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Udine 2004
Incontri: Cinema Japonês
Com Ichikawa Jun, Kaneko Fuminori e Isoyama Aki. Sábado, 24 de Abril.

O primeiro incontri a que comparecemos em Udine levou-nos à presença de três cineastas japoneses: Ichikawa Jun, do qual foram seleccionados quatro filmes a título de tributo, e Kaneko Fuminori e Isoyama Aki, realizador e produtora do filme «Kisarazu Cat's Eye – Go Major!», que inaugurou as meias-noites do festival. O encontro foi moderado por Mark Schilling, responsável pela selecção de filmes japoneses. As intervenções foram intercaladas, mas optámos por não respeitar a cronologia, onde razões de coerência temática o sugeriram.

Incontri Cinema Japonês

Como ambos os realizadores presentes iniciaram a carreira no meio televisivo, a primeira pergunta de Schilling (de casaco castanho, na foto acima) prendeu-se com o modo como decorreu a transição da TV para o cinema. Ichikawa Jun dirigiu muita publicidade para televisão, mas o seu modo de trabalhar, afirmou, era já bastante “cinematográfico” e não exclusivamente comercial, pelo que a transição não lhe trouxe problemas de maior. Para Kaneko Fuminori, que nos apresentou um filme baseado numa série televisiva, a mudança trouxe ainda menos dificuldades, “foi apenas uma questão de encontrar o ritmo e a aproximação adequada para entreter a audiência durante duas horas”. O seu trabalho não foi muito diverso, uma vez que usou uma câmara digital para rodar o alucinante «Kisarazu Cat's Eye» e os actores eram os mesmos com que já trabalhava na série de TV. Isoyama Aki, produtora de Kaneko, acrescentou que ao converterem o “TV drama” num filme tiveram de se preocupar em tornar o material compreensível para o público não familiarizado com a série. Simultaneamente, procuraram subir o nível e os valores de produção, numa abordagem mais sofisticada.

Isoyama Aki Kaneko Fuminori
Isoyama Aki e Kaneko Fuminori, a produtora e o realizador do filme «Kisaraku Cat's Eye - Go Major!».

Kaneko e Isoyama explicaram piscadelas de olho e referências presentes no seu filme. Aikawa Sho, um rosto familiar de inúmeros filmes de yakuzas (muitos dos quais realizados por Miike Takashi) e que atrai o culto de muitos cinéfilos, incluindo duas personagens do filme, surge como “guest star” em «Kisarazu». A dada altura, depois de uma longa espera pela sua intervenção, perguntam-lhe o que é que ele esteve a fazer. O “Yakuza” diz que esteve ocupado a rodar um filme chamado «Zebraman» (um dos últimos de Miike). Inerente a este diálogo não há qualquer "sentido profundo", referiram, nem a referência estava originalmente no guião; era apenas o que o actor estava de facto a fazer na altura. Por outro lado, o argumentista do filme de Miike Takashi é o mesmo de «Kisarazu Cat's Eye»: Kudo Kankuro. Esse facto torna ainda mais natural essa referência, reconhecida por boa parte do público do festival, que, mesmo não conhecendo o filme, saberia tratar-se de um projecto do realizador de «Gozu» e «Ichi the Killer».

Os constantes rewinds no filme de Kaneko, regressando a acções passadas para rebuscar novos pormenores surpreendentes, não foram inspirados em «Lock, Stock and Two Smoking Barrels», de Guy Ritchie. Mas Isoyama admitiu influências do estilo narrativo de «Pulp Fiction» e do drama sul-coreano «Christmas in August».

Sobre as várias referências à Coreia do Sul — o nome da personagem central, Bussan, e a rapariga que conhece num bar com “acompanhantes” imigrantes daquele país —, Kaneko afirmou não ter existido uma intenção de abordagem enquanto tema específico. Esses elementos foram criados por forma a potenciar um maior contraste na história de amor, mas reflectem também o facto de existir actualmente no Japão muito interesse pela cultura pop coreana. Aproveitou-se ainda para deixar uma mensagem sobre uma certa discriminação em relação aos coreanos, que já se manifesta pouco no Japão, mas que ainda existe.

Ichikawa Jun
O realizador Ichikawa Jun, do qual foram projectadas quatro obras em Udine.
«Dying at the Hospital» é um filme que não recorre a grandes planos do rosto dos actores, ao contrário de outro filme de Ichikawa, «Tokyo Marigolds», projectado na manhã do dia em que se realizou este encontro. («Busu», já havia sido apresentado no primeiro dia do festival, mas só chegámos a tempo dos filmes da noite). A câmara estática e os planos gerais, segundo o realizador, permitiram tornar todos os protagonistas iguais perante o olhar do espectador e também perante a morte. O filme, necessariamente deprimente pela temática focada, equilibra-se assim com o distanciamento da câmara. Tal como não há divisórias entre as camas nos hospitais japoneses, também não há enquadramentos que separem e direccionem o nosso olhar para personagens específicas. “Foi uma forma de não personalizar a morte”, afirmou Ichikawa.

Alguém da audiência que havia lido sobre o livro em que se baseia o bizarro «Tadon to Chikuwa» suscitou um comentário de Ichikawa, comparando conceitos estéticos na sua filmografia. O realizador referiu-se ao mundo violento em que vivemos, onde por vezes surge uma inversão de papéis entre agressores e vítimas. As duas personagens deste filme revoltam-se contra aqueles que os circundam, cometendo actos violentos. Ichikawa afirmou tratar-se de um filme pessoal, baseado no que ele sentia sobre a sociedade contemporânea (sem se limitar exclusivamente à japonesa). A dada altura no filme, há uma delirante sequência que envolve jactos de sangue coloridos, em tons de pastel, que se substancia numa forma de reflectir sobre a violência e a imprevisibilidade da morte.

Ichikawa Jun referiu-se às diferenças no seu cinema ao longo dos anos, comparando o seu estilo em «Tokyo Marigold» (2001) e «Busu» (1987). Começou por referir que nunca tinha visto nenhum dos filmes num ecrã tão grande, o que lhe permitiu identificar coisas novas, como a maior fluidez no filme mais recente, por comparação com a obra anterior, e algumas imperfeições em «Busu».

Incontri Cinema Japonês
O incontri finalizou com Ichikawa a comentar o seu último filme, «Tony Takitani», que se baseia num conto do escritor Murakami Haruki, sobre um homem casado com uma mulher com um distúrbio compulsivo para comprar roupas. O filme foi rodado num set aberto, ao estilo de «Dogville», de Lars Von Trier. Encontrámos uma pequena discrepância nas duas traduções – inglês e italiano – mas como o comentário poderá estar ligado ao final do filme optamos por exclui-lo tout court. (Em todo o caso, os mais curiosos poderão ler o referido conto online no site da revista New Yorker).


Fotos: Pedro Oliveira

17/05/2004



Udine 2004
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