Ju-on: a maldição de alguém que morre vítima de raiva violenta. Ganha força e produz efeitos nos locais onde essa pessoa viveu. Aqueles com quem se cruza morrem e uma nova maldição nasce [texto de introdução do filme].
Rika (Okina), uma funcionária da segurança social, desloca-se em serviço a uma casa onde se encontra uma mulher idosa, sozinha, aparentemente abandonada, no meio de grande desarrumação e falta de higiene. Enquanto limpa e arruma a casa, Rika segue um ruído e encontra, no andar de cima, uma criança de 6 anos (Ozeki), que diz chamar-se Toshio, antes de desaparecer misteriosamente. Outras pessoas que passaram pela casa, ou se relacionaram com quem por lá passou, são surpreendidas e perseguidas pela presença de figuras sobrenaturais.
«Ju-on» é um dos títulos de horror japonês mais populares deste último par de anos, fazendo as delícias dos fãs do género que o puderam ver em festivais de cinema, através de edições DVD em vários territórios asiáticos e nas salas de alguns países mais próximos, com mercados mais dinâmicos, como a Espanha ou o Reino Unido. Pela altura em se escrevem estas linhas, o original havia estreado há pouco no segundo território e a sequela, «Ju-on 2», estava prestes a estrear no primeiro.
A maior popularidade e eficácia deste título de horror nipónico, por comparação com outros menos divulgados, mas igualmente merecedores de alguma atenção, como «Uzumaki» (2000), «Kakashi» ou «Inugami» (2001), explica-se pela utilização sustentada de ingredientes formais característicos, que conhecemos do mais célebre dos filmes de produção recente: o sobre-citado «Ring» (1998), de Nakata Hideo. Está cá tudo: as figuras que se vislumbram gradualmente, que aparecem e desaparecem, que passam à nossa frente, mas fora do campo de visão das vítimas; corpos femininos indistintos, que se arrastam e se contorcem de formas grotescas, acompanhados por sons de gelar a espinha; utilização minimal de efeitos de pós-produção, design sonoro refinado para manter os nervos em franja, pontilhado por ruído persistente e baixos trepidantes. O horror sustenta-se, portanto, no que se vê ou no que é sugerido e não em actos de violência gráfica cometidos contra as vítimas. A atmosfera opressiva mantém-se durante toda a duração do filme e, nesse capítulo, «Ju-on» não decepcionará quem souber o que esperar.
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Na casa dos Tokunaga, aparentemente abandonada, Rika (Okina Megumi) encontra Sachie (Isomura Chikako) e algo mais... |
É a nível narrativo que o filme de Shimizu Takashi deixa algo a desejar. A estrutura base é convencional, abrindo com um flashback a preto e branco e deixando para o final a clarificação do que está na origem das acções dos fantasmas atormentados. Ou melhor, o filme respeita a estrutura clássica, mas não deixa nada de relevante em suspenso sobre as causas do horror. O que se vai tornando mais claro são as relações entre as personagens, difusas inicialmente devido a segmentação da história, mas não há nada que dê força dramática à acção. Ainda que o segmento final tente fechar o círculo narrativo e arrumar a história, recuperando uma personagem, até aí assistimos a um conjunto de manifestações dos fantasmas, quase ao jeito de "sketches de horror", separados inclusive por títulos com nomes de vítimas.
A estruturação narrativa prejudica o ritmo e a dosagem do horror, por impedir que sigamos as personagens por tempo suficiente para nos importarmos com o seu destino. Tal gera também uma certa repetição, com o perigo de permitir que o horror se torne banal e cíclico. Mais do que isso, ficamos com "sinopses" de várias tragédias familiares — pelo menos três mais relevantes —, sem desenvolvimento que lhes dê dimensão, e tudo caminha para uma resolução que, pela falta de uma linha narrativa central forte, falha em atingir um pico emocional. Esta estrutura narrativa seria mais eficiente se os vários "capítulos" fossem fornecendo dados até culminar numa revelação final mais ou menos surpreendente, mas a verdade é que o espectador fica a saber, logo nos primeiros momentos do filme, o essencial sobre aquilo que provoca a acção dos fantasmas, sem que se guardem revelações para o fim do filme.
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Katsuya (Tsuda Kanji) encontra a mulher, Kazumi (Matsuda Shuri), em estado de choque. Hitomi (Ito Misaki) vai ao WC. |
Ao pesarmos os trunfos e os defeitos de «Ju-on», somos impelidos para o considerar um triunfo da forma sobre o conteúdo, um catálogo ilustrando técnicas do cinema de género, um verdadeiro portfolio do trabalho do realizador. Mas uma obra cinematográfica não pode ser reduzida exclusivamente ao texto ou à componente formal, estética e técnica, nem seria justo avaliar um filme pelo que não foi, mas poderia ter sido, ou por não ser outro «Ring» ou «A Tale of Two Sisters» (2003) — exemplos aparte de uma perfeita conjunção da técnica com o domínio de uma narrativa irrepreensível e personagens bem delineadas. «Ju-on» não falha na construção de uma atmosfera, na eficiente criação de quadros inquietantes e na gestão dos timings, que passam da sugestão à manifestação do mal. Tudo reforçado, insiste-se, por uma excelente utilização do som. São estes aspectos combinados que conseguem transmitir momentos de puro terror, com imagens que, isoladamente, não são muito elaboradas, como a entrada lenta em enquadramento de uma figura fantasmagórica numa casa de banho pública.
Será ainda de anotar a repetição de ingredientes de título para título, sem que fique uma sensação vincada de cópia ou decalque. Reciclagem ou um beber no mesmo imaginário acaba por não ser muito importante quando se conseguem usar elementos similares a outros já vistos, diluídos num contexto diverso, sem que o espectador automaticamente os situe noutro filme. De «Ring» — além do conceito genérico de “vírus” —, podemos identificar a utilização do televisor (secundária, aqui), de «Dark Water» (2002), as imagens em câmaras de vigilância. Por outro lado, na sequela de «The Eye» (2004), regista-se uma repescagem de ingredientes de «Ju-on», como a cena em que duas amigas se encontram no restaurante. Em todo o caso, há conceitos que dificilmente se poderão associar a um ou outro filme, como a representação dos rostos alterados das vítimas numa fotografia ou a utilização de casas de banho como cenário para um quadro de horror («The Eye 2», «Into the Mirror», etc.), dada a sua relativa banalização. Os elevadores são outro local de eleição, pelo potencial claustrofóbico: o espaço é reduzido e os minutos ou segundos durante os quais sabemos que não há saída possível podem tornar-se angustiantes (o melhor exemplo estará no original «The Eye»). Há ainda a característica assombração no momento em que uma jovem toma banho, escolha preferencial em certo género de cinema menos sério, mas que também não fica mal nestes títulos, por razões, digamos, estéticas. Uma insistência muito bem acertada em «Ju-on» é a recolha ao leito, espécie de último reduto, onde as vítimas pensam que estão protegidas, cobertas debaixo dos lençóis (é apenas um pesadelo!, é apenas um pesadelo!), pois pode ter bons efeitos no espectador que veja o filme à noite — bem tarde, como convém — antes de se preparar para uma noite bem repousada.
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