Mi-ra (Moon) vive sozinha, numa cidade de província, onde explora um pequeno restaurante. Um dia, o irmão mais novo, Hyeong-cheol (Eom) regressa depois de anos de ausência. Não vem sozinho; traz a mulher, Mu-sin (Go), mais velha do que ele, e uma criança junta-se-lhes mais tarde.
Seon-kyeong (Kong) trabalha como guia-intérprete para turistas japoneses e procura um emprego que lhe permita abandonar a Coreia. A mãe (Kim), que padece de uma doença grave, mantém uma relação com um homem casado.
Chae-hyeong (Jeong) e Kyeong-seok (Bong) vivem uma relação atribulada. Ele é ciumento e irrita-se regularmente com a afabilidade dela para com os que a rodeiam.
O nome de Kim Tae-yong era até agora mais conhecido pelo seu crédito de co-realizador em «Memento Mori» (1999), um filme mal recebido nas bilheteiras coreanas, mas que alcançou um estatuto de culto, a nível local e internacional. Antes de «Family Ties», Kim participou no projecto colectivo «Igong» (2004) e dirigiu um documentário sobre a digressão europeia da Yeon Do-hyeon Band (YB): «On the Road, Two» (2005).
Em 2006, Kim Tae-yong regressou às longas-metragens, um anos depois de Min Gyu-dong — com o qual partilhou os créditos de realização na primeira longa-metragem e num par de curtas, realizadas ainda na Korean Academy of Film Arts. Kim assinou este «Birth of a Family» (1) e Min dirigiu o mais ligeiro «All for Love — The Most Beautiful Week in my Life» (2005).
Já se escreveu que estes trabalhos “a solo” serviram para confirmar que não é possível apontar um responsável exclusivo pelas qualidades de «Memento Mori», pois ambos os realizadores confirmaram o seu talento (2), não obstando que «Gajok-ui Tansaeng» seja um filme superior a «All for Love». Curiosamente, ambas as obras lidam com uma multitude de protagonistas, em várias histórias que se interseccionam.
Não há muito que se possa comparar entre «Memento Mori» e os filmes recentes de qualquer um dos realizadores (mas deixemos «All for Love» para uma próxima oportunidade), no entanto, ainda que «Family Ties» surja num registo diverso, existem pontos de contacto com o filme de 1999: formalmente, a importância dada ao design sonoro ou a utilização de câmara à mão; substancialmente, o facto de em ambas as obras a narrativa ser dominada pelo sexo feminino.
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Depois de anos sem dar sinais de vida, Hyeong-cheol (Eom Tae-ung), irmão de Mi-ra (Moon So-ri), regressa acompanhado da mulher, Mu-sin (Go Do-sim). |
Kim Tae-yong afirmou não estar interessado em protagonistas masculinos fortes, preferindo fazer os holofotes incidir sobre personagens femininas (3). Em «Memento Mori» os homens são figuras de autoridade remetidos para segundo plano; em «Family Ties» há personagens masculinas em primeiro plano. Mas são fracos, inseguros ou indignos de confiança. Sem excepção.
Moon So-ri, uma das mais reconhecidas actrizes coreanas — e, sem dúvida, uma das mais dotadas —, costuma atrair sobre si as atenções nos filmes que protagoniza, mas tem aqui concorrência à altura, por parte de Kong Hyo-jin, Go Du-sim, e, em menor escala, já que o papel é menos exigente, Jeong Yu-mi.
No colectivo, Kong Hyo-jin merece ser destacada. A actriz estreou-se no cinema com um papel secundário em «Memento Mori», trabalhou em televisão e teve desempenhos secundários numa dezena de filmes, incluindo «Volcano High» e «Guns and Talks» (ambos 2001). Em «Family Ties», a sua presença é de uma força imensa, capaz de, quase por si só, apaziguar uma pequena frustração face a um primeiro visionamento sem legendagem, enquanto observador silencioso no meio de uma audiência que, por alguma razão, não se parava de rir.
