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Udine 2004
Encontro com
Johnnie To, Wai Ka-fai, Pang Ho-cheung, Motohiro Katsuyuki e Kang Je-gyu. Sexta-feira, 30 de Abril.

Para o último dia do festival ficou reservado o encontro que atrairia a maior audiência. Tal era perfeitamente previsível, de modo que se optou por realizá-lo na própria sala de projecção. Os nomes presentes eram bem sonantes e, por uma vez, foram agrupados sem atenção às suas cinematografias, ao contrário dos dias anteriores, onde se reuniam cineastas sob o tópico de um cinema nacional – Japão, China, Coreia e Sudeste Asiático. Neste dia, estiveram no palco do Teatro Novo cinco cineastas: Johnnie To Kei-fung e Wai Ka-fai (co-realizadores de «Running On Karma» e «Turn Left, Turn Right») e Pang Ho-cheung («Men Suddenly in Black»), de Hong Kong; Motohiro Katsuyuki («Bayside Shakedown», 1 e 2), do Japão; Kang Je-kyu («Taegeukgi»), da Coreia do Sul.

Incontri Final

Para este último especial sobre Udine, dada a variedade de interlocutores e a frequência com que uma mesma questão atravessava o painel, optámos por um registo tendencialmente cronológico. Um pouco ao jeito de acta do evento.

O encontro iniciou-se a falar de pirataria, um dos factores que contribuíram largamente para mergulhar a indústria cinematográfica de Hong Kong numa profunda crise, há alguns anos atrás. Johnnie To disse que os problemas ainda persistem e são agora agravados com a entrada de VCDs do continente chinês e os downloads de filmes via internet (nada que os nossos leitores façam, esperamos). Outros problemas que afectam a indústria prendem-se com os filmes em si: “A audiência não tem muita escolha perante os filmes actualmente em exibição. O problema do mercado é também a sua incapacidade para oferecer ideias frescas”, afirmou o realizador.

To e Wai
O duo que assinou dois dos melhores filmes projectados: To Kei-fung e Wai Ka-fai.
Os filmes que To e Wai Ka-fai trouxeram a Udine são muito diversos nos seus registos; «Running on Karma» é um filme negro e violento, uma mescla de géneros, e «Turn Left, Turn Right», é uma comédia romântica algo desaparafusada. Como é que os cineastas funcionam quando co-dirigem filmes? “Quando realizamos filmes juntos eu trato dos aspectos mais criativos”, disse Wai. “To ocupa-se das questões de produção”.

Pang Ho-cheung, a terceira voz em cantonês que se ouviu na sala, falou das dificuldades que um jovem enfrenta para fazer filmes hoje em Hong Kong (Pang aparenta uns 20 anos, apesar de já ter passado dos 30). “Com a crise e a redução da produção local, tem sido mais difícil para jovens sem experiência terem uma oportunidade para entrar no mercado. Muitos dos jovens que começam agora a filmar estão já inseridos em alguma fase do processo de produção. Antes de assinarem o primeiro filme como realizadores já trabalhavam na indústria”.

Passou-se o microfone ao realizador japonês Motohiro Katsuyuki, questionado sobre e mistura sonora de «Bayside Shakedown 2», que apresenta com orgulho o dístico Skywalker Sound da LucasFilm nos posters, e também sobre qual a razão desse filme surgir numa “versão internacional”. Motohiro afirmou que era essencial manter a trilha sonora conhecida da série de TV em que os filmes se baseiam, ainda que se tivessem criado novos arranjos para a tornar mais “fresca”. Quanto à versão internacional, projectada em Udine, é mais curta em 20 minutos do que a original. “A versão japonesa resulta porque as pessoas conhecem bem as personagens e apreciam vê-las em determinadas situações e desenvolvimentos que não são essenciais para a história”, esclareceu o realizador. “Para quem não conhece a série de TV essas cenas não são importantes”.

Motohiro
Motohiro Katsuyuki, realizador de «Bayside Shakedown».
Quando lhe perguntaram a razão para o longo período de tempo entre «Swiri» e «Taegeukgi», Kang Je-gyu disse, bem humorado, que se esteve a divertir durante cinco anos. Mais a sério, desenvolveu: “Depois de «Swiri» comecei a trabalhar com outro argumento, mas não me agradava muito, por isso esperei uns dois anos. Entretanto, peguei em «Taegeukgi», que acabaria por levar três anos até ser concluído.

Nem sempre as traduções funcionavam com a maior fluidez e perante uma questão sobre o panorama actual do cinema dos nossos dias, que começou com um elogio à originalidade dos seus filmes, To Kei-fung referiu-se à sua cinematografia, afirmando que cada filme é único e tem o seu lugar próprio. Se tivesse de escolher a sua obra mais bem sucedida, To optaria por «The Longest Nite», que, curiosamente, é um dos títulos que surge creditado ao seu discípulo, entretanto saído de cena, Patrick Yau Tat-chi.

