4. Hong Kong ainda existe
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«Twins Effect»: capa do DVD de Hong Kong. |
Ainda se fazem filmes em Hong Kong. Temos provas. É certo que não vimos nenhuma obra-prima originária da Região Administrativa Especial, mas duas obras merecem uma menção honrosa (no mínimo): «Chik Yeung Tin Sai/So Close», de Yuen Kwai [vd. texto de Hugo F. Gomes], e «Hyn Huet Ching Nin/New Blood», de Cheang Pou-soi (Soi Cheang). Se «So Close» é um grande divertimento de acção fantasista que consegue fazer-nos deixar de preocupar com lógica e coerência, «New Blood» poder-se-ia inserir na nova leva de cinema de horror atmosférico, de origem asiática. A premissa é relativamente fresca: um fantasma persegue três pessoas que a tentaram ajudar. Porquê? Bom, para começar, ela não queria ser ajudada. Parte-se de um duplo suicídio de dois amantes, que são encontradas ainda com vida. Três almas caridosas, incluindo o polícia que encontrou o casal moribundo, oferecem-se para dar sangue. A jovem suicida morre e fica imensamente aborrecida porque o rapaz ficou em coma em vez de ir ter com ela. Cheng pega num texto estanque (o filme fica-se pelos 90 minutos) e filma-o de forma fluida, dinâmica quanto é preciso, sem que se sinta uma pinta de show off. Acrescem alguns momentos arrepiantes e um final que talvez pudesse dispensar o “twist”, mas que não desilude.
Ainda que «Chin Gei Bin/The Twins Effect» partilhe com «So Close», até certo ponto, o modo descomprometido com que se assume como puro entretenimento, o filme de Dante Lam Chiu-yin tem alguns pontos negativos a anotar: o guião é demasiado similar a «Blade II», com vampiros "ocidentais" (em vez dos zombies tradicionais presentes em filmes como «Mr. Vampire»), é um veículo para a banda de cantopop Twins (Gillian Chung Yan-tung e Charlene Choi Cheuk-yin), daí orientado sobretudo para uma audiência teen, e a acção (Donnie Yen Ji-dan) tem bons momentos, mas é a fantasia e os efeitos digitais que acabam por dominar. O humor, tolo e inconsequente, produz algumas gargalhadas e a participação especial de Jackie Chan e Karen Mok não podem deixar de constituir um valor acrescentado (Chan tem direito a alguns minutos de ecrã e a uma cena de combate). Muito longe de ser um bom filme, «The Twins Effect» tem o seu valor de entretenimento e não seria preciso encostarem-me uma arma à cabeça para o voltar a ver.
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Dois espectadores de «The Park» tentam, a grande custo, sintonizar as três dimensões, colocando em risco a própria saúde oftalmológica. |
Já «Chow Lok Yuen/The Park» só será revisto por força de um revolver engatilhado, encostado à zona temporal ou, em alternativa, com uma garantia escrita de que as três dimensões vão funcionar. (Neste último caso, ainda teria que reflectir.) História banalíssima e trés déjà vu, com um grupo de jovens irritantes que, apesar de investigarem o desaparecimento de um amigo, supostamente morto, passam o tempo todo muito divertidos na galhofa ou entretidos com questiúnculas menores. A acção decorre num parque de diversões abandonado — onde, anos atrás, uma criança morreu num acidente — e que, naturalmente, está assombrado. O texto é medíocre e leva a momentos embaraçosos, em particular no final. Sim, Andrew Lau Wai-keung é o mesmo senhor que co-realizou o excelente «Infernal Affairs». Quem diria. Quem o conheça daí, não julgue ter encontrado um novo “auteur”. Deram-nos uns óculos muito bonitos, para ver os (supostos) segmentos 3D, espalhados durante o filme (um deles deve ter uns 30 segundos), seguindo as instruções no ecrã (“por óculos”/”tirar óculos”). A verdade é que tentei inverter as cores (o ícone no ecrã tinha o azul trocado com o vermelho — a sério!), mas o efeito (ou a falta dele) foi o mesmo.
