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Capa do DVD Universe (HK).
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Hong Kong, futuro recente. Um eunuco com poderes sobrenaturais rapta bebés, escolhidos a dedo, de acordo com as datas de nascimento, para encontrar um novo imperador da China e, ao mesmo tempo, criar um exército de zombies obedientes. Entram as heroínas, às quais é preferível tentar não atribuir um nome em português, por risco de soar demasiado "silly". Tung (Mui), "Wonder Woman", é a verdadeira defensora dos fracos e oprimidos, no sentido mais classicamente "superheroesco". Ching (Yeoh), "Invisible Girl", apesar de passar a maioria do filme visível - se assim não fosse, não se justificaria pagar o salário à actriz, nem teria muita graça deixar de apreciar a graciosidade dos seus movimentos – aprendeu com o mesmo mestre de Tung, mas as duas perderam o contacto quando ainda crianças. Entretanto, esta viu-se seduzida pelo "lado negro", trabalhando para o senhor do mal, Chan. Por seu lado, Chat (Cheung), "Thief-Catcher", libertou-se já há algum tempo da influência de Chan, trabalhando agora como caçadora de cabeças, capturando criminosos a troco da recompensa.
As motivações das três "heroínas" são radicalmente diferentes, apesar dos pontos de contacto no passado, duas a duas, daí que se costumem apontar paralelos entre os personagens e os territórios de Taiwan, Hong Kong e a "mãe" China. A intenção do eunuco Chan, homem-demónio, de encontrar o novo imperador da China (unida), não pode deixar de ser analisada à luz da proximidade com a transição da administração de Hong Kong. Enquanto alguns filmes de época apresentam uma certa melancolia pela pátria unida do passado, no âmbito do que se chamou de "patriotismo abstracto", o personagem de Chan não admite qualquer sombra de cinzento: ele é mau, mau, mau. Transmite-se por um lado que o passado não pode voltar, mas, por outro, que a coexistência é possível.
«The Heroic Trio» é um dos mais marcantes filmes de acção feitos em Hong Kong na década passada e um clássico moderno. A acção é intensa, as artes marciais têm o aprumo esperado de um trabalho de Ching Siu-Tung («A Chinese Ghost Story», «Swordsman II») e o recurso a "wireworks", para as cenas mais espectaculares, com os personagens a voar por toda a parte ou a realizar aparatosas acrobaciais, é convincente. Existem ingredientes de comédia tresloucada, como quando Cheung atira dinamite para um bidão onde se senta, para o usar como propulsor (!) e invadir um edifício dominado por criminosos, e elementos dramáticos, centrados no personagem de Yeoh e na sua relação com o cientista que cria o manto da invisibilidade, bem como no lar de Mui, que tem de gerir a sua carreira de super-heroína longe dos olhares do marido. Há alguma violência gráfica, que deverá ser tolerada facilmente pelo espectador mais sensível, dado inserir-se numa atmosfera próxima da BD, que cruza elementos de histórias de super-heróis, com ambientes futuristas, manga e o formato clássico de artes marciais. As cenas mais fortes não são as mais sangrentas, prendem-se antes com o destino de algumas crianças, num par de cenas que provavelmente constituem os cortes impostos pelo BBFC à edição do Reino Unido.
Com um trio de actrizes como este, e com a direcção de Ching e To seria difícil fazer um mau filme. A presença das três estrelas impõe uma complexidade mínima ao guião, já que cada uma tem os seus problemas e objectivos e surgem a agir isoladamente umas das outras.
Por muito interessante que seja discutir a componente mais séria, «The Heroic Trio» funciona pelo prisma do puro divertimento, não exigindo senão que nos sentemos a assistir ao desenrolar da acção. Ching Siu-Tung, como é seu apanágio, mistura um pouco de artes marciais tradicionais com muito "wire-fu", isto é o recurso a acrobacias auxiliadas por fios invisíveis (bom, na maior parte do tempo). Tal é perfeitamente coerente, numa fantasia como a que aqui se quis criar, e seria inconcebível uma aproximação mais realista, no mundo destas três super-heroínas.
«The Heroic Trio» apresenta com igual sucesso slapstick, acção e melodrama. Para uma audiência ocidental isto nem sempre é digerível, mas aqui os elementos dos diversos géneros integram-se perfeitamente – mais do que em «Saviour of the Soul», por exemplo. Uma das razões para tal funcionar é a capacidade das actrizes para a representação "convencional", bem como para a realização das cenas de acção mais exigentes. Para Yeoh a dificuldade é menor, já que não costuma usar duplos (o que já motivou que tivesse em risco de vida um par de vezes, tal como Jackie Chan), foi bailarina e passou por treino intenso em artes marciais. Quanto a Mui e Cheung, bom, a partir de certo ponto, vemos as maravilhas que a montagem pode fazer. Cheung, recorde-se, menciona este ponto em «Irma Vep» (1996), onde se interpreta a "si mesma". O filme de Olivier Assayas usa algumas imagens de «The Heroic Trio», num contexto algo irónico; o realizador (Jean-Pierre Léaud) quis contratá-la pela fisicalidade apresentada em cenas onde se usaram duplos.
Mui Yim-Fong costuma ser apelidada de "Madonna da Ásia", pela carreira musical de grande sucesso e pela extravagância que apresenta em espectáculos ao vivo. Podemos aqui ouvir uma das suas baladas, a enaltecer um momento particularmente triste. Sem dúvida que alguns acharão piroso, em particular se visionarem uma versão com legendagem das letras das canções, mas outros, onde me incluo, deliciam-se com estes momentos com o mesmo prazer com que assistem às três actrizes a serem erguidas no ar por poderes demoníacos, ou quando a determinada altura se decide introduzir uma piscadela de olho a «Terminator 2».
Ver e gostar de «The Heroic Trio» não prepara ninguém para a sequela. «Executioners» é um filme com o mesmo elenco e equipa, mas num tom completamente diferente, pelo que é frequentemente enxovalhado. É um filme triste e melancólico, num cenário pós-apocalíptico, onde parece não haver lugar para a felicidade. Ao contrário de «Swordsman 2», perante o original, não é conveniente ver «Executioners» antes de «The Heroic Trio». Nem é recomendável ler sinopses demasiado pormenorizadas.
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