Mong Kok Hak Je/One Nite in Mongkok
旺角黑夜 (wàng jiăo hēi yè)
Realizado por Derek Yee Tung-sing
Hong Kong, 2004 Cor – 110 min. Anamórfico.
Com: Daniel Wu [Ng Yin-cho], Cecilia Cheung Pak-chi, Alex Fong Chung-sun, Chin Kar-lok, Anson Leung Chun-yat, Lam Suet, Ken Wong Hap-hei
drama crime
Capa DVD
A concorrência entre dois grupos juvenis que vendem falsificações nas ruas de Mongkok conduz a um confronto físico entre os dois líderes. Os ânimos exaltam-se ainda mais e o sangue escorre. Os patriarcas dos clãs tentam resolver o conflito, mas não surge nenhuma solução pacífica. Um deles contrata um assassino para eliminar o rival, mas a polícia toma conhecimento do plano. O serviço é providenciado por um intermediário (Lam), que contacta Lai Fu (Wu), um conterrâneo, pobre e analfabeto, que pretende encontrar a namorada que imigrou para Hong Kong. Dois dias depois do embate sangrento, que colocou duas tríades em pé de guerra, Lai vagueia por Mongkok, onde encontra Dandan (Cheung), outra imigrante do continente chinês, que será a sua cicerone num terreno que conhece bem; viaja regularmente para Hong Kong, como turista, onde se dedica à prostituição.

Depois de uma década em que se produziram em Hong Kong, em quantidades industriais, filmes de acção com polícias e tríades, o policial noir seria recuperado por alturas da retrocessão do território para a República Popular da China, com um punhado de excelentes títulos produzidos na Milkyway de Johnnie To Kei-fung. Onde antes havia uma densa sombra de romantismo a cobrir as figuras de assassinos que respeitavam códigos de honra, na tradição milenar dos guerreiros de outros tempos (俠 xiá), e a acção era frequente, estilizada e de grande impacto, passaram a explorar-se meios de fugir à rotina e de quebrar as convenções do género. A braços com a crise económica e com o domínio do produto de Hollywood, mais "profissional" e mais caro, procuravam-se outras formas de recuperar as audiências.

... be carefull out there.
A polícia procura deter Lai Fu antes da execução do contrato.
Os noirs da Milkyway poderão não ter sido sucessos esmagadores, mas deram um grande contributo para a regeneração de uma indústria em crise profunda, que precisava de algo mais do que “filmes de qualidade” para agradar aos críticos. O estúdio entendeu-o e o rótulo Milkyway começou a ser visto associado a várias comédias ligeiras que subiram nos tops de bilheteira, permitindo sustentar a produção de filmes mais arriscados em termos de mercado. Mais recentemente, «Miu Gaan Diy/Infernal Affairs» (2002) veio demonstrar que uma obra de grande qualidade consegue ser número 1 no box-office e contribuiu para que no Ocidente se começasse a associar o cinema de Hong Kong a algo mais do que filmes de acção e artes marciais.

Em 2004 podemos destacar três exemplos do filme policial made in Hong Kong, onde a acção e a estilização já não são o que mais importa ou o que mais chamará a atenção: «Dai Si Gin/Breaking News», de To Kei-fung, «Oi Zok Zin/Love Battlefield», de Cheang Pou-soi, e este «One Nite in Mongkok», de Derek Yee, talvez o mais marcante, sóbrio, equilibrado e descomprometido dos três.

Além do rótulo de género que não repugnará apor a todos os títulos referidos, há um elemento político-social subjacente ao texto, que não pode deixar de ser isolado: o Factor Continente ou a utilização de personagens provenientes da RPC com uma função essencial no cerne da narrativa. São-nos apresentadas variações de criminosos continentais, à procura de melhores oportunidades em Hong Kong, sendo «Breaking News» aquele onde a origem das personagens é mais incidental e menos relevante para o quadro geral da história, reflexo, também, da natureza mais comercial, de “entretenimento de qualidade”, com que o realizador investiu a obra, apresentando-se formalmente apetecível para festivais e mercados internacionais.

Wu Cheung
Lai Fu (Daniel Wu) e Dandan (Cecilia Cheung), na noite negra de Mongkok.

«Love Battlefield» e «One Nite in Mongkok» abordam frontalmente problemas relacionados com a pobreza no interior chinês que impele à emigração para Hong Kong (1). Em «Love Battlefield», tal como em «Breaking News», as motivações dos imigrantes são as piores, i.e., a prática de crimes. Na obra de Yee Tung-sing acentuam-se, de forma contundente, as causas que mais facilmente associamos à emigração: a pobreza e a procura por uma vida melhor. Há uma quase insuportável clausura das personagens, que, longe de suas casas, para onde quer que se virem, parecem condenadas a ter diante de si um beco sem saída. Yee opta por um registo sócio-realista, sem preocupações de maior com a vertente "acção". O resultado é um drama pesado e deprimente, mas que consegue deixar uma marca bem vincada.

Hong Kong, afinal, não só não é um paraíso, como se pode revelar um verdadeiro inferno para os dois imigrantes, interpretados por Cheung Pak-chi e Daniel Wu. Com uma personagem nos antípodas desta, Cheung inclui na sua filmografia uma obra que ilustra similarmente a procura por um futuro melhor noutro território, sendo confrontada com uma dura realidade e com o estilhaçar das esperanças: «Failan» (2001), de Song Hae-seong. Aí, a Coreia do Sul era o esperado "paraíso" e Cheung uma jovem pura e inocente, que apenas deseja sobreviver, ganhar a vida honestamente, mas que se vê numa situação próxima de se tornar numa "Dandan".

