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Fujiwara Chiyoko é uma actriz de cinema cuja carreira se iniciou, ainda adolescente, antes da Segunda Guerra Mundial, vindo a protagonizar inúmeros filmes populares, ao longo de 40 anos. Na década de 70 desapareceu misteriosamente. Trinta anos depois, Tachibana Genya (Izuka), consegue localizá-la, com vista a realizar um documentário sobre a sua carreira e entender as razões que a levaram a retirar-se para uma casa escondida nas montanhas. Genya, acompanhado do cameraman Kyoji (Onosaka), entrega a Chiyoko (Miyoko), agora com 70 anos de idade, um objecto que ela havia perdido três décadas atrás, quando abandonou o mundo do cinema: uma chave, que a transportará, e aos dois documentaristas, ao longo da história do (cinema do) Japão. Na sua adolescência, Chiyoko (Fumiko), cruza-se com um homem misterioso, um pintor considerado subversivo pelo regime e ao qual ela dá guarida. O homem parte, para fugir da polícia, e Chiyoko aproveita a carreira de actriz que lhe é oferecida para tentar encontrá-lo. Genya e Yoji acompanham-na pelas suas memórias.
«Millennium Actress» – tradução literal do título japonês – nasceu do encontro de vontades do produtor Taro Maki e do realizador Kon Satoshi. Tako abordou Kon, depois de ter visto o thriller «Perfect Blue», sugerindo-lhe a parceria na produção de uma obra que voltasse a pegar num esquema narrativo similar e ao qual se referiu como um “estereograma”: a realidade apercebida pelo espectador varia consoante o ângulo/ponto de vista de onde se observa. Se «Perfect Blue» usava o estado de insegurança e confusão psicológica da protagonista para manter o espectador em suspenso, sem saber exactamente o que estava a suceder, «Millennium Actress» assume desde logo uma certa artificialidade, ainda que tal não implique que entendamos de imediato qual o nível de realidade onde nos deslocamos.
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Genya entrevista a actriz retirada Fujiwara Chiyoko.
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Quando Chiyoko começa a contar a sua história, sobre o início da sua carreira e a procura do homem misterioso pelo qual se apaixonou – um percurso com contornos fortemente simbólicos – somos levados a acompanhar a rodagem de alguns dos seus filmes. Em seguida, a narrativa usa o método do filme dentro do filme, ao lado das memórias da actriz septuagenária (mas também de Genya), com constantes mudanças de cenário, que nos transportam de uma época para outra, do presente para o passado e da ficção para o real. Mas o que é o Real, em «Millennium Actress»? É surpreendente como o filme de Kon nos consegue envolver ao ponto de, a dada altura, depararmos com sequências “artificiais” (fundos recortados, cenários de filmes antigos) e reagirmos-lhes instintivamente, traçando a separação entre esses elementos “falsos” e o “realismo” do resto do filme. É assim que um excelente filme animado se revela simplesmente um excelente filme. Há belas sequências do ponto de vista da execução técnica, mas – ao contrário de muitas obras recentes, sobretudo as que recorrem às técnicas digitais – não somos levados à apreciação desta ou daquela cena, por estar mais ou menos “bem feita”, porquanto aquilo que faz de «Millennium Actress» uma obra superior é a sua história e a força que advém das suas personagens (que não passam de bonecos, imagine-se).
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De um modo geral, estamos preparados para aceitar que o modo de filmar e montar um filme animado são diversos das técnicas usadas na produção de uma obra de imagem real. Isto decorre das condições específicas com que se trabalham ambos os meios. Um filme pode ser rodado com take atrás de take, escolhe-se o melhor e manda-se fora material na fase da montagem, por razões de ritmo ou outras. Num filme animado, antes de se iniciar o dispendioso processo de animação e intercalação, o mais normal é conceber-se um storyboard, “animando” as imagens estáticas e simulando os ritmos e a duração final do filme acabado. Sem prejuízo de alterações futuras, a montagem do filme está realmente definida antes de dezenas de artistas começarem a desenhar as personagens em movimento. Da mesma forma que em certo tipo de filmes de acção estamos preparados para a entrada de um determinado tipo de plano na sequência de outro, no cinema animado esperamos também o respeito por certas convenções, que, de modo muito redutor, se podem reconduzir a bonecos a mexerem-se sobre um cenário estático.
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A montagem e o modo dinâmico como a “câmara” acompanha a acção contribuem para que nos alheamos do facto de que estamos a ver animação. Aos vários géneros de cinema, que são reproduzidos ou recriados, correspondem modos de apresentação diferentes, com cenários mais ou menos trabalhados, mais ou menos realistadas. A montagem de uma cena de acção e o modo como a câmara se desloca para enquadrar o embate das personagens é um dos momentos em que sentimos a mão dos cineastas a recusarem os limites do meio. Há uma dinâmica montagem de cinco ou seis minutos, já no último acto do filme, com Chiyoko a correr sem parar, em que revisitamos os vários cenários por onde a actriz passou na hora anterior, à medida que as portas se fecham continuamente à sua (e à nossa) frente, que consegue transmitir magistralmente uma forte sensação de frustração e impotência perante a inevitabilidade do destino, reforçada e ampliada pela música de Hirasawa Susumu.
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Da mesma forma que viajamos através de épocas diferentes, dos anos 30 ao período posterior à Segunda Guerra Mundial, retrocedendo aos períodos Edo (1603-1867) ou Meiji (1868-1912) e a épocas mais distantes da história do Japão ou à conquista espacial, acompanhamos Chiyoko na pele de uma multitude de personagens: adolescente ingénua, princesa, gueixa, guerreira, enfermeira, astronauta, actriz. Ao longo da sua vida (várias décadas ou um milénio?) e de todos os cenários por onde passa, Chiyoko procura um homem que passou muito brevemente pela sua vida e que é continuamente afastado da sua presença, levando consigo a chave para “a mais importante de todas as coisas”, para lha devolver. Tal como Sísifo, condenado a empurrar uma rocha, por toda a eternidade, até ao alto de uma montanha, apenas para a ver rolar novamente encosta abaixo, a personagem central do filme de Kon Satoshi, corre, corre, continuamente (ao contrário da Lola do filme de Tom Tykwer, não tem um prazo estipulado, mas toda a vida – ou ainda mais tempo), forçando portas para cenários que se transmutam, levando-a a empreender a sua procura ab initio.
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A obra de Kon Satoshi, autor do texto original e co-argumentista com Murai Sadayuki, assenta sobre uma história bem definida e uma personagem fascinante, por oposição a um guião baseado em linhas gerais vagas, que se desenvolvem para apresentar novas técnicas de animação. Há aqui grande maturidade e humanidade e um certo filosofar, à medida que nos perguntamos se a vida de um indivíduo pode assentar exclusivamente sobre um único pilar, e se a odisseia da heroína é uma procura pelo amor verdadeiro e único ou se não passa de combustível criado para alimentar uma chama artificial. Mas, tal como o filme apresenta muitas realidades, também a nossa percepção sobre aquilo que se virá a definir como a resposta a todas as questões pode ter dificuldade em equilibrar-se sobre essa fina linha. No fim, o “real” talvez não seja tão importante. Não tanto quanto os fantasmas que deixamos surgir dentro de nós, para que nos persigam e atormentem, deslocando o nosso olhar da vida que evitamos enfrentar.
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