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3. Japão

Ichikawa Jun
Ichikawa Jun.
Este ano, Mark Schilling, programador da selecção de filmes japoneses, propôs divulgar a obra do realizador Ichikawa Jun, referenciado como um herdeiro do incontornável Ozu Yasujiro, na sua ânsia de mostrar “o Japão verdadeiro”. O festival começou por mostrar «Busu» (1987), exibindo-se por último «Tadon to Chikuwa» (1998). Projectaram-se mais dois títulos: «Byoin de Shinu to li Koto» [«Dying at an Hospital», 1993], tido como o seu título mais importante, e «Tokyo Marigolds» (2001), protagonizado por Tanaka Rena.

Se não ficámos exactamente encantados com o cinema de Ichikawa — falhámos «Busu», apresentado muito cedo no primeiro dia do festival —, também não deixámos de ficar interessados em conhecer melhor a sua obra, concedendo que o seu registo não é favorecido pelas maratonas que um festival de cinema, com um programa tão recheado quanto diversificado, nos sugere (ainda que não tenhamos ido a mais de seis projecções num mesmo dia). O cansaço não ajuda à apreciação de filmes que demoram a desenrolar-se e que assentam num ritmo relativamente lento. Ficamos a aguardar o novo «Toni Takitani», adaptação do conto do escritor Murakami Haruki.

Tokyo Marigolds
Tanaka Rena.
Se precisássemos de isolar um tema na obra de Ichikawa, com base na pequena amostra a que tivemos acesso, escolheríamos a solidão e o isolamento social. As personagens de Ichikawa habitam um mundo próprio e interagem com dificuldade com o meio social onde se inserem. A heroína de «Tokyo Marigolds» trabalha num escritório em part-time e participa, desapaixonadamente, num spot comercial para a TV (o meio onde o realizador iniciou a sua carreira). Conhece um rapaz simpático, mas a relação parece ter prazo de validade: dentro de um ano a namorada dele volta do estrangeiro. A efemeridade das flores do título simbolizam a fugacidade das relações. As personagens reagem muito "matter-of-factly" aos vários constrangimentos, como se estivem preparadas naturalmente para se conformarem. Como se a vida numa megalópole banalizasse estar-se só ou levasse a encarar uma relação como um acto de consumo social de duração limitada.

«Dying at an Hospital», apontando como o mais "ozuesco" dos filmes de Ichikawa Jun, é quase documental, cruzando imagens da vida normal nas ruas de Tóquio, com os últimos dias de doentes terminais no interior de quartos de hospital. A distância impede-nos de "sentir" o sofrimento e aplana os vários casos, tornando-os indistintos no tecido narrativo, seguindo a intenção do realizador de apresentar toda a gente igual perante a morte. Numa primeira aproximação deprimente, o filme acaba por deixar uma mensagem positiva (dizer "feelgood" seria um exagero), de que a vida continua, tem de continuar, faz-se o que se pode, etc. e tal. O mesmo não sentirão as personagens do bizarro «Tadon and Chiguwa», que se poderia rotular como um típico "arthouse" até ao momento em que os dois "heróis" (as duas histórias, "Tadon" e "Chikuwa", acabam por se cruzar), explodem em actos de violência contra os que os circundam. A segunda parte é particularmente curiosa, por um prisma mais estético, com o respingar e esguichar de sangue colorido, em tons de pastel, nas paredes.

[vd. encontro com Ichikawa Jun]

Bayside Shakedown II
«Bayside Shakedown II» nº 1 nas bilheteiras japonesas em 2003.
Descontando os filmes de Ichikawa, sobraram sete exemplos da produção recente nipónica, abrangendo géneros diferentes. O cinema mais comercial esteve representado pelos dois tomos de «Bayside Shakedown», de que dispensámos o segundo. (Trocámo-lo pelo jantar e devemos ter tomado a opção mais acertada). Os filmes baseiam-se numa série de TV e o ritmo e as situações paralelas, ora acompanhando umas personagens ora acompanhando outras, remete para o meio de origem. No primeiro filme, juntam-se três situações: um conjunto de furtos misteriosos, inclusive no interior da esquadra da polícia, uma série de homicídios ligados ao tráfico de órgãos e o rapto do comissário da polícia. Um divertimento que não vinca muito a memória, mas com algumas composições de personagens bem feitas, em particular uma mais psicótica. O material não é exactamente "fresco", pois há muito aqui que já vimos noutros sítios (mas guardamos os pormenores...). A ligeireza de tom é uma opção do realizador, como se poderá conferir no texto sobre o último dos encontros realizados em Udine.

