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Liu Zhikang (Kaneshiro) almeja tornar-se um violinista, mas tem de se sujeitar a sessões de gravação para música pop insipiente ou a tocar num restaurante. Cai Jiayi (Leung) gosta de traduzir poesia polaca, mas o seu ganha-pão advém da tradução de contos de terror germânicos, algo que não só detesta como lhe provoca pesadelos (1).
Duas vidas paralelas demasiado próximas para se encontrarem, Zhikang e Jiayi vivem separados pela parede do destino e do prédio onde habitam, mas nunca se cruzam à saída, porque um sai para a esquerda e o outro para a direita. Quando finalmente se encontram, constatam que um vasto mar de coincidências os tem aproximado/separado. Este momento não é o final do filme. Na verdade, ainda estamos na premissa: apesar de trocarem números de telefone, e seguirem caminho a saltitar de alegria, o destino e o mau tempo torna-os ilegíveis e os dois continuam a viver contiguamente sem conseguirem reencontrar-se. Entretanto, entram em cena uma empregada de um restaurante de comida ao domicílio e um médico, cada um deles perdido de amores pelo protagonista de sexo oposto e tão determinados a conquistá-los como a impedir que um encontre o outro.
«Turn Left Turn Right» foi rodado em Taiwan por forma a conquistar o vasto mercado mandarim (2). Os produtores optaram também por uma associação com a major Warner de modo a rentabilizar o filme, sobretudo a nível de distribuição e marketing, sem que — de acordo com To — tenha existido qualquer cedência artística ou tentativa de interferência por parte do estúdio. Com o interesse crescente de capitais estrangeiros (sobretudo estúdios americanos) no cinema popular asiático e com o novo regime de co-produções com o continente chinês é de prever que cada vez mais obras de Hong Kong se situem fora das fronteiras do território e que o cantonês seja, ocasionalmente, posto de parte como dialecto dominante (3).
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Duas vidas paralelas ou o amor nos antípodas. |
A facilidade com que Johnnie To Kei-fung transita de registo e de um filme "sério" para uma comédia ligeira e inconsequente não é apreciada por muito boa gente, sobretudo no ocidente. To poderia, certamente, ceder a realização a um "estagiário" como fez no passado a Patrick Yau Tat-chi, mantendo o seu nome apenas associado a projectos mais pessoais — como quando Wong Kar-wai se fica pela produção de filmes ligeiros e populares, como «The Eagle Shooting Heroes» (1993) e «Chinese Odyssey 2002» (2002). Isto se To se preocupasse minimamente em ser internacionalmente reconhecido como "um grande auteur". A verdade é que o realizador de Hong Kong não rejeita misturar na sua filmografia entradas tão díspares como os "noirs" «PTU» e «The Mission» com comédias um tanto ou quanto sensaboronas como «Needing You» (2000), algo que se pode constatar pela entrevista que o realizador nos concedeu há algum tempo atrás ou pelo registo dos encontros no Festival de Udine 2004, onde To esteve presente.
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Se o amor é uma doença a cura não é o Dr. Wu. |
O filme estreou no mesmo ano de «Running on Karma» (também projectado em Udine), da mesma dupla de realizadores. Os género e o tom das duas obras são radicalmente diversos – dificilmente uma “prova cega” identificaria o mesmo “autor” —, mas também aqui marcam presença os caminhos impostos pelo Destino e os condicionalismos “kármicos” que envolvem as personagens. Enquanto «Running on Karma» é um filme negro, emocionalmente forte e difícil de digerir, «Turn Left Turn Right» usa alguns princípios filosóficos similares para fazer sofrer as suas personagens com as ironias do destino, bem como o público, ansioso por uma resolução satisfatória no plano romântico.
