Okajima Taeko (Imai), de 27 anos, trabalha num escritório em Tóquio. A sua família, incluindo os avós, é natural da metrópole e, em criança, ela sentia inveja das colegas que, nas férias do Verão, saíam da cidade e iam para o campo. Já em adulta, decidiu adoptar uma "terra natal", através da família do cunhado, proprietária de terrenos em Yamagata, a cerca de 290km a norte da capital. Taeko passa uns dias na aldeia, pela segunda vez, para trabalhar na colheita de flores usadas como corantes em cosméticos. As memórias dos seus 10 anos perseguem-na.
Takahata Isao trabalha com Miyazaki Hayao desde «Horus, Princípe do Sol» (1968) — a sua primeira realização —, e começou a produzir os filmes deste desde «Kaze no Tani no Nausicaa» [«Nausicaa of the Valley of the Wind»] (1984), obra que levou o grupo Tokuma Shoten a criar o Studio Ghibli, no ano seguinte. Takahata é também o realizador de várias séries animadas, pré-Ghibli, que passaram pela TV portuguesa, recordadas hoje por muitos que as viram na infância ou pré-adolescência, nomeadamente "Heidi/Arapusu no Shoujo Haiji" (1974) e "Marco/Haha wo Tazunete Sanzen-ri" (1976). Assinou também dois episódios de "Conan, o Rapaz do Futuro/Mirai Shonen Konan" (os restantes foram realizados por Miyazaki).
«Omohide Poro Poro», que viria a ser o número 1 das bilheteiras japonesas em 1991, baseia-se numa manga da autoria de Okamoto Hotaru, com desenhos de Tone Yuko. A história original ilustra a vida de Taeko enquanto criança; todo o segmento no presente (o início dos anos 80, no filme) é uma extrapolação narrativa de Takahata, que a considerou necessária para tornar o material mais interessante e mais consistente enquanto obra cinematográfica, uma vez que a manga era constituída por uma sequência de episódios, requerendo-se o estabelecimento de um fio de continuidade. O processo permitiu que «Only Yesterday» se tornasse um filme mais aprazível para as audiências adultas e não apenas uma obra sobre os dilemas do dia-a-dia de uma criança. O resultado é de uma maturidade invulgar no cinema de animação, mas que não surpreenderá quem estiver familiarizado com a obra Ghibli.
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Tóquio, 1982. Taeko pede uns dias de férias do escritório para ir trabalhar para o campo. |
«Majo no Takkyubin» [«Kiki's Delivery Service»] (1989), de Miyazaki, e «Mimi wo Sumaseba» [«Whisper of the Heart»] (1995) (1), de Kondo Yoshifumi, têm também como personagens centrais raparigas muito jovens (13 e 14 anos, respectivamente) e são exemplo paradigmáticos de como é possível tratar de forma madura este material, para mais num meio como a animação que, para algumas pessoas, mantém o estigma de ser destinado, por omissão, ao público infantil. O mercado, diríamos, estaria mais receptivo a comédias light sobre pré-adolescentes, que seriam apenas apreciadas por uma faixa do público situada em redor desse escalão etário. No entanto, os cineastas insistem que é possível fazer filmes para uma audiência alargada; obras apreciadas, pelo seu valor artístico intrínseco, por um público adulto, chegando, inclusive, a merecer epítetos de obras-primas, ao mesmo tempo que se mantém substancialmente "familiares", podendo ser vistas e apreciadas por um vasto segmento infanto-juvenil. Estas obras animadas demonstram como se podem abordar temas sérios e relevantes, sem descurar valores artísticos ou o entretenimento e sem a necessidade de separar duas "vertentes", com uma história ligeira e despretensiosa, 80 minutos de sketches humorísticos, para depois rematar com lições de moral, caídas do céu, nos últimos 10 minutos de filme.
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Tóquio, 1966. A vida escolar e familiar de uma menina de 10 anos. |
A personagem de Taeko ou a sua extrapolação por Takahata, a Taeko adulta, está, tal como Kiki e Shimizu, nos filmes referidos no parágrafo anterior, numa encruzilhada da sua vida. As meninas dos outros filmes, de certa forma "demasiado adultas" aos nossos olhos, têm um futuro pela frente e sentem-se pressionadas, pela família e pela sociedade, a tomar decisões, a definirem-se. Taeko, com 27 anos, sente outra espécie de pressão; aos olhos da família, já devia estar casada e a educar criancinhas. No entanto, ela não se mostra preocupada com a necessidade de constituir uma família tradicional, até porque, como a própria diz, nos dias que correm — há 20 e tal anos atrás, note-se — é normal uma mulher da sua idade permanecer solteira.
Aquilo que inunda a mente de Taeko e que começa por invocar as memórias dos seus 10 anos é o desejo profundo pelo contacto com a vida no campo. O cinema de Miyazaki e Takahata tem fortes preocupações ecológicas — ainda que os realizadores o rejeitem, enquanto rótulo —, algo vincado em filmes como «Nausicaa», do primeiro, ou «Heisei Tanuki Gassen Pompoko» (1994), do segundo. O que os realizadores professam, analisando o seu conjunto de obra, será mais um modo de vida natural e um crescimento industrial sustentado, do que propriamente o abraçar da “ecologia”, que soa mais a uma opção política do a um verdadeiro sentir. Nessas obras pincela-se uma imagem do campo como um reduto, local de fuga, longe da vida atribulada das grandes cidades, que afastam o homem da natureza e de um estilo de vida saudável. Taeko sente um grande vazio pelo facto de não ter uma terra natal onde pudesse passar algumas semanas de férias durante o Verão. A necessidade de preencher esse vazio é, no contexto da obra de Takahata e Miyazaki, o chamado da natureza.
A vida de Taeko no 5º ano é ilustrada através de sequência soltas, ligadas por alguma continuidade, sob um fundo de época pintado com realismo e riqueza de pormenores, no modo como se mostra a vida em família, a cultura da época, música pop ou programas populares na televisão. Mesmo tratando-se de uma época e cultura estranhas ao espectador-leitor é inevitável não recordar, por essa via, também um pouco do nosso próprio passado, enquanto alunos da escola primária ou do "ciclo preparatório" (ainda existe algo com esse nome?), bem como o relacionamento, por vezes conturbado, com a família e os colegas, as notas, as birras motivadas pelo egocentrismo próprio da idade, etc. Takahata domina com mestria os pontos de vista da personagem. Não é a perspectiva de um adulto que transparece na história e nos diálogos que circundam a pequena Taeko dos anos 60; connosco é partilhada a perspectiva pura de uma criança. Pegue-se num momento que é certamente um dos pontos altos do filme, nos segmentos de flashback, quando a menina, depois de quebrar barreiras de relacionamento, sobe no céu, nada nas nuvens.
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A persona passada de Taeko torna-se cada vez mais presente, preparando-se um clímax que, invulgarmente, se desenrola ao longo dos créditos. Uma opção curiosa, mas não única na cinematografia Ghibli, ainda que seja mais frequente a ilustração de "epílogos" e não a efectiva continuidade de uma situação que só se consuma nesses instantes em que, supostamente, o público apressado já vai com o talão do parking na mão, a caminho da máquina de pagamento. Nestes momentos finais, há contacto, de facto, entre passado e futuro, mas não se entra no campo da fantasia: há antes uma materialização simbólica da resolução de desejos que a Taeko criança viu protelados por 17 anos e que quer agora partilhar com o seu "Eu" adulto.
(1) Taeko com dez anos é interpretada por Honna Yuko, a mesma artista de voz que seria Shizuku, a protagonista de «Whisper of the Heart», quatro anos mais tarde. |