Os polícias e ladrões de «Yudan Taiteki» [«The Hunter and the Hunted»] não têm relação alguma com aqueles que identificamos de imediato em séries televisivas. São, por outro lado, "pessoas reais", ainda que seja discutível o realismo patente numa relação como a que liga as duas personagens centrais deste filme. Sekikawa (Koji Yakusho) persegue “Neko” (“Gato”, Emoto Akira), um ladrão metódico e esquivo, ao mesmo tempo que tem de se ocupar da educação da filha, depois da morte da mulher. Retratos contidos e convincentes de personagens, que vão amadurecendo ao longo do filme. Dá-se a devida atenção ao passado do simpático criminoso e guarda-se algum tempo para momentos sensíveis da intimidade do polícia, que se debate com problemas como a recusa da miúda em aceitar uma substituta da mãe. Muita sensibilidade, mas também algum humor ligeiro, evitando um possível atravessar da fronteira para o lado do melodrama.

Drama abstracto que aborda a temática do male bonding na terceira idade. Um detective recebe a ajuda de um criminoso para subir na carreira. A premissa não é desinteressante, mas o problema é que são cerca de duas horas onde muito pouco se passa. Uma pessoa a sair de um carro parado é o momento narrativo mais alto. Contemplativo até à exasperação. Perfeitamente inócuo. HFG.

Kaneko Fuminori Kisarazu Cat's Eye
Mark Schilling apresenta Kaneko Fuminori, precedendo a projecção de «Kisarazu Cat's Eye - Go Major!».

Na vertente mais extravagante do cinema japonês, tivemos duas meias-noites que não decepcionaram: «Kisarazu Cat's Eye - Go Major!», que trouxe a Udine o realizador e a produtora [vd. texto] e o mais "sério" «Showa Kayo Daizenshu». O primeiro filme é baseado numa série de TV underground, sem resultados de audiência brilhantes, pelo que o seu sucesso no Japão foi uma surpresa, depois de uma estreia que arrancou em apenas duas salas de Tóquio. Rodado em DV, muito low budget, aposta no disparate e no exagero ao serviço do bom humor, ainda que a premissa não pareça encaixar muito bem numa comédia: Bussan (Okada Jun'ichi), o herói, tem cancro e os médicos sugerem que goze os seis meses de vida que lhe restam. Como Bussan continua vivo passado o prazo, os médicos, embaraçados, pedem desculpa e “dão-lhe” mais seis meses. O que, naturalmente, o irrita imenso. Mas ninguém espera um final irrealisticamente feliz, uma vez que a narrativa parte de um flashback no futuro, quando os amigos, já velhotes, se reúnem em homenagem ao falecido companheiro de copos e disparates. A história é estratificada, com uma montagem alucinante e reviravoltas constantes que pedem a cumplicidade da audiência para aceitar cada novo recontar dos factos — ciclicamente interrompe-se a narrativa, volta-se a uma cena anterior, pega-se num pormenor escondido no canto do ecrã e segue-se novo rumo. Como se fosse composto por episódios televisivos de uma hora condensados em segmentos de 10 minutos, «Kisarazu Cat's Eye» mantém um ritmo alucinante durante duas horas, em volta de trocas de identidade, um naufrágio numa ilha deserta habitada por nativas em trajes menores que se alimentam à base de caranguejo, a inauguração de um bar karaoke com acompanhantes coreanas e um concerto pop com uma conhecida banda japonesa.

[vd. encontro com Kaneko Fuminori]

Showa Kayo Daisenshu
Kishimoto Kayoko em «Showa Kayo Daienshu» ("A Grande Colecção de Cantigas do Período Showa").
«Showa Kayo Daisenshu», realizado por Tetsuo Shinohara («Love Cinema: Stake Out», «Inochi»), foi um dos títulos para o qual se requereu legendas projectadas sob o ecrã, sugerindo-nos que será um título pouco rodado em festivais internacionais. Aparentemente sem título oficial em inglês, o catálogo oferece o que será uma tradução literal do original: «Big Showa Song Collection». (1)

Um adolescente passa por uma mulher mais velha na rua e atira-lhe uns piropos. A mulher não acha muita graça à falta de educação do jovem, manda-o passear e afasta-se. Ele, por acaso, trazia uma faca de lâmina extensa e afiada e segue-a para um local ermo, longe do olhar de possíveis testemunhas... O adolescente faz parte de um grupo que se junta à noite, num cais deserto, para performances “glamourosas”, mas sem público. Vestem roupas estranhas, por vezes femininas, e filmam-se a cantarolar sobre canções pop de décadas atrás. A primeira vítima também está integrada num grupo, no mínimo, invulgar. Mulheres divorciadas, todas de nome próprio Midori — reunidas por um anúncio na imprensa —, que também cultivam o gosto pelo karaoke, mas em locais mais convencionais. Uns e outros vão ganhar o gosto por outra coisa: a vingança, quanto mais sangrenta melhor. Apesar do absurdo da violência — com sangue a jorrar literal e abundantemente na primeira parte do filme — e do humor — as armas utilizadas são tão imaginativas quando improváveis —, «Showa Kayo Daisenshu» mantém um tom sério, até amargo, à medida que a escalada de violência se torna imparável. O elenco inclui Matsuda Ryuhei, de «Tabu/Gohatto» (1999) e «Blue Spring» (2001) [Sitges 2003], e Kishimoto Kayoko, “esposa” de Kitano Takeshi em «Hana-Bi» (1997) e «Kikujiro no Natsu» (1999).