Lam Wu
Lam Suet (esquerda) interpreta um intermediário ganancioso sempre disponível para ajudar um conterrâneo.

A personagem de Bailan foi feita à medida de actriz de Hong Kong, mas o mesmo dificilmente poderia ser dito no que toca a «One Nite in Mongkok». Aqui, o casting provavelmente foi condicionado pelo peso dos nomes no poster, já que seria mais prático utilizar uma actriz originária do continente chinês (2) ou, pelo menos, fluente em mandarim — algo que Cheung não é certamente, como admite na entrevista disponível no making of, o que levou à necessidade de alguns dos seus diálogos serem refinados em pós-produção (3). Tanto em «Breaking News» como em «One Nite in Mongkok» se optou, para responder às necessidades do guião e da importância dos diálogos em mandarim, pela escolha de actores fluentes nesse dialecto. Outro aspecto é a natureza pouco glamourosa do filme e daquilo a que as personagens estão sujeitas, que poderia colidir com a imagem mais limpinha e bem-comportada da actriz e que, dir-se-ia, contribuíram para o modo como algumas cenas foram rodadas.

Rookie
Fong
A polícia aproxima-se...
Mongkok, é-nos informado por algumas frases que surgem no ecrã, é a área mais densamente populada do mundo (4). Dentro de Hong Kong é também um local onde o comércio, legal e ilegal, fervilha particularmente. No meio da vasta massa de gente há pessoas reais, e Derek Yee sabe como isolar e definir personagens e ilustrar compassivamente os seus dramas, como já pudemos constatar em «San Bat Liu Ching/C'Est la Vie Mon Chéri» (1993), no anterior «Mong Bat Liu/Lost in Time» (2003) ou mesmo em «Sik Ching Laam Lui/Viva Erotica» (1996), nos bastidores do cinema para adultos. Yee é mais conhecido (e respeitado) pelo seu trabalho no seio do drama clássico (5), de modo que não seria de esperar um investimento convencional no cinema “de género”. Os elementos que enformam aquilo que definimos como policial noir são um mero pano de fundo sobre o qual as personagens se movem.

Temos aqui uma mão (bem) cheia de peões de um jogo que se desenrola durante uma véspera de Natal. A excelente caracterização das personagens reflecte-se desde logo no grupo de polícias que persegue Lai Fu, de onde se destaca o líder (Fong), o seu braço direito (Chin) (6) e o rookie, inexperiente e impetuoso, cheio de vontade de provar o seu valor. Há aqui alguns clichés do cinema de género, mas a experiência de Yee na escrita das personagens e na direcção dos actores faz-se notar, conferindo-lhes particular credibilidade, essencial para conferir ressonância dramática ao desenlace. Para lá do ponto de vista do filme, do argumentista, temos vários interesses em jogo, sem que nenhum domine o rumo dos acontecimentos ou deixe antever o percurso narrativo.

Luz
Yee humaniza polícias e criminosos, sem facilitar o processo de identificação de "vilões". Os que são assim claramente identificados, os líderes e membros das tríades, não passam de secundários, que servem o contexto, condicionam o destino dos protagonistas, mas depressa saem de cena. O filme nunca é sobre a lei a tentar impedir um plano criminoso, mas antes sobre pessoas que fazem o melhor que podem para sobreviver. O texto não se esforça por branquear moralmente o assassino — ou melhor, candidato a assassino — fazendo-o balbuciar queixumes sobre como não queria mas é obrigado a executar o serviço. Pelo contrário, ele está determinado a cumprir o contrato, mesmo que não esteja exactamente cheio de vontade de matar alguém. A personagem está tão distante das caricaturas dos assassinos do continente, conforme surgem num filme como «Ye Sau Ying Ging/Beast Cops» (1998), como dos gentlemen, cultos e bem vestidos, que têm o exemplo paradigmático no Chow Yun-fat, de «Dip Huet Seung Hung/The Killer» (1989), que frisa que só mata "homens maus", acrescendo o desejo de abandonar tal serviço como forma de gerar mais empatia com a audiência.

4,5

(1) Nos termos da política de um país dois sistemas, Hong Kong é uma Região Administativa Especial até 2046, de modo que, na prática, as fronteiras continuam a regular relações comerciais e de movimentação de cidadãos como se se tratasse de dois países diferentes.

(2) Como Qin Hailu, e provavelmente todos os actores que compunham o bando do continente, em «Love Battlefield».

(3) Numa das cenas apagadas disponíveis no DVD podemos ver material em bruto em que Cecilia Cheung repete o diálogo mandarim que alguém lhe vai ditando fora do enquadramento.

(4) Os números surgem, de facto, no making of. Área: 7 km2; População: 280 mil pessoas; 300 mil residentes ilegais.

(5) Como o título chinês indica, «C'Est la Vie Mon Chéri» é um remake de «Qing Bu Liao/Love Without End» (1960), que já havia sido reinterpretado nos anos 70.

(6) Chin Kar-lok é também coreógrafo de acção.

DVD de Hong Kong (Universe R0) com dois discos em slipcase de cartão. Optimização 16:9, som DTS e Dolby 5.1. Os extras principais, infelizmente, não têm legendas em inglês. Comentário áudio, making-of, cenas apagadas, registo de actividades de promoção, galeria de fotos, teaser e trailer do filme. O making-of tem apenas legendas impressas em chinês tradicional. O trailer tem legendas em chinês e inglês (também não removíveis). Acrescem mais quatro trailers para outros lançamentos do editor: «Enter the Phoenix», «Anna in Kungfu Land», «Protégé de la Rose Noire» e «Love on the Rocks» (apenas o primeiro é legendado em inglês).

publicado online em 12/12/04

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