. Os títulos que foi possível ver, no entanto, ficaram-se pelo morno — como o melhor tempo que me lembro de encontrar no Porto, em Fevereiro, desde finais dos anos 80.
Mas antes de falar dos espanhóis, comecemos por («Renascimento/Renaissance»), já exibido na Festa do Cinema Francês do ano passado. A versão apresentada no festival foi a inglesa que será a original — i.e., os movimentos de lábios foram criados com base nos diálogos em inglês. Com realização de Christian Volckman, trata-se de uma co-produção europeia (França/Reino Unido/Luxemburgo) de ficção científica em animação digital a preto e branco, com base em captura de movimentos humanos. Havia quem considerasse tratar-se de uma história banal, envolta numa interessante componente gráfica. Concordo com a primeira parte. O aspecto gráfico não seduz, parecendo um fim em si mesmo. É como se se tratasse de um filme em imagem real ao qual foi subtraída informação cromática e a imagem processada para ter um aspecto “original”. Ficamos com animação a preto e branco com bonecos que pretendem ter emoções humanas, sem as conseguirem transmitir.
A estética vazia tem reflexo nas imagens da Paris do futuro, onde se preservaram fachadas originais, mas se integraram elementos futuristas. Não consigo imaginar uma boa razão para a construção de uma via aquática desnivelada, por entre prédios, e fiquei por perceber se os placards-vídeo assentes no topo dos edifícios emitem som toda a noite. Consegue-se dormir na vizinhança? A quem se destinam as mensagens publicitárias? À câmara que por lá flutua e aos passarinhos? Não senti necessidade de comparar o filme a «Sin City». Ambos são preto e branco, sem tons intermédios (fora a ocasional excepção colorida), mas o design de personagens e cenários é distinto. No filme de Robert Rodriguez, pelo menos, entendi a razão da estética: reproduzir a banda desenhada. A expressividade das personagens, nesse caso, é adequada ao meio e não parece abafada ou reduzida por este. Não se trata de deixar de reconhecer a qualidade do efeito técnico, mas de constatar a sua ineficaz funcionalidade para ilustrar a história e o universo.
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Elio Quiroga apresentou «La Hora Fria». |
«La Hora Fria» é dirigido por Elio Quiroga, o qual já havia apresentado no Fantasporto a longa-metragem «Fotos», em 1997, e a curta de animação «Home Delivery», em 2006. Quiroga, presente na sala com os seus co-produtores, referiu-se ao baixo orçamento da sua obra. A premissa é coerente com o orçamento limitado: uma pequena comunidade sobrevive num edifício subterrâneo, protegendo-se contra perigos exteriores. O registo é de horror tradicional, misto de zombis com ficção científica. Falta atmosfera que nos prenda e texto que suscite interesse pelos mistérios que vão sendo sugeridos en passant pelas personagens. Fala-se no “miúdo solitário”, em “estranhos” e “invisíveis”, mas só conseguimos ficar impacientes até que se decidam a completar as omissões da história. A propaganda televisiva procura sugerir uma dimensão apopolitica que não se chega a sentir, enveredando-se por um final-surpresa que se dilui numa certa irrelevância. Daria um episódio interessante de “The Twilight Zone” — se não deu, de facto.
«Oculto», também de Espanha e já de 2005 — o realizador Antonio Hernández já terá completado mais duas longas-metragens entretanto —, é um filme de mistério que não chega a ser um thriller, por falta de verdadeira tensão e suspense, mas que, ainda assim, se aguenta durante boa parte da sua duração. Começa com os relatos intrigantes dos sonhos de uma mulher, que, segundo diz a própria, se têm estado a concretizar. Outra mulher entra em cena e, apesar das duas nunca se terem encontrado, parece existir uma estranha relação entre as duas. Desenvolve-se um triângulo com um jornalista que participa na investigação, o que dá azo a um pouco de erotismo. O mistério fica quase todo resolvido a meio do filme e esse é um dos defeitos de um guião com problemas de ritmo. O flashback no final, já depois de tudo ter sido revelado, prolonga-se por demasiado tempo, sem que se despolete efeito dramático paralelo, com base na culpa ou da dor da personagem.
