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PiFan 2006
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2. Japão

Outra retrospectiva não legendada — ou melhor, legendada, mas apenas em coreano — foi a dedicada a Ishii Teruo, “King of Cult”. Ainda entrei em duas sessões: «Abaishiri Bangaishi» e «Horror of a Deformed Man». Foi durante o primeiro que deparei com as decepcionantes gralhas que abundavam no guia do festival em relação à legendagem em inglês. Só foi possível entrar ainda no segundo porque a própria organização parecia não querer acreditar que a informação estava errada e mandou dizer que o problema era apenas com a primeira cópia.

Vendo as coisas pelo lado positivo, ainda sobraram nove filmes japoneses com legendagem integral. A maioria categorizar-se-ia na área do horror/fantástico, com excepção de uma fantasia épica de artes marciais («Shinobi»), um drama romântico («Under the Same Moon»), um sexploitationFlower and Snake») e «Noriko's Dinner Table», de rotulagem mais complicada — drama atípico, desvinculado de convenções de realismo.

Toyoshima Keisuke
Toyoshima Keisuke, realizador de «Nobohiro-san» e de um terço de «Unholy Women».
Mas comecemos pelo horror.

«The Curse of Nobohiro-san» («Kaidan Shin Mimibukuro: Nobuhiro-san») e «Unholy Women», ambos no PiFan em estreia internacional, têm origem na mesma equipa de produtores, presentes em Bucheon para apresentar os filmes.

Toyoshima Keisuke dirigiu «Nobohiro-san» e o menos interessante dos três segmentos que compõem «Unholy Women», um filme genericamente subordinado ao horror centrado em figuras femininas, sem que exista algo de substancial a isso subjacente (i.e., não pretendem dizer nada sobre a condição feminina nem nada que se pareça).

Como obra pós-«Ring», «Nobohiro-san» procura fugir à previsibilidade do texto, não evitando algumas marcas registadas do género. Mas fá-lo já com a narrativa avançada, mas não vamos explicar porquê, para não revelar demasiado. Mas sim, fantasmas aparecerão e, para variar, não são meninas de longos cabelos negros.

Na base da história, está uma mãe solteira que começa a trabalhar como modelo para um pintor famoso, cujo comportamento se revelará progressivamente mais estranho. A relação mãe-filha poderá remeter, a certa altura, para «Dark Water» (2002), mas estamos longe da força dramática do filme de Nakata ou da sua refinada atmosfera.

«Unholy Women» é composto por três histórias: “Rattle Rattle”, “Hagane (Steel)” e “The Inheritance”. A realização é de, respectivamente, Amemiya Keita, Suzuki Takuji e Toyoshima Keisuke. O nome de Shimizu Takashi — autor de 15 versões de «Ju-on» —surgia algures nos créditos, mas não tomei nota a que título, talvez consultadoria ou produção executiva.

No último dos segmentos uma mãe solteira parece querer matar o filho na sequência de uma qualquer tradição familiar, talvez para se lembrar dele sempre como pequenino e queriducho. Quem sabe um manifesto em prol do lobby que visa atribuir a custódia dos filhos aos pais.

Apresentação de «Nobuhiro-san»
A equipa de «The Curse of Nobuhiro-san» (as meninas fazem parte da organização do PiFan) na sessão de perguntas e respostas que se seguiu à projecção.

Em “Rattle Rattle”, depois de derrubar oferendas colocadas num local onde uma criança morreu, uma mulher é perseguida por um fantasma feminino. O final esforça-se em oferecer uma surpresa, mas o destaque vai para os mecanismos formais, sobretudo para o modo dinâmico como o corpo é articulado, num registo próximo do spoof — já que toda a gente está farta de ver corpos crepitantes a arrastarem-se pelo chão, a caminho das vítimas que se poderiam safar se se levantassem e se pusessem a milhas dali.

A fantasma de “Rattle Rattle”, não deixa de ter um visual típico (longos cabelos negros e uma carantonha feia) e de crepitar q.b., mas movimenta-se sem dificuldade, provocando gritos histéricos entre o público (entre o susto e o divertido). Não é algo a que estejamos habituados, mas sempre é uma forma melhor de apreciar um filme de horror do que passar o tempo todo a tentar ser-lhe superior, com risinhos e cochichos para o lado.