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Vira à esquerda... Vira à direita... |
«Turn Left Turn Right» está longe de ser uma comédia ligeira desenxabida e facilmente esquecível. Tal não será a opinião maioritária, mas é de admitir que algumas pessoas insistem em estar preparadas para um "filme de Johnnie To", confinado a um determinado género e um estilo que conhecem e apreciam. Que se coloquem tais expectativas de parte e se aprecie o filme pelo que é: uma comédia romântica despretensiosa e, no entanto, capaz de seduzir pela improbabilidade assumida dos acontecimentos e pelo quarteto delicioso de personagens em redor das quais se desenvolvem, em paralelo, toda uma série de situações com maior ou menor comicidade.
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Terry Kwan e Edmund Chen. |
O argumento assinado por Wai Ka-fai tem por base um livro ilustrado do taiwanês Jimmy Liao (que tem um cameo com a sua família) (4) — conhecido pelo título inglês "A Taste of Sunshine" —, tendo-se optado por criar ex novo duas personagens para balançar com os protagonistas e fornecer um maior contraste de humor, explorando um sadismo ligeiro por parte da audiência, que não pode deixar de se divertir, na posse do conhecimento de todos os factos. Uma opção muito feliz, pois a histeria incontrolável dos dois secundários retempera a relação "condenada" dos protagonistas, conseguindo evitar que se avance muito por dentro do território do xaropesismo delicodoce. Os actos de terrorismo sentimental perpetrados por Ruby (Kwan) e pelo Dr. Wu (Chen) dão azo, aliás, a alguns dos momentos mais divertidos do filme, à medida que se transmite ao espectador a frustração do casal que não se consegue reunir, e uma das razões porque gostamos das personagens é que entendemos a razão da sua malícia — é um acto de retaliação contra o destino.
Os diálogos são um reflexo das vidas que são vividas em paralelo pelas duas personagens ("tão perto, tão longe"). Em larga medida parece que se escreveu metade do guião e depois se duplicaram os diálogos com as adaptações necessárias. Sem exagerar a "auto-consciência", o filme assume o mecanismo "copy and paste" quando, a dada altura, uma personagem debita o texto rapidamente e sem convicção. (Porque, afinal, nós acabámos de ouvir aquilo da boca do "outro"...) Num outro momento, que se poderia incluir na auto-consciência cinematográfica ainda que se reconduza a uma metáfora, os secundários, entusiasmados, proclamam que o protagonismo “da história” é deles.
«Turn Left Turn Right» é uma comédia romântica vertente screwball ou, talvez, mou lei tau, coerente e equilibrada dentro da sua realidade muito própria, extravagante e absurda, mas sincera e com potencial para se revelar um pouco comovente perante as almas mais sensíveis. A sua apreciação foi sem dúvida beneficiada pelo visionamento numa sala de 1200 lugares com lotação esgotada e com um público dentro do espírito do filme, mas revê-lo em DVD permitiu confirmar todos os seus méritos.
(1) As personagens são creditadas como John Liu e Eve Choi mas nunca são referidas pelos nomes durante o filme.
(2) O facto da obra original e o seu autor serem originários de Taiwan também foi, obviamente, um factor de peso na opção. Mas, como se costuma dizer, esta é uma história que se poderia passar em qualquer lugar e em qualquer época.
(3) Na verdade, Kaneshiro e Leung falam em cantonês durante a rodagem o que anula todas as possibilidades de termos uma pista de som onde os lábios dos actores estão 100% sincronizados. Muitos secundários falam também cantonês, mas Chen e Kwan usam o mandarim e são dobrados por outros actores na pista cantonesa. O filme é "oficialmente" falado em mandarim — é o dialecto da cópia de festival e a faixa que arranca por omissão no DVD (além de não ser natural ouvir-se o cantonês em Taiwan) e todos usam o mandarim no "making of".
(4) Dois outros títulos de produção recente baseiam-se em obras de “Jimmy”: «Sound of Colors» (2002), de Joe Ma Wai-ho e «The Floating Landscape» (2003), de Carol Lai Miu-suet, que passou por Veneza em 2003.
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