"Big" (Lau), culturista e stripper, originário do continente chinês, em situação ilegal em Hong Kong, é perseguido pela polícia, depois de uma rusga num clube nocturno onde actuava para uma plateia de mulheres esfuziantes. Outra operação policial persegue um suspeito de homicídio, cuja flexibilidade e capacidades no campo das artes marciais desafiam algumas leis da física. As duas equipas de agentes da lei e os dois suspeitos cruzam-se na noite.
"Big" [1] é um ex-monge budista, que se dedicou ao culturismo e aos strip-shows depois de abandonar a vida espiritual e que, na sequência de um choque emocional no passado, ganhou a capacidade de ver o karma. Quando conhece Lee Fung-yee (Cheung) começa por afastar o olhar, recusando-se a ver o que deverá ser o destino de que ela não pode fugir, mas acaba por tentar ajudá-la. Lee parece fadada a pagar pelas atrocidades cometidas por uma sua encarnação anterior — um soldado japonês.
昨日的因結成今日的果
As acções de ontem formam os resultados de hoje.
O poster promocional de «Running on Karma» diz algo como "não levamos nada desta vida senão as nossas acções". Este é o princípio do karma, que se pode traduzir muito simplesmente por "colhemos aquilo que semeamos" [2], com a diferença de que o que aqui está em causa é a Vida enquanto processo mais vasto e contínuo, i.e., cada vida é apenas uma fase em que cada um de nós evoluímos, etapa a etapa, na definição do nosso ser espiritual ou alma. Por muito que se prefira remeter estes conceitos a algo "exótico" ou "new age", os mesmos deverão ser perfeitamente entendidos por qualquer ocidental que não se deixe prender pela terminologia. Em certa medida, podemos adaptar estes princípios budistas para a moral cristã com que a nossa civilização europeia está mais familiarizada, com um pendor de inevitabilidade a substituir a ameaça do Inferno no final da vida, como razão para a submissão a um culto religioso e às suas normas morais.
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Um grupo de senhoras jovens deleita-se com a performance do hiper-musculado "Big", mas... |
O cinema de Hong Kong nunca foi célebre por produções refinadas e longos prazos de produção. A estrela deste filme da dupla To e Wai, aliás, costuma ser dado como exemplo de alguém que se desmultiplicava do cenário de um filme para outro, listando umas 14 entradas na sua filmografia num único ano, durante o período de vacas gordas do cinema local. Na origem de «Running on Karma», estava mais um filme comercial, destinado às massas, com base no factor “marketizável” de colocar Andy Lau num fato de borracha. Tal não iria acontecer pela primeira vez, dado que o actor já havia contracenado com Sammi Cheng Sau-man em «Love on a Diet» (2001), comédia romântica light, também dirigida por To e Wai, sobre um casal XXL, onde os actores tiveram de trabalhar dentro de fatos de látex que envolviam a totalidade dos seus corpos. Com o desenvolvimento do argumento, pela equipa liderada por Wai Ka-fai [3], o projecto foi-se tornando mais ambicioso e o texto mais complexo e intrincado. O resultado final é um filme que se insere no conjunto das obras mais pessoais dos realizadores, mas que conseguiu, ainda assim, conquistar as audiências de Hong Kong, vindo a revelar-se um sucesso nas bilheteiras.
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"Big" (Andy Lau) vê o karma de Fung-yee (Cecilia Cheung). Actos horríveis de uma vida anterior pairam em seu redor. |
«Running on Karma» engloba uma grande diversidade de registos. Se quiséssemos categorizá-lo, segmento a segmento, diríamos que o início se assemelha a um filme de investigação policial convencional, que depois se envereda pelo thriller de mistério e fantasia, com um pouco de artes marciais, com uma linguagem próxima do cinema de horror, prossegue-se com um momento mais puramente ao estilo da banda desenhada de super-heróis, para depois, a partir de metade do filme, se dedicar à exploração do tema central — a inevitabilidade do karma. Na primeira metade do filme, onde os vários registos colidem e se interpenetram, por referência à obra anterior de To, não andamos muito longe de «Dung Fong Saam Hap/Heroic Trio» (1993). Isto no que toca à encenação da acção e à componente visual, porque não há aqui nenhum do humor tolo que caracteriza, em parte, esse título incontornável na carreira do realizador.
