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Depois de um tempo em que a Humanidade usufruiu de tecnologia inimaginável, rebentaram guerras entre vários povos, que não hesitaram em recorrer ao poder destrutivo dos Deuses Guerreiros, gigantescas máquinas de guerra com vida própria, que viriam a ser responsáveis pela devastação do planeta, durante os Sete Dias de Fogo. Mil anos depois, a Terra está coberta, em quase toda a sua extensão, por fumos tóxicos, e a sobrevivência das espécies ameaçada. As únicas criaturas capazes de viver no meio do “mar” venenoso são insectos gigantescos.
A princesa Nausicaä (Shimamoto), filha de Jhil (Tsujimura), rei do Vale do Ventos, cruza os céus na sua máquina voadora em busca de esperança. A pequena comunidade tem sido protegida graças aos fortes ventos que circundam o território e que os têm escudado da atmosfera letal, responsável pela desertificação das áreas em redor. Outros povos subsistem em outras comunidades isoladas. A luta pela sobrevivência não é pacífica e irá colocar dois povos em oposição: os Tolmakianos, liderados por Kushana (Sakakibara), que acredita que a salvação passa pela recuperação de um Deus-Guerreiro, e os Peijiteianos, que se lhes opõem e desejam destruir a máquina de morte. O povo do Vale do Vento é apanhado no fogo cruzado. Asbel (Matsuda), princípe de Peijitei, junta-se a Nausicaä, na procura de uma solução para o restabelecimento do meio ambiente, que não passe por mais guerra e destruição.
Quando Miyazaki iniciou a manga “Kaze no Tani no Nausicaä”, em 1982, concebeu-a como uma obra que não seria adaptável para o cinema, explorando assim caminhos muito específicos desse meio. Mas a popularidade crescente da banda desenhada acabaria por conduzir a um projecto cinematográfico e o autor viu-se confrontado com os problemas decorrentes da criação de uma história com princípio meio e fim que não fosse incoerente com a fonte original, que continuava a ser desenvolvida e só viria a terminar em 1994 – 12 anos depois de iniciada e uma década depois do filme estrear.
«Kaze no Tani no Nausicaä» é considerado por muitos o melhor filme de Miyazaki e, quase 20 anos depois da sua produção, os seus temas e a particular sensibilidade que lhe é conferida, mantém-no actual. Tem, aliás, alguns pontos de contacto com «Mononoke Hime» (1997). Ambos os filmes assentam nas consequências de uma visão restrita da humanidade, preocupada apenas com benefícios imediatos, descurando o futuro, o Planeta, permitindo que o meio ambiente seja destruído pela ganância, ambição e por conflitos bélicos. As personagens também têm grandes paralelos, com inversão de géneros no par de protagonistas: Nausicaä está para Ashitaka, como Asbel está para San. Os últimos são introduzidos na trama, amargurados e a reagir impulsiva e violentamente contra agressões ao seu reino; os primeiros detêm o dom da visão distante que permite enquadrar toda a floresta e não só algumas árvores, valoram a contenção e não excluem o sacrifício pessoal como modo de tentar ampliar o campo de visão e de entendimento daqueles que os circundam. Poderíamos continuar, encontrando correspondências com outras personagens, mas ficamo-nos pelos “militaristas”, Kushana e Kurotawa (Iemasa), de certo modo revistos em Lady Eboshi e no seu lugar-tenente, Gonza. A ligação Eboshi-Kushana poderia ser ainda mais explicitada, mas cairíamos no risco de mencionar pormenores desnecessários sobre o desenvolvimento narrativo de «Mononoke Hime».
Não é difícil entender porque é que «Nausicaä» continua a ser considerado o melhor filme de Miyazaki, por muitos dos que seguem o seu trabalho: desde logo, é, ao lado de «Mononoke Hime», um dos filmes mais complexos e maduros do realizador, no sentido de ser adequado sobretudo para audiências de adolescentes e adultos. Os temas introduzidos no filme de 84 estão presentes em obras posteriores, mas quem segue a filmografia de Miyazaki por ordem cronológica já lhes foi exposto, de modo que o título mais antigo retém maior impacto. Em termos puramente técnicos, é certo que o filme não esconde que não foi feito ontem, mas a arte animada continua e continuará a deslumbrar, reflectindo o trabalho moroso e cuidado da concepção e da animação de cada cena, já que Miyazaki e a sua equipa sempre almejaram elevar os padrões de qualidade da animação.
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Miyazaki Hayao sempre negou intenções de transmitir mensagens e lições de moral, talvez para não dar azo a discussões demasiado profundas e tendencialmente redundantes, por parte dos que gostam sempre de dissecar todos os pormenores de um filme. A atitude “passiva” perante problemas ambientais por parte dos protagonistas foi incompreendida por alguns analistas (a palavra mais importante é realmente “compreensão”; não “acção” ou “omissão”) e outros sentiram-se incomodados com o Messianismo aqui latente. O realizador descarta igualmente qualquer intuito de passar mensagens religiosas. Ainda que seja óbvio que se podem encontrar esses elementos (a profecia, a figura do salvador, etc.), também é verdade que tais mecanismos não são propriamente originais, em obras posteriores ou anteriores, e que podem servir tão só para fechar um arco narrativo, sem que tenhamos automaticamente de pensar em Cristo ou outro mártir qualquer (os quais não se tornaram detentores do copyright das atitudes de sacrifício de um indivíduo em prol da sua comunidade.)
O que esteve na génese de “Nausicaä” foi a preocupação do seu autor com os alarmantes aumentos da poluição do meio ambiente e, em paralelo, o fascínio com as criaturas que conseguiam sobreviver rodeadas de detritos químicos criados pelo Homem, mas o impacto desta obra, cujo tom épico é reforçado pelas suas duas horas de duração (invulgar para um filme animado ocidental) [1], permite ainda gerar alguma reflexão sobre outras temáticas, como a cegueira que conduz os povos para a guerra – outro tema que, infelizmente, se vai mantendo actual – ou os resultados de uma catástrofe nuclear, pois o fantasma de Hiroshima está também presente [2].
Comparando «Nausicaä» com os títulos mais recentes de Miyazaki, nomeadamente com o que lhe é mais similar, estrutural e tematicamente – «Mononoke Hime» – constatamos que se esse filme é de algum modo superado, tal sucede apenas formalmente: o desenho, a animação, as técnicas. «Nausicaä of the Valley of the Winds» permanece uma obra-prima e um filme incontornável, que merece uma projecção num grande ecrã. Com o sucesso de «A Viagem de Chihiro» (2001), «Tenku no Shiro Laputa» (1986) foi recentemente estreado em salas francesas. Esperemos que outros títulos de animação com a qualidade destes se lhe sucedam e que não seja apenas por lá.
[1] Em 1985 a New World Pictures distribuiu nos EUA uma versão retalhada, com menos 26 minutos, apelidada de «Warriors of the Wind». Os direitos dessa versão caducaram e actualmente nem a Disney nem outra distribuidora que detenha direitos de distribuição de filmes do Studio Ghibli tem autorização para efectuar alterações às obras originais.
[2] Não é por coincidência que o filme foi apresentado no festival No More Hiroshimas, em Londres, em 1995.
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