Em 1991, Lee Geum-ja (Lee), uma estudante de 19 anos, é condenada pelo rapto e homicídio de uma criança de cinco anos, num caso que emocionou a nação, com direito a cobertura intensa pelos media. É libertada da prisão depois de cumprir uma pena de 13 anos. Durante esse período, abraça a religião e as suas acções em prol das outras prisioneiras, sacrificando o seu tempo e algo mais, com uma dedicação inabalável, valhem-lhe o epíteto de "Simpática Ms. Geumja". Em 2004, sai da prisão com um plano para executar e um objectivo claro e bem definido: a vingança.
«Sympathy for Lady Vengeance» assinala o encerrar da chamada “Trilogia da Vingança” de Park Chan-uk, seguindo-se a «Oldboy» (2003) e a «Sympathy for Mr. Vengeance» (2002) (1). Sob um mesmo mote, Park criou um trio de thrillers apelativos, com uma fulgurante componente estética e um notável equilíbrio entre o design visual e a utilização do som e da música, sugerindo um perfeito controle do realizador sobre toda a extensão dos processos artísticos aplicados a cada componente da obra cinematográfica.
Se «Mr. Vengeance» interliga um trio de personagens cujos actos e decisões parecem ser controlados por uma entidade superior; uma vontade cujo plano eles cumprem sem o entenderem, «Oldboy» materializa tal vontade no corpo de um yuppie, um rico homem de negócios, cuja vida parece ser justificada pela concretização de um plano rigoroso no seio do qual Dae-su (Choi Min-sik) constitui a matéria-prima.
A complexa rede de infortúnios do primeiro filme e os requintes de sadismo na prossecução do objectivo por parte do mentor da vingança em «Oldboy», geram violência no limiar da suportabilidade — as personagens cegas pelo desejo de retribuição cometem actos de vincada crueldade.
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Ao sair da prisão, Lee Geum-ja (Lee Yeong-ae) é recebida por um coro de pais natais bebedores de café. |
Com a chegada da «Lady Vengeance», o protagonista parece deter o controle pleno da situação. A retribuição não pode deixar de redundar na violência e no derrame de sangue, mas na mente do executor não está a aplicação cega de um castigo definitivo, tanto quanto a realização de justiça, paralela a uma necessidade de redenção, devido ao extenso rol de pecados cometidos ao longo do caminho.
Há elementos narrativos e conceitos que se repetem ao longo dos três filmes. Um tema presente em toda a trilogia é o quebrar violento de laços familiares; crianças afastadas dos pais à força. Há sempre um rapto envolvido, seja das crianças, seja dos pais (no caso de «Oldboy»), e um único progenitor, registando-se também similares precauções nas mentes dos raptores de «Mr. Vengeance» e «Lady Vengeance».
Park não quis deixar de convidar os protagonistas dos títulos anteriores para cameos: Song Kang-ho e Shin Ha-kyun («Sympathy for Mr. Vengeance», mas também «J.S.A.»), Kang Hye-jeong e Yu Ji-tae («Oldboy»). Os secundários incluem também rostos mais ou menos familiares dos filmes precedentes, como Oh Dal-su (o dono da pastelaria), Kim Byeong-ok (o pregador) e Lee Seung-sin (Park Hi-jeong, uma ex-presidiária).
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Recriação do crime perante a imprensa. Na prisão, Geum-ja invoca o anjo que descobriu em si. |
A complexidade da personagem de Geum-ja torna difícil determinar onde termina a influência da religião na sua psique e onde começa o seu controle sobre esse e outros elementos que a circundam. O que parece claro é que no dia que sai da prisão, pelo modo como cumprimenta o seu pastor, a religião é a última das suas preocupações.
É seguro dizer que o seu objectivo se converte na sua religião. Tanto o cristianismo como o budismo são reduzidos a fins funcionais e práticos. Vê-la-emos a acender velas junto a um peculiar altar, constituído por dois cartazes: o que anuncia o desaparecimento da criança e o retrato-robot do suspeito do rapto. As suas rezas, os seus sonhos, não incluem Jesus ou Buda, mas um homem a ser abatido (literalmente) como um cão.
O domínio da linguagem cinematográfica por parte de Park Chan-uk atinge em «Sympathy for Lady Vengeance» um nível notável; o refinado design de produção e a cuidada composição estão ao serviço dos temas e da simbologia que trespassa todo o filme, assente, sobretudo, na utilização das cores branco e vermelho, algo que se inicia logo com os créditos iniciais. O branco representa a pureza e a redenção; o vermelho o pecado, o crime e a violência (mas também a sedução).
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Uma oração por uma vingança. |
A função das cores pode parecer demasiado óbvia, mas a sua utilização no seio de uma apurada estética afiança-se natural e fluida. Essa representação surge no vestuário, na maquilhagem, em comida (tofu e doçaria) ou até através dos elementos atmosféricos, i.e., a neve. A corrupção da pureza manifesta-se visivelmente na imagem de sangue na neve, mas mesmo um bolo de morango demonstra que Park está atento aos pormenores. E, logo no início do filme, Geum-ja é recebida, ao sair da prisão, por um coro de pais natais, com o característico traje vermelho e branco.
Park emprega, de forma exímia, mecanismos de quebra da continuidade cronológica, construindo uma sequência introdutória forte e dinâmica, onde se mostra um conjunto de eventos que se compreenderão apenas nos minutos seguintes. O poder da imagem (gasta, manipulada), a câmara, que se diria possuída, e a utilização da música seduzem e prendem a nossa atenção para as próximas duas horas. Mais perto do final, há outro momento em que os flashforwards são empregues de forma habilidosa, reforçando o drama e a confusão que assola a mente das personagens.
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Árvores como símbolos. A caminho da escola. |
O agente vingador do terceiro filme já não se deixa dominar pelo desespero ou pela urgência no cumprimento do acto. Toma o seu tempo, pondera. A motivação já não é a vingança pura, irracional, mas o peso de uma culpa que acabará ainda por aumentar exponencialmente — como que uma afirmação de que as personagens não estão meramente ao serviço do argumento; surgem imprevistos e a necessidade de adaptação a novos cenários.
Há também um retorcido e violento altruísmo, por parte de alguém que lamenta os seus pecados e o facto de ter usado outros para os seus fins. Um dos maiores contrastes do filme é a abnegação ser mais “chocante” do que “comovente” — ou, por outro prisma, se acaba por ser também comovente é por força do choque.
Park Chan-uk não deixa de manter humor e espírito ao longo da narrativa, como a referência, na televisão, ao oportunista que se prepara para adaptar a história de Geum-ja ao cinema, ou uma consulta a um dicionário de inglês-coreano onde a primeira palavra exposta é “ellipsis”.
O DVD de «Sympathy for Lady Vengeance» permite visionar o filme numa versão alternativa em que, a partir de determinado momento da narrativa, a cor começa a desaparecer até chegar ao preto e branco. A diferença entre as duas versões é unicamente essa variação cromática, que constitui um modesto "efeito" visual, por comparação com a sofisticação estética que trespassa o filme. A opção reforça a utilização da cor como elemento simbólico, mas confesso que, ao rever o filme na versão de cinema, não senti falta do preto e branco.
(1) A relação nos títulos em inglês não coincide nos originais ("A Vingança é Minha" e "A Simpática Ms. Geum-ja").
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