«Próxima» é um filme em vídeo digital de Carlos Atanes, realizador de «F.A.Q.». Quem viu todo disse-me que não melhorou depois dos 10 ou 15 minutos iniciais. Saída da sala, motivada por uma invulgar falta de paciência para algo que parecia não só low budget como amador, na direcção de um café próximo, bebericar um aperitivo, folhear o catálogo e ler o jornal oficial do festival.
O Grande Prémio seria também uma produção espanhola: «O Labirinto do Fauno», de Guillermo del Toro, que assim se junta a Vicenzo Natali no clube dos realizadores que venceram duas vezes o Fantasporto. Natali com «Cubo», em 1999, e «Nothing», em 2005; del Toro já tinha sido galardoado com a distinção máxima em 1994, por «Cronos». Não foi possível ver o filme durante o festival, mas o mesmo estrearia pouco depois da projecção durante a sessão de abertura. É costume exibir-se o Grande Prémio depois da sessão de encerramento, mas como o filme estava em exibição comercial, optou-se por projectar o prémio para Melhor Realização («The Host»).
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«El Laberinto del Fauno», Grande Prémio da Secção Oficial Cinema Fantástico. |
«El Laberinto del Fauno» é um bom filme fantástico que se reveste de uma aura de relevância histórico-cultural ao construir duas narrativas interligadas: um plano de fantasia, com as incursões de uma miúda por um reino mágico, e um plano real, onde resistentes contra o regime de Franco combatem o Capitão Vidal e os seus homens, instalados numa propriedade no meio de uma floresta. Apesar de podermos dizer que existe aqui material para dois filmes diferentes, o resultado é francamente positivo. As duas linhas narrativas podem dar azo a interpretações, mas del Toro constrói-as de modo a que não exista necessidade de solucionar o que quer que seja ou apontar o que é ou não “real”. O essencial, é que se trata de uma parábola onde o fascismo (do mundo real) oprime e aniquila a imaginação e a liberdade (da componente de fantasia). Por esse prisma, é irrelevante traçar uma linha a separar o que é real do que não é.
América do Norte — Horror à Moda Antiga
«Silent Hill» é a adaptação de um popular jogo de computador da Konami, pelo mão do francês Christophe Gans, numa co-produção entre Canadá, Japão, EUA e França. Uma mulher viaja com a filha adoptada até uma cidade fantasma isolada, para tentar entender os sonhos que conduzem a miúda a um perigoso estado de sonambulismo. Esta cedo desaparece e a mãe procura-a, desesperada, tendo de enfrentar um pequeno exército de criaturas grotescas. É certo que o jogo de computador é um meio digital, mas no cinema preferiríamos um pouco mais orgânico e visceral. Algumas cenas funcionam bem outras nem por isso. Bastante sangrento e a fugir ao registo de terror para adolescentes, algo que tende a cair bem à audiência madura e conhecedora de um festival de cinema fantástico, acaba por ser relativamente entertaining, apesar de se sentir o peso da duração, em parte por ter sido visto na última sessão nocturna. Faltou tempero, mas dar-lhe-ia nova oportunidade em DVD.
Apresentado numa cópia legendada em português, «Rastos de Sangue/Blood Trails» foi registado em vídeo digital, formato scope, numa transferência muito aceitável no grande ecrã. Vai directo ao assunto, ao jeito do cinema de género da década de 80. No centro da acção, um casal é perseguido por um psicopata em bicicleta de montanha. Com uma mão cheia de patrocínios relacionados com a actividade, não faltam corridas de bicicleta pelo meio de uma floresta e até um homicídio com bicicleta. Pode parecer ridículo, mas é daqueles momentos que, num festival como este, clama por aplausos do público mais tradicional. No entanto, criam-se expectativas, mas o filme vem a padecer de demasiada contenção e convencionalidade. Com alguma extravagância, mesmo sem usar a bicicleta em cada matança, aturaríamos melhor os clichés do carro que nunca pega quando é mesmo preciso ou os samaritanos secundários que são mortos mal tentam ajudar a vítima. O catálogo anuncia-o para breve em DVD.