Kang Je-gyu
Depois de «Swiri», Kang Je-guy assinou outro blockbuster: «Taegeukgi».
Um tópico sempre interessante é o modo como cada cineasta balança os interesses comerciais e a realização da sua visão artística. Pang Ho-cheung explicou o seu método de trabalho. “O que fiz com os meus projectos foi levar uma ideia para o pitch com o estúdio ou com os financiadores. Apresento a estrutura, conceitos, descrevo uma ou outra cena engraçada, etc., sem passar o estilo do filme. A mensagem ou como será ela transmitida não entra nesta fase do processo, pelo que fico com muita liberdade para trabalhar.

Hong Kong é um mercado pequeno”, disse Wai, “isso condiciona o tipo de produção. Há dois tipos de produto: filmes comerciais, straightforward, atraentes para o grande público, audiências de miúdos e de pessoas mais velhas, mas há também espaço para os filmes mais pessoais, mais estilizados, onde se permite maior liberdade para contar a história, e que têm como consequência o risco da não absorção pelo mercado.” Este ano, Wai e To tentaram fundir as duas realidades com «Running on Karma», que funcionou muito bem comercialmente, mas que está muito longe de ser um filme “comercial”. “É muito difícil conseguir ter sucesso com um filme assim.

Para To, “é muito difícil encontrar o balanço certo entre o artístico e o comercial. Quando começo a filmar, tenho uma ideia definida do registo do filme; se se destina ao grande público, dou aos espectadores aquilo que eles esperam. Se é um filme pessoal, excluo o factor público do processo criativo. Preciso dos filmes comerciais para financiar os meus projectos pessoais.” Tão simples quanto isso.

Falou-se sobre a distribuição dos vários filmes projectados fora dos seus territórios, sobretudo na Europa.

Incontri: Final
«Taegeukgi» tem contratos recentes para distribuição europeia, de acordo com Kang Je-gyu, para quem o mais importante é o acto de comunicação inerente à produção dos seus filmes. O realizador sul-coreano afirmou ter crescido a ver filmes de proveniências variadas, como a Itália, França ou Alemanha. “Na Europa a penetração dos filmes asiáticos não é muito relevante, ainda que recentemente isso tenha mudado um pouco. Espero que se desenvolva esta interpenetração cultural.

To disse simplesmente: “Não sei. Espero que existam acordos de distribuição para os meus filmes”. Wai Ka-fai desenvolveu mais um pouco: “É difícil antecipar o modo como os filmes se irão portar fora de Hong Kong, que é o mercado para onde se destinam quando os concebemos. Estamos muito contentes com a possibilidade dos filmes serem mostrados aqui em Udine, para pessoas com paixão pelo cinema asiático.

Pang: “Só fiz dois filmes e nenhum deles foi distribuído na Europa, por isso se algum de vocês conhecer um distribuidor, por favor telefonem-me.” [Gargalhada geral.]

O único realizador japonês presente, Motohiro Katsuyuki, reforçou o tema da trocas culturais recíprocas, adiantado por Kang. Gostaria que os seus filmes pudessem ser vistos e apreciados em todo o mundo, que funcionassem tanto no mercado interno como no externo. Mas, como todos sabemos, é difícil que um filme comercial “estrangeiro” tenha público nos multiplexes e se for rotulado de “arte e ensaio” falha redondamente. «Swiri» no Mundial, por exemplo, seria impensável.

Pang Ho-cheung
Pang Ho-cheung, realizador de «Men Suddenly in Black».
Alguém da audiência, com a opinião que os filmes mostrados em Udine se assemelham todos a produções americanas — se era uma ironia, escapou-nos completamente —, pergunta ao painel: “... sendo assim, porque é que os filmes não são distribuídos no Ocidente?”

As respostas foram breves.

To: “Boa pergunta. Eu não sei porquê.” [Uma resposta simples, a gerar sonoros aplausos na plateia.]

Wai: “O nosso investidor também estará interessado na resposta a essa pergunta.

Pang: “Gostava de saber a resposta, mas estou contente [dirigindo-se à pessoa que colocou a questão] que o senhor pense que [os meus filmes] são comparáveis à produção de Hollywood. Tenho de dizer isso aos meus financiadores!

Motohiro: “O produto de Hollywood chega a todo o lado. O modelo existe, mas prefiro criar um filme ao modo japonês e mostrá-lo no exterior.” Um filme numa “versão internacional” com a sua aprovação talvez não abone muito a favor destes princípios do realizador... Sobre o registo dos seus filmes, Motohiro parte do princípio que o público procura divertimento, de modo que opta por um estilo pessoal, mas ligeiro, tentando oferecer “um pouco de tudo” à audiência.

