Kang Failan (Cheung) é uma jovem de 20 e poucos anos que emigra da China, depois da morte da mãe, pensando em trabalhar no restaurante de uma tia, a única parente viva que lhe resta, em Inchon, na Coreia do Sul. Chegando ao local, constata que a tia viajou para o Canadá, encontrando-se sozinha, num local estranho, sem conhecer ninguém. (Por alguma razão não contactou a tia antes de empreender a viagem). Lee Kang-jae (Choi) é um gangster bem no fundo da cadeia alimentar. Com a mesma idade de Yong-sik (Son), líder de um grupo criminoso que explora a imigração ilegal, bares de prostitutas e pornografia, Kang-jae está no mesmo nível de um qualquer delinquente adolescente, recentemente integrado no gang, especialmente depois de cumprir uma curta pena de prisão, regressando para uma posição ainda menos digna. A improvável ligação entre Failan e Kang-jae é lentamente desvendada, através de uma série de flashbacks, que nos mostram as suas histórias, em separado.
Baseado num livro do japonês Asada Jiro, «Failan» não foi um filme particularmente bem sucedido na Coreia do Sul, num ano em que nos tops de bilheteira se encontram títulos como «Friend» (1), «My Sassy Girl» (2) ou «Musa» (7), mas foi gradualmente constituindo uma sólida plataforma de fãs, que conseguiram que o filme voltasse às salas de cinema. Entretanto, os festivais internacionais foram-no dando a conhecer por esse mundo fora, sendo uma pena que por cá não tenhamos nenhum dedicado ao cinema asiático e que o Fantasporto se tenha revelado demasiado generalista para poder cobrir satisfatoriamente estas cinematografias. Por ora, o filme pode ser conhecido através do barato DVD de Hong Kong ou através da menos barata edição coreana, com a desvantagem de incluir um disco inteiro de extras não legendados. Infelizmente, tem sido mais fácil vermos nas nossas salas uma versão americana extra xaroposa com Tom Cruise e Penelope Cruz, do que o filme original falado numa língua que não o inglês e sem caras conhecidas do público.
Certos detalhes do argumento de «Failan» são frequentemente incluídos em "sinopses" do filme, os quais defendo deverem ser descobertos pelo espectador, com o timing decidido pelos cineastas. Com isso presente, este texto será possivelmente mais vago do que o costume, no que toca à referência a particularidades da história.
| Uma cena junto ao mar.
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«Failan» é um filme triste e consideravelmente deprimente que se insinua, durante os primeiros 40 minutos, como apenas mais uma história de gangsters. Depois do prólogo, esquecemos Failan (ou Bailan, na romanização oficial, em pinyin, do nome chinês) e seguimos Kang-jae e as suas atribulações na hierarquia criminosa. Permanentemente humilhado por miúdos com metade da sua idade e apontado pelo líder como não tendo sido talhado para aquele serviço, dada a sua fraqueza perante situações que implicam frieza, Kang-jae sonha em retirar-se para a sua terra natal, comprar um barco e dedicar-se à pesca. Um acidente vai-lhe dar a oportunidade de ganhar o respeito que gostaria de receber, no seio dos marginais, exigindo-lhe ao mesmo tempo um considerável sacrifício. Que terá ele a perder?
Failan procura uma vida simples, um local onde possa morar, qualquer trabalho digno que possa fazer. Em dois momentos do filme, dirige-se a locais com a palavra "esperança" no nome de firma, sendo um deles o centro de emprego, onde a informam da dificuldade em permanecer do país com um visto temporário. A esperança é pois um dos temas mais vincados no filme de Song Hye-seong e a mensagem que paira no ar não é apresentada do modo mais convencional, com as obrigatórias recompensas pelos comportamentos moralmente correctos, por parte de personagens imaculadas (Failan é uma rapariga tão boazinha que até dói) ou por arrependidos de uma vida de crime e violência (Kang-jae, mesmo abusado, parece pedir apenas o nosso desprezo), mas é capaz de provocar uma profunda reflexão no espectador, sobre as amargas injustiças da vida. Triste, mas positivo, talvez se possa dizer.
| Kang-jae (Choi), um reles gangster, ri-se da ingénua sinceridade presente numa carta.
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Já se criou uma certa reputação em redor de «Failan» de ser um filme capaz de comover o mais frio homem de barba rija, mas não seria justo procurar reduzi-lo a um simples melodrama credível (não que existam muitos, em particular no meio da necessidade moderna de manter a boa disposição do espectador, como se daí dependesse exclusivamente as receitas de bilheteira). O destino das personagens e o modo como o argumento brilhantemente os inter-relaciona torna-o, sem sombra de dúvida, um dos filmes mais emotivos das últimas décadas. O convincente trabalho de Choi, um dos actores mais requisitados no seu país, conhecido de filmes como «Shiri» ou «Happy End» (ambos de 1999), é essencial para o resultado final e o mesmo poderá ser dito da actriz de Hong Kong Cecilia Cheung. No caso de Cheung, no entanto, o minimalismo da sua performance é também consequência da personagem (e a actriz?) tentar lidar com uma língua que não entende e que vai aprendendo gradualmente. Ainda assim, tem de se admirar a composição final da personagem.
«Failan» não cai na lamechice gratuita nem manipula os acontecimentos com o mero fim de atacar a (maior ou menor) sensibilidade do espectador. Subjaz-lhe um enquadramento social e económico da Coreia do Sul dos nossos dias, que também consegue dizer algo ao público estrangeiro. As personagens procuram uma solução, uma vida nova, mas tudo parece conspirar para que tal lhes seja negado. Para além da falsa "esperança", presente fisicamente nos cenários do filme, nos momentos finais Song insere cuidadosamente uma bandeira coreana, como símbolo dessa negação.
Apesar do nome próprio da personagem de Cheung Paak-chi se poder traduzir por "orquídea branca" – tanto em chinês como em coreano, se não estou em erro – entre os possíveis significados de cada caracter isolado encontramos laivos de alguma amarga ironia: Kāng 康 (saudável), bái 白 (branco, puro, pálido), làn 烂 (infectado).
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