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Por detrás do horror, o karma aproxima dois desconhecidos. "Big" ajuda Fung-yee a investigar um estranho caso. |
À medida que o destino parece resistir até à intervenção de um ex-monge visionário com capacidades sobre-humanas, o tom de «Running on Karma» torna-se mais e mais negro, até um final de uma coerência inabalável onde se recusa qualquer compromisso. Equilibrado, com uma lógica cristalina, inevitável como o karma. Não seria difícil finalizar o filme de modo mais ligeiro, deixando-nos, simultaneamente, uma lição de moral, mas Wai e To conseguem, em 90 e poucos minutos, manter o ritmo e a energia sempre no vermelho, e o final, por muito negro que seja, consegue ser também reconfortante.
A conclusão tem-se aferido confusa para algumas pessoas, devido a uma sequência que não pode ser tomada como “real” (é uma extrapolação, uma ilustração de um processo de reflexão da personagem), mas aquilo que nos é mostrado é claro e ilustra os ditames filosóficos que justificam a final propriamente dito.
A sensibilidade com que os cineastas tratam o criminoso Sun Ko [4] é exemplar, contrariando uma abordagem mais fácil e previsível do “vilão”. Afinal, ele é um monstro, um homem que se isolou da sociedade, um homicida procurado pelas autoridades, que inicialmente está na origem do abandono do mosteiro por parte de "Big". O choque que leva a personagem de Lau a despir as vestes de monge e que lhe traz as visões não é, no entanto, o crime que o leva a perseguir Sun Ko, mas a morte acidental de um pássaro, fruto de um momento de fúria incontrolável. Ele aceita a morte da criatura pacificamente (era o karma do pássaro), mas não o seu acto. As visões e o caminho por onde impelem a personagem — depois da "perdição" em actividades mundanas — são, no fundo, uma compensação, uma forma de equilibrar o seu próprio karma. É fácil ler no filme uma justificação para a passividade, pela aceitação do Destino. Mas ainda que o desenrolar dos acontecimentos possa reforçar esse conceito, há também a afirmação da possibilidade ou necessidade do Homem tentar inverter a direcção no caminho que parece fadado a percorrer. Tal é ilustrado no segmento final quando um “resultado” é posto à frente da personagem [ver nota 4, abaixo], mas a via que está traçada à sua frente e as escolhas morais que lhe competem podem alterar substancialmente o rumo dos acontecimentos.
[1] A personagem de Andy Lau é sempre referida na legendagem inglesa como “Big”, mesmo quando nos diálogos originais se usam outras expressões. “Big” corresponde ao “nome de palco” que é também o título chinês do filme: “Da Zhi Lao”. Os monges tratam-no por “Xiao Tudi” ou “Pequeno [jovem] Discípulo” (em contraste com o seu físico e o “grande/da” do nome artístico), mas o seu nome verdadeiro é também usado originalmente: Liaoyin 了因 (vd. nota 4). Naturalmente, não faz sentido que os monges e os seus conterrâneos o tratem por “Big”.
[2] As semelhanças entre uma expressão "ocidental" e o conceito budista existem mesmo a um nível de análise semântica. Decompondo o termo chinês para karma (yinguo 因果), ficamos com um segundo caracter (guo 果), que tem também o significado de "fruto".
[3] Os créditos listam quatro nomes: Wai Ka-fai, Yau Nai-hoi, Au Kin-yee e Yip Tin-shing.
[4] O nome de Sun Ko (孙果) é paralelo ao de “Big”. Ko (Guo em pinyin) forma karma com Yin do nome de Big (Liaoyin 了因). Esta relação causa-consequência entende-se melhor à luz do segmento final do filme.
Talvez seja querer ir longe demais na análise semântica dos nomes, mas já que as notas vão longas, adicionemos uma observação final: Liao 了 tem um sentido de acção consumada e Sun 孙 significa “neto”, aqui um símbolo de relações de continuidade e de causa-consequência.
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