«The Woods» foi a longa-metragem que Lucky McGee dirigiu depois do superior «May» (2002), um título de horror notável e que faria esperar um pouco mais do trabalho do realizador — o qual também assinou o episódio “Sick Girl” da série “Masters of Horror”. Por vezes, os cineastas parecem partir do princípio que a audiência é conquistada por qualquer mistério retido até ao final do filme. A verdade é que a conclusão, não deixando de ser coerente, não surpreende, nem aquece ou arrefece — apesar do impacto de alguma violência gráfica. Até lá, muito parece servir apenas para encher, incluindo as relações tensas entre algumas personagens. Captura, em certa medida, a atitude dos clássicos de outras décadas, com a sua história de bruxas e um bosque assombrado, que envolve um colégio feminino, mas o texto e as ambiências ficam aquém. Já estava disponível em DVD no mercado português, sob o título «O Bosque Maldito».
O prémio para a Melhor Curta-metragem da Secção Oficial Cinema Fantástico foi para «The Listening Dead» (EUA, 14'), projectada no final da sessão de encerramento, antes de «The Host». É uma curta interessante, dominada pela estética e pela atmosfera, uma espécie de filme mudo expressionista de fantasmas, que utiliza técnicas “analógicas”; efeitos ópticos, stop-motion e até película riscada. Não tive a oportunidade de ver muitas curtas-metragens, mas se «The Listening Dead» poderia ser a obra cujo arrojo experimental e estética passé dava mais nas vistas, o curtíssimo «The Faeries of Blackheath Woods» (Irlanda, 3') era mais directo, com menos pretensões artísticas, mas não menos satisfatório. Uma ideia simples, uma pequena subversão de um conto de fadas, muito bem executada. Uma menina afasta-se do local do piquenique familiar, num bosque, e encontra umas criaturazinhas queriduchas... Estavam a concurso um par de curtas de animação britânicas que tive a oportunidade de ver noutros festivais, no ano passado: «Cleverman» e «Rabbit». «Rabbit», em particular (já premiado em Vila do Conde e no IndieLisboa de 2006), é um título forte e original, com uma excelente utilização do som, ritmo e um look retro, baseado em designs educativos dos anos 50.
Ásia
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Depois de «Niguém Sabe/Dare mo Shiranai» (2004), o japonês Kore'eda Hirokazu dirigiu «Hana» («Hana Yori mo Naho»), um filme de samurais, passado no período em que a classe samurai perdia influência, em finais do Século XIX, num cenário que não encontraremos muito em obras do género: um bairro miserável, onde se reúne uma galeria extensa de personagens. O protagonista é um jovem que procura o homem responsável pela morte do seu pai, para poder exercer uma vingança honrosa, algo muito bem visto e enaltecido pela comunidade da época. Os líderes do clã que o sustenta pressionam-no para que leve a cabo a tarefa, mas ele não só é pouco habilidoso com a espada como um pacifista. Nas proximidades, um grupo de ronins planeia também vingança, contra o responsável pela morte do seu líder. Esta parte do argumento baseia-se em factos históricos que deram origem a vários filmes sobre “os 46 ronins”. Contrariando os clichés do cinema de samurais, «Hana» aborda temas como a coragem e a vingança, centrando-se em personagens que pareceriam fadadas a serem excluídas no casting. Pode um “covarde” ser protagonista? O registo tende para a comédia, que nasce das relações entre o diversificado grupo de personagens, movendo-se no ambiente pobre e sujo do bairro.