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Seon-kyeong (Kong Hyo-jin) tem uma relação difícil com a mãe (Kim Hye-ok) e com o mundo que a rodeia em geral. |
Go Do-sim começou no cinema no final dos anos 70, mas tem sido mais prolífera como actriz na televisão, a partir da década passada. No grande ecrã tem sido sobretudo “mãe”. Foi mãe de Bae Du-na, por duas vezes, em «Plum Blossom» (2000) e «Saving My Hubby» (2002), e de Jeon Do-yeon, em «My Mother, the Mermaid» (2004) — num filme em que Jeon ocupa mais tempo de ecrã como a sua própria mãe do que Go. Já não nos podia surpreender encontrar na filmografia da actriz veterana um filme chamado «Eomma» (“mamã”) (2005).
Na família não-convencional que se vai formando no filme de Kim Tae-yong, Go Do-sim é também chamada de mãe, apesar de não ser mãe biológica. Aliás, esse é o tema do filme: o que constitui uma família? O nascimento e os laços de sangue ditam quem são aqueles nos quais podemos confiar ou de quem podemos depender ou, por outro lado, pode uma família nascer do encontro com pessoas que se unem nessa base de confiança e dependência? Mais do que questionar ou comentar a instituição da família tradicional, Kim Tae-yong quis procurar uma resposta para tal pergunta.
Sem surpresas elaboradas, a narrativa vai revelando, casualmente, a teia de relações entre as personagens, com picos emocionais que despontam graças a uma boa estruturação do texto e ao modo como a informação é transmitida ao espectador, gradualmente e, por vezes, omitindo dados que podemos apenas presumir, mas também, em larga medida, por força do espaço para improvisação que foi concedido — ou, talvez, exigido — ao elenco.
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O feitio de boa samaritana de Chae-hyeong (Jeong Yu-mi) não é bem recebido pelo namorado, Kyeong-seok (Bong Tae-gyu). |
Apesar das contínuas situações de tensão entre personagens e de umas pitadas de tragédia, «Family Ties» vai-se desenvolvendo por via de um guião bem humorado, apontando para uma conclusão mais ou menos feelgood, mas que se sente genuína, sem aditivos. Os momentos mais marcantes registam-se no segmento em que Seon-kyeong é a protagonista. Aí se inclui uma impetuosa tentativa de encurralar o amante da mãe, que terá um desenlace surpreendente (a gerar muitos oohs na sala de cinema). As consequências ficam a cargo da nossa imaginação, pois Kim opta por obviar a cena assim que Seon-kyeong sai do quadro. A intensidade do momento é amplificada pelo que não vemos, mas é também um modo de sublinhar como a personagem domina este segmento do filme, impondo-nos, inclusive, o seu ponto de vista.
Seon-kyeong é, em grande medida, a imagem de marca do filme: a sua desmesurada e, por vezes, intrigante, agressividade funda-se em algo que não é directamente explicitado ao espectador, seja por via de uma pausa para flashback ou de um discurso emotivo, mas acreditamos na personagem desde o primeiro momento.
«Birth of a Family» foi considerado por muitos como um dos melhores filmes coreanos de 2006 e começou a ser exibido em festivais de cinema no Ocidente. Prevê-se que seja bem recebido, ainda que possa ser fadado a um certo low profile, sobretudo se surgir ao lado de títulos mais esperados, como «The Host», ou associados a nomes de autores já celebrados, como «Time», de Kim Ki-duk. Quem der por ele, talvez se depare com uma agradável surpresa.
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(1) «Birth of a Family» é um título alternativo, tradução literal do coreano, que acabou por ser preterido pelo mais insonso «Family Ties» — que pode fazer lembrar a popular série de TV com Michael J. Fox., chamada "Quem Sai aos Seus" em Portugal — como título internacional oficial.
(2) Darcy Paquet, em Koreanfilm.org.
(3) Vd. entrevista Cinedie Ásia.
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