Cha Yeong-gun (Im), uma jovem mentalmente perturbada, é internada numa instituição psiquiátrica depois de uma aparente tentativa de suicídio. Yeong-gun recusa alimentos porque acredita ser uma ciborgue, capaz de se tornar uma máquina de morte (se, ao menos, conseguir recarregar as baterias) e de conversar com luzes fluorescentes e máquinas de café. Quando o tratamento psiquiátrico não produz resultados e o seu organismo rejeita a alimentação forçada, Park Il-sun (Jeong), um paciente que se afirma capaz de roubar traços de personalidade alheios, tenta convencê-la a comer, utilizando argumentos compatíveis com o seu estado metal.
Depois de terminada a sua “Trilogia da Vingança” («Mr. Vengeance», «Oldboy», «Lady Vengeance»), Park Chan-uk dedicou-se a um projecto de menor dimensão e agora adequado para quase todos os públicos (M/12 na Coreia). O escalão etário não é garante de bons resultados de bilheteira e «I'm a Cyborg, But That's O.K.» seria retirado da maioria dos cerca de 280 ecrãs onde estava a ser exibido, duas semanas depois da estreia, devido à fraca resposta por parte do público e à necessidade de disponibilizar salas para outras estreias fortes no período de Natal, nomeadamente «The Restless» («Jungcheon»), do mesmo distribuidor.
A performance decepcionante do filme não seria esperada tendo em conta os nomes fortes envolvidos. Park tornou-se um realizador “popular”, com os êxitos de «Oldboy» (2003) e «Sympathy for Lady Vengeance» («Chinjeolhan Geumjassi», 2005), ambos com mais de três milhões de bilhetes vendidos, os quais lhe trouxeram também vários prémios internacionais, maxime o Grand Prix de Cannes para o primeiro. O elenco é encabeçado por duas jovens estrelas: Im Su-jeong 1, uma das mais populares jovens actrizes coreanas, e Jeong Ji-hun, cantor pop de sucesso, que grava sob o artístico Bi (Rain, na forma inglesa).
As razões para o sucesso ou insucesso de um filme nunca são fáceis de isolar, mas Park foi bem sucedido com thrillers para um público adulto, onde existe um risco económico superior, devido à audiência mais delimitada, e as coisas não correram bem com um filme classificado para maiores de 12 anos, com rostos jovens e populares e que se anunciava uma “comédia romântica”. No entanto, há muito no filme que pode desiludir tanto os indefectíveis do realizador, à procura das emoções fortes que caracterizaram as obras anteriores, como o público mainstream, em busca de mero entretenimento.
O filme é light até certo ponto, sendo constituído por uma galeria de personagens fortemente distintas. A acção passa-se num hospital psiquiátrico e cada paciente tem uma doença, ou mania, particularizada. Em algumas ocasiões, estas especificidades definem as personagens como uma espécie de “super-heróis” falhados. Yeong-gun é uma ciborgue, e Il-sun, além de roubar características de personalidade, insinua-se “invisível” até junto das suas vítimas. Outras personagens incluem uma mulher que vê o mundo através de um espelho e sonha com os Alpes suíços e um homem demasiado bem educado e que se julga culpado de tudo o que corre mal à sua volta (interpretado pelo conhecido actor secundário Oh Dal-su).
«I'm a Cyborg...» tem um arranque forte no plano estético, com imagens que não temos dificuldade em associar à obra de Park Chan-uk. A sequência dos créditos desenrola-se sobre o cenário de uma linha de montagem de rádios, onde os uniformes vermelhos das operárias contrastam com o fundo esverdeado. A personagem central é aqui introduzida e a sequência termina de forma violenta, com o acto que precede o internamento. Os créditos não se sobrepõem à imagem; integram-se no cenário e nos acessórios. O nome do realizador marca o final da introdução e deixa-nos no cenário do hospício, onde decorrerá toda a acção. “Park Chan-uk” é retirado da etiqueta que identifica os doentes internados num quarto, e substituído por “Cha Yeong-gun”.
O que poderá distinguir este de outros filmes com um pano de fundo similar — e talvez o que possa ter desagradado a boa parte da audiência — é que acompanhamos sempre as personagens no seu estado de doença mental, sem que haja lugar a uma “luta contra a doença” ou contra o sistema. Não está em causa saber se o casal de protagonistas se vai curar e regressar à sociedade — onde poderão, quem sabe, viver felizes para sempre. Il-sun usa a sua lógica própria para tentar convencer Yeong-gun a alimentar-se, sabendo que se não o conseguir fazer ela acabará por morrer. A dinâmica não é entre a sanidade dos médicos, e na utilização da racionalidade clínica para entender a paciente, mas num confronto de lógicas e insanidades diferentes.
A visualização das fantasias das personagens potencia sequências de acção “cibernética” que em várias ocasiões sugerem que poderia ser mais interessante se Park tivesse uma fantasia “pura” nas mãos — um filme de acção e ficção científica 2 —, sobre uma rapariga-ciborgue, com jactos nas solas dos ténis, determinada a eliminar todos os que se metessem no seu caminho. A vertente do romance e do melodrama não funciona tão bem, pois as personagens não se afastam suficientemente do respectivo conjunto de tiques, trejeitos e fixações determinadas pela respectiva condição mental, quando, a dada altura, é esperado que os vejamos como duas pessoas apaixonadas.
Em suma, um conjunto de personagens curiosas e situações interessantes que, globalmente, poderiam ter trazido resultados melhores. Há também uma boa interpretação de Im Su-jeong, num papel que foi inicialmente anunciado para Kang Hye-jeong, no meio de muitas personagens secundárias que dificilmente poderiam ter uma presença que fosse para além do decorativo, com excepção talvez da médica que acompanha Yeong-gun. Mas, como referido acima, o filme não se centra em curas ou processos clínicos, de modo que a personagem não interfere de forma significativa no destino de Yeong-gun.
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1 A romanização registada pelo KOFIC é Lim Soo-jung, mas outras alternativas e combinações podem surgir ocasionalmente. Aqui usa-se a reprodução fonética de acordo com a romanização oficial (pouco considerada no que toca a nomes).
2 Ainda que tenha uma apreciação francamente mais positiva, Kyu Hyun Kim, que escreveu sobre o filme em Koreanfilm.org, também já havia comentado como tais elementos abrem o apetite para o que o realizador poderia fazer num filme em que a fantasia fosse o género e não um aparte com alguma proeminência, e sugere uma manga de ficção científica que gostaria de ver Park adaptar.
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