«Haze» (Japão), de Tsukamoto Shinya, foi comentado no âmbito do Festival de Jeonju do ano passado. Trata-se de uma das curtas do projecto Digital Films by Three Filmmakers encomendado pelo festival para a edição de 2005 e que foi posteriormente remontado numa versão 20 minutos mais longa, apresentada fora do formato inicial. O filme foi apresentado na mesma sessão de outro com cerca de 40 minutos, «Le Livre des Morts de Belleville» (França), sobre a relação social dos vivos com os mortos.
Também do Japão, «Paprika» é a nova investida de Kon Satoshi no território do thriller psicológico animado, tendo como ponto de partida um aparelho experimental que permite analisar e interferir nos sonhos. Sem o impacto do anterior «Millennium Actress» — um triunfo talvez difícil de reproduzir —, tem momentos que recordam a primeira longa do realizador, «Perfect Blue». O modo como Kon cria ambientes grandiosos, sem enveredar pelo exibicionismo técnico da imagem das produções digitais dos últimos anos, é, por si só, motivo de recomendação. Quem tiver oportunidade para um visionamento em grande ecrã, com boas condições técnicas, não deve desperdiçá-la.
Tal como «Paprika», «AAchi & SSipak» (Coreia do Sul), foi projectado às três da tarde, mas qualquer um deles seria adequado para uma sessão mais tardia. A sinopse prometia escatologia a rodos. A história passa-se num mundo em que o governo explora os dejectos dos cidadãos como fonte energética. Para tal — para que façam necessidades abundantemente — existe uma droga em que toda a gente está viciada — os juicybars. Apesar do alarido e da classificação para maiores de 18 anos na Coreia do Sul, o filme acaba por ser mais asseado do que se poderia esperar. Nada de dejectos projectados, apenas sangue, violência gráfica e (presumimos) muitas palavras feias (um dos trailers disponívei online era um chorrilho de bleeps). Tanto este filme como «Paprika» já mereceram, entretanto, comentários isolados no site (siga os links para maior desenvolvimento).
Lee Ari é uma menina órfã que vive num mosteiro budista e veste sempre uma gabardina amarela, convencida de que é uma extra-terrestre e transporta uma maldição: todos que a tocarem ficam sujeitos a contrair doenças ou a sofrer acidentes. É o ponto de partida do melodrama «Love Phobia» («Domabaem»), de Kang Ji-eun, que se desenvolve através de humor ligeiro resultado da ingenuidade e cute factor de duas crianças. Entretanto, os protagonistas crescem, ele vai para a cidade, mais tarde é ela que tem de partir, reencontram-se, ela afasta-se novamente... — num processo narrativo que inflaciona a duração do filme para lá do necessário (mas a meta das duas horas é praticamente regra no melodrama sul-coreano). Quando esperávamos a manifestação do ingrediente comum do género — alguém tem uma doença terminal, preparem os lenços de papel —, somos surpreendidos com uma revelação algo diferente, que funciona bem e tece comentários de cariz social. Se noutros momentos se empastelou um pouco e se manipularam emoções, aqui, ainda que por breves instantes, o filme consegue ser genuinamente tocante.
O título mais forte de entre os asiáticos presentes foi o blockbuster «The Host» («Goemul»), já abordado neste site em diversas ocasiões; em comentário próprio, aquando da estreia em Seul, no Verão passado, e no âmbito dos festivais de Sitges (por Jordi Codó) e do LIFFe, na Eslovénia (por Blaž Križnik).