«The Tesseract» é uma co-produção Japão/Tailândia/Reino Unido. Baseado no livro homónimo de Alex Garland, o filme é falado em inglês e tailandês e dirigido por Oxide Pang Fat, conhecido sobretudo pelo trabalho partilhado com o irmão Shun (Danny) em «The Eye» e «Bangkok Dangerous». «Nothing to Lose» de Danny [vd. Deauville 2003] e «Bangkok Haunted», de Oxide [Sitges 2002] pareciam indicar que o trabalho a solo dos gémeos originários de Hong Kong não conseguia uma fracção do impacto dos filmes que assinaram em conjunto. «The Tesseract» não será usado para negar o que parece bastante notório, mas acaba por ser mais interessante de que a outras entradas referidas, sobretudo pela sua componente de experimentalismo visual, que lhe valeu o prémio de melhor fotografia. Por outro lado, as brincadeiras com os tempos narrativos e a repetição da acção por diversos pontos de vista acaba por se revelar inconsequente e artificial. Decha Srimantra foi também o director de fotografia de «The Eye», conseguindo assim o feito de amealhar o correspondente prémio em Sitges dois anos consecutivos.
Zhang Che
Este ano, o Festival de Sitges seleccionou três filmes de Zhang Che, falecido em 2002, para homenagear um dos mais influentes cineastas de Hong Kong: «Bin Shing Saam Hap/Magnificent Trio» (1966), «Duk Bei Diy/One Armed Swordsman» (1967) e «Chi Ma/The Blood Brothers» (1977). Não foi possível assistir ao primeiro, por termos programado estar presentes na conferência de imprensa com Quentin Tarantino, que, afinal, acabou por não se deslocar à vila catalã. Para quem não está familiarizado com a obra do realizador, esta pequena selecção poderia funcionar como uma introdução; a Zhang e aos temas que influenciariam o cinema de realizadores como John Woo, em particular os vincados conceitos de honra, os fortes laços de amizade entre os heróis e a relegação dos papéis femininos para segundo plano. É preciso fazer notar que estes filmes estão algo datados, em particular se os compararmos com o modo de filmar acção em Hong Kong, a partir do início dos anos 80; não se esperem acrobacias tresloucadas, nem coreografias rápidas e intrincadas. Poderíamos dizer que as artes marciais deste período estão para o cinema pós-anos 80, como um velho western — em que uma personagem depois de baleada, agarra-se dramaticamente ao peito, espera um minuto e deixa-se cair, devagar, no chão — está para «The Quick and the Dead», de Sam Raimi. «Blood Brothers» baseia-se em factos reais e conta-se em forma de flashback, quando o herói (David Chiang Daai-wai) é julgado pelo homicídio de um oficial e ex-amigo (Ti Lung). Os problemas começam quando se delineia um triângulo amoroso. «One Armed Swordsman» é protagonizado por outro ícone do cinema clássico de artes marciais, Jimmy Wang Yu, que interpreta o papel de um infeliz que se vê afastado do seu clã e do lar adoptivo depois de perder um braço. Naturalmente, vai treinar o braço esquerdo para ser uma arma letal. Às mulheres cabe o papel de catalisadores da desgraça, num tipo de cinema que visava também cortar com o domínio do protagonismo das actrizes e com os heróis masculinos fisicamente débeis, do tipo artista ou intelectual.
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Uma referência incontornável do cinema de kung fu "old school": «The One Armed Swordsman». |
A audiência não estava muito interessada em arqueologia ou em conhecer clássicos, pelo que as sessões foram um festim de galhofa, piorada pelo facto da ausência de legendagem electrónica em espanhol ter levado a organização a recorrer a um sistema de tradução simultânea via rádio, na projecção de «One Armed Swordsman». Ora, para aqueles que estavam satisfeitos com a legendagem impressa na película (chinês/inglês) e tentavam simplesmente seguir a história, ou seja, os que estavam completamente fora da “piada”, o visionamento foi algo indigesto. Não só pelas gargalhadas provenientes dos diálogos e da tradução monocórdica, mas também porque era inevitável ouvir, ainda que baixinho, em fundo, a voz do senhor a traduzir o filme. A motivação que leva dezenas ou centenas de pessoas a disporem-se para ver um filme com tradução simultânea passa-me ao lado, mas não ficaria aborrecido se não tivesse que notar, constantemente, a sua presença tão ruidosa.
Se se pode dizer que se seleccionaram alguns filmes de Hong Kong minimamente representativos da produção recente, o mesmo não sucedeu no que toca à Índia. O festival não pode ter muitos filmes de todos os territórios, isso é óbvio, mas é pena que a única entrada de Bollywood tenha sido «Jism», um thriller erótico — muito “quente” para os padrões locais (até há um ou dois beijos ofegantes) — banalíssimo, onde nem as canções conseguiam animar. Um advogado boémio e mulherengo conhece uma femme fatale casada com um homem rico, do qual não se importava nada de se ver livre. Soa a familiar? É muito natural, pois a história já foi filmada imensas vezes e, em alguns casos, sem induzir a sonolência.
Continua em Coreia do Sul em Alta
11/01/04
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