Johnnie To foi inquirido sobre o significado de caracteres chineses não traduzidos que surgem a dada altura nas paredes de uma caverna em «Running on Karma» e se o leitor não viu o filme e quer apreciá-lo às escuras (e faz mesmo muito bem), sugerimos que ignore o resto deste parágrafo, bem como o seguinte. [saltar] “A cena em causa passa-se quando o protagonista entra numa gruta onde se oculta Sun-ko... [neste momento To é interrompido pelo telemóvel de Wai Ka-fai] ... que vive aí anos de pesadelo, por não conseguir suportar a culpa pelos actos que cometeu. A câmara não enquadra em pormenor o texto escrito nas paredes, que não era realmente importante, servindo apenas para criar atmosfera. Wai Ka-fai pode clarificar melhor este tema.

To Kei-fung
Sun-ko ocultou-se durante vários anos sem ser descoberto pelas autoridades, esmagado pelo enorme peso da culpa e sem conseguir encontrar uma saída para a situação. Passa por uma verdadeira tortura devido ao que sente dentro da sua cabeça”, concluiu Wai, sem que, afinal, acrescentasse muito ao já dito por To.

Seguindo uma questão de Ryan Law [1], Kang debruçou-se sobre a temática da posição dos blockbusters no mercado da Coreia do Sul. Dificilmente haveria alguém mais indicado para falar sobre o tema, já que «Swiri» e «Taegeukgi» são dois dos filmes mais lucrativos de sempre na Coreia do Sul. O realizador dividiu a resposta em aspectos positivos e negativos. O que é positivo é o facto dos blockbusters contrariarem a tendência no seu país em que são quase só os adolescentes que vão ao cinema, atraindo faixas etárias mais vastas. Filmes como «Taegeukgi» levaram ao cinema pessoas afastadas das salas há décadas, como Darcy Paquet refere do catálogo do festival. O ponto negativo é óbvio: “Sobra menos espaço para exibir os filmes pequenos ou independentes, um aspecto que lamento particularmente”, disse Kang.

Ainda em relação ao sucesso esmagador dos seus filmes, o realizador sul-coreano voltou a referir-se, com alguma humildade, ao seu desejo de usar o cinema como forma de comunicação. Neste plano, “comunicar é fazer crescer o cinema coreano”, comentou. “«Swiri» abriu a estrada e deixou uma pedra para a internacionalização do cinema local. «Taegeugki» consegue continuar esse caminho, para que todo o mundo lhe possa ter acesso e entender aquilo que é transmitido”, continuou, traçando um quadro ideal de um planisfério cinematográfico sem fronteiras, repleto de cinéfilos “cidadãos do mundo”.

A finalizar, qual o “projecto de sonho” de cada um?

Kang: “O meu sonho é continuar a amar o meu trabalho, sentindo uma felicidade profunda. Digo que amo o meu trabalho, mas também me pergunto até quando...

Incontri: Final
To: “Não sei o que vou filmar a seguir. Se tiver oportunidade vou pensar.

Wai: “É uma pergunta difícil... Nunca se proporcionou a ocasião para pensar sobre tal questão.

Pang: “Não penso muito sobre isso. Se me perguntar qual o filme que queria fazer inteiramente à minha vontade, seria um série B, tipo horror americano, com um pouco de sexo e um pouco de violência.

Motohiro: “Estou a viver o meu sonho neste momento.

Um comentário final que estava mesmo a pedir aplausos calorosos. Minutos depois, iniciou-se o final da noite e do FEFF, com a encantadora comédia romântica «Turn Left, Turn Right» de To e Wai e o blockbuster «Taegeukgi» [2], de Kang.


[1] Ryan Law fundou a Hong Kong Movie Database em 1995, a Korea Movie Database (apenas em chinês) em 2001 e o site CinemaThai, no início de 2004. Assina vários textos no catálogo do festival, sobre a indústria de Hong Kong e da Coreia do Sul.

[2] Provavelmente já escrevemos este título de formas diferentes, mas não nos preocupemos muito com isso. Surge mais frequentemente como “Taegukgi”, um pouco mais “English-friendly”, mas não evita que o “g” final seja lido erroneamente à “europeia” (dji) e não como “k”. Segundo a nova romanização, será “tae-geok-gi”. Ou “dae-keuk-ki”.? “Dae-geug-gi”? Definitivamente algo assim.

Fotos: Pedro Oliveira

28/05/2004



Udine 2004
Incontri: Cinema Japonês
Incontri: Cinema Coreano
Incontri: Cinema Chinês

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