Os melhores títulos japoneses trouxeram registos próximos do melodrama. O vencedor do festival, «Tasobare Seibei» [«Twilight Samurai»], de Yamada Yoji, apresenta uma visão pouco habitual dos célebres guerreiros japoneses, que aqui surgem como assalariados, divididos por escalões que determinam o vencimento que o senhor feudal lhes atribui.

Twilight Samurai
Sanada Hiroyuki, um samurai acima de tudo homem de família.
Durante o período Edo crepuscular, um samurai de nome Seibei balança diariamente entre ajudar a família e os deveres do código do Bushido. Seibei é um homem humilde, honesto e desencantado, após ter perdido a sua esposa, vítima de doença prolongada. Com ele vivem as suas duas filhas menores e a avó das crianças. O seu maior desejo é educar as descendentes e levar uma vida calma e tranquila de camponês. Certo dia, Tomei, a irmã de um velho amigo, regressa para viver na aldeia do samurai. Seibei e Tomei eram grandes amigos na infância, mas o destino separou-os. Agora, há uma hipótese de reencontro.

Baseado no “best-seller” de Fujisawa Shuhei e realizado pelo veterano Yamada Yoji, «The Twilight Samurai» é um daquelas películas que nos encantou pela sua abordagem “naturalista” e doce sobre a vida homem “ostracizado” pelos tempos de mudança no qual vive. Seibei, um magnífico desempenho de Sanada Hiroyuki, é um homem com raízes na sua terra, que retira o seu sustento da natureza e que persiste em lutar contra moinhos de vento, seja contra a civilização galopante, a ostentação ou a afirmação de um status social; um D. Quixote evocativo das personagens fulcrais de Miyazaki, como Marco Rosso («Porco Rosso») ou a pequenina Satsuki («My Neighbor Totoro»). HFG.

Josee, the Tiger and the Fish
«Josée, the Tiger and the Fish».
Uma das surpresas de Udine foi o improvavelmente intitulado «Josée, the Tiger and the Fish» («Josée to Tora to Sakanatachi»), de Inudo Isshin, que, junto com o filme de Yamada e as obras de To e Wai Ka-fai, comporia o ramalhete dos melhores títulos apresentados nesta edição do FEFF. Josée não é certamente um nome normal no Japão: o nome verdadeiro da personagem central é Kimiko (Ikewaki Chizuru), uma jovem deficiente, paralizada da cintura para baixo, que vive com a avó num bairro pobre. A avó, para proteger a rapariga, e/ou por não querer mostrá-la ao mundo exterior, leva-a a passear num velho e enorme carrinho de bebé. A situação leva à criação de mitos urbanos sobre o que a estranha velhota transporta no interior do carrinho (armas, droga, etc.). Tsuneo (Tsumabuki Satoshi) é um estudante universitário com poucas preocupações na vida, que se entretém com sexo casual e um part-time num café, até que um dia se cruza com "Josée". Além de ter desenvolvido uma grande perícia culinária, aquilo que poderá ser a principal razão do regresso de Tsuneo, Josée lê fervorosamente tudo o que lhe passa pela frente. Os livros são recolhidos pela avó no lixo. Há mais personagens em redor das duas principais, mas é a relação entre elas em que se sustém o filme. Josée não é uma "coitadinha", uma banal personagem de um dramalhão a puxar à lágrima — antes pelo contrário. Não será difícil de sustentar que é sim a personagem mais forte e determinada do filme. O final é surpreendente, provocando um verdadeiro choque emocional, que, num primeiro momento, pode passar por uma certa irritação para com o autor do argumento, que, afinal, apenas se limitou a desferir uma desagradável dose de realismo no culminar da história.

Continua

4ª Parte: Coreia do Sul

7/06/04

(1) O período Showa corresponde à presença do imperador Hirohito no trono do Japão (1926 – 1989).

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Capítulos
Encontros
1. China
2. Hong Kong
3. Japão
4. Coreia do Sul
5. Tailândia
6. Filipinas
1. Japão - Ichikawa Jun e Kaneko Fuminori
2. Coreia do Sul - Bong Man-dae e Lee Eon-hee
3. China - Zhou Xun e Li Shaohong
4. Final - Johnnie To, Wai Ka-fai, Pang Ho-cheung,
Motohiro Katsuyuki e Kang Je-gyu
cinedie asia © copyright Luis Canau.