A projecção no Fantasporto permitiria analisar o modo como o público português reagia ao filme e às transições entre humor, drama ou horror e compará-lo com o visionamento em Seul. Apesar de se tratar de um público especifico, diria que, em geral, o que é “comercial” na Coreia mantém-se comercial em Portugal. O filme foi exibido num Grande Auditório praticamente cheio, e recebido com entusiasmo e aplausos calorosos. O humor funcionou, ajudado por uma legendagem electrónica que aparentava ser competente 1, mas registou-se dificuldade de parte do público em lidar com as mudanças de tom, que o realizador Bong Jun-ho tão bem consegue gerir. Refiro-me ao facto de muitos espectadores se deixarem embalar por uma graça e não conseguirem deixar o “modo humor”, continuando a rir-se a bandeiras desbragadas quando se corta para uma situação pouco ou nada humorada. Ou talvez eu esteja a ser demasiado sensível, uma vez que tal foi mais notório numa das minhas (e de muitos outros, estou certo) cenas favoritas, quando Hyeon-seo partilha uma refeição de noodles instantâneas e kimbap com a família.
A estreia de «The Host» é esperada para Agosto, sob o título «A Criatura» (tradução literal do coreano). Pena o cartaz para a Península Ibérica, um tanto ou quanto infeliz. Ao invés de escolher entre dezenas de opções pré-existentes ou de desenhar um novo, o distribuidor pegou num poster que apenas sugere (duas crianças, presas num esgoto, olham para cima, receando algo), e colou um recorte da criatura na parede (mal integrado), motivado por uma aparente necessidade de mostrar.
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III — Palmarés
Secção Oficial Cinema Fantástico
Grande Prémio: «El Laberinto del Fauno» (México/Espanha/EUA), Guillermo del Toro
Prémio Especial do Júri: «Historias del Desencanto» (México), Alejandro Valle
Melhor Realizador: Bong Jun-ho, «The Host» (Coreia do Sul)
Melhor Actor: Sergi Lopez, «El Laberinto del Fauno»
Melhor Actriz: Ariadna Gil, «Ausentes»
Melhor Argumento: James Moran, «Severance» (Reino Unido)
Melhores Efeitos Especiais: Ng Yuan-fai/Fat Face Prod., «Re-Cycle» (Hong Kong/Tailândia)
Melhor Curta-metragem: «Home Delivery» (Espanha), Elio Quiroga
Menção Honrosa Curta-metragem: «The Listening Dead» (EUA), Phil Mucci
Mencão Honrosa do Júri Internacional: «The Bothersome Man» (Noruega), Jens Lien
Secção Oficial Semana dos Realizadores
Melhor Filme: «Un Franco, 14 Pesetas» (Espanha), Carlos Iglésias
Prémio Especial do Júri: «Suicídio Encomendado» (Portugal), Artur Serra Araújo
Melhor Realizador: Carlos Iglésias, «Un Franco, 14 Pesetas»
Melhor Actor: Ha Jeong-u, «Time» (Coreia do Sul)
Melhor Actriz: Isabella Leong, «Isabella» (Hong Kong)
Melhor Argumento: Kim Fupz Aakeson, «Pure Hearts» (Dinamarca)
Secção Oficial Orient Express
Grande Prémio: «Isabella» (Hong Kong), Pang Ho-cheung
Prémio Especial do Júri: «The Promise» (China/Hong Kong/Japão/Coreia do Sul), Chen Kaige
Mélies de Prata
Longa-metragem: «Renaissance» (França/Reino Unido/Luxemburgo), Christian Volkman
Curta-metragem: «Finkle's Odyssey» (Reino Unido), Barney Clay
Cinematografia homenageada: Cinema Grego.
Prémio do Júri da Crítica: «Paprika» (Japão), Kon Satoshi
Júri do Público/Prémio Jornal Público: «Taxidermia» (Hungria/Áustria/França), György Pálfi
Prémios Carreira: Henry Thomas, Rosanna Arquette, Ruy de Carvalho
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1 Só registei uma adaptação que pareceu procurar inventar uma piada que não existia no original, quando na frase "Os códigos secretos são todos 4889?" se traduz o número por "1234". Se existe uma piada cultural no original, a mesma escapou-me. Não é a data de nascimento do actor ou da personagem, como me ocorreu.
1/04/07
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