The Curse of Mobohiro-san
«The Curse of Nobohiro-san».
A verdadeira jóia do conjunto é o semi-surreal “Hagane”, que não se preocupa em racionalizar os elementos narrativos no final. Um rapaz que trabalha numa oficina é convidado pelo dono a sair com a irmã. Mostra-lhe uma foto. Até é uma moça muito bonita. Quando ele a vai buscar constata que ela não é exactamente normal da cintura para cima. Ou pelo menos isso é algo que ele não pode julgar, pois ela está envolta numa saca. Da cintura para baixo, parece saudável.

Assim, o casal sai algumas vezes, passeia, etc. Ela parece gostar dele, apesar de alguma violência que desponta aqui e ali. Não falta um toque de erotismo atípico a caminho de um final cada vez mais absurdo. O segmento vale bem o preço do bilhete.

O PiFan apresentou toda a série “Masters of Horror” emparelhando dois episódios por sessão. Como a entrada de Miike Takashi era ímpar (ep. 13) teve o privilégio de ser projectada acompanhada da curta japonesa «Maternity Blue», de Yamamoto Shunsuke. Uma sessão bem programada, pois trata-se de um par de obras para estômagos fortes. (7)

Hagane
«Hagane (Steel)», segunda história de «Unholy Women».
Já sabíamos que «Masters of Horror 13: Imprint» de Miike tinha sido rejeitado para exibição pelo canal de cabo americano Showtime, mas também sabemos como a televisão americana é sensível. Ao que parece, o canal queria mesmo “esticar os limites” deste tipo de produções, mas receberam algo mais forte do que esperavam. E o problema não parece estar apenas na sucessão de abortos, mas numa cena de tortura que fez contorcer este espectador insensível na cadeira (mas só um bocadinho). Há um texto divertido de Grady Hendrix em Kaiju Shakedown, onde o autor descreve o filme como “Memórias de uma Geisha com bebés mortos”. (Mas atenção que Hendrix talvez fale demais sobre o filme.)

O problema de «Imprint» é ter sido rodado em inglês. E isto não parte de qualquer espécie de preconceito. Podia não apreciar o facto de toda a gente no Japão ser fluente (mais ou menos) em inglês, mas a questão não é apenas estética. O problema é que o diálogo não soa natural; os actores não estão confortáveis a dizê-lo, ainda que o inglês nunca chegue ao ponto de ter uma pronúncia demasiado vincada, falsa ou imperceptível. E o problema não foi apenas ser nativo ou não nativo na língua, pois o desempenho do americano Billy Drago roça o insuportável.

Não foi boa ideia adaptar a história desta forma para o público americano — que, ironicamente, só iria vê-la em DVD ou em algum festival de cinema. Se os factos se passam no Japão medieval, que se rodasse em japonês e se dispensasse a personagem americana. Por outro lado, nada impediria que Miike dirigisse apenas actores americanos. O mesmo texto poderia ser adaptado sem problemas para o antigo Oeste ou para a Europa medieval.

A curta-metragem «Maternity Blue» encaixou muito bem depois da projecção do filme de Miike. O único problema é que ambos os filmes eram originados em vídeo, o primeiro era anamórfico e o segundo não, mas a configuração da projecção não mudou. Posso estar a tentar adivinhar, mas o facto é que a curta foi projectada com distorção horizontal.

Under the Same Moon
«Under the Same Moon»: Fukasaku Kenta à procura da sensibilidade que não teve em «Battle Royale 2».
«Maternity Blue», ao contrário do que nome poderia sugerir, não é recomendado para famílias ou para jovens casais sensíveis. Na verdade, é o tipo de filme que no Ocidente só será visto por quem aprecia material mais “extremo” (mas ir ver algo só porque é extremo pode levar a grandes desilusões e impedir-nos de sermos surpreendidos), mas que por estes lados é mais uma fuga fugaz à rotina.

A personagem central é uma mulher grávida que tem fantasias contínuas em que é espancada e abusada. Entretanto, o marido tem sexo com uma colega de trabalho numa arrecadação — ou talvez seja outro delírio da mulher. O material é bastante arrojado e “explícito”, com alguma mutilação e um final divertido/idiota. Pagava por uma compilação de curtas japonesas absurdas como esta, mas não sei se alguém se lembrará de as editar num DVD com legendas.

«Black Kiss» (ou «Synchronicity») (8) é realizado por Tezuka Macoto [Tezka], filho do criador do Astro Boy, Tezuka Osamu. A acção arranca com uma noite de paixão num hotel de segunda que termina em sangue e vivissecção. A personagem central é uma jovem modelo que partilha um quarto com uma mulher também ligada ao mundo da moda, que acaba de conhecer.

Os cadáveres continuam a surgir, preparados de forma macabra e quase artística, ao jeito de um típico filme sobre serial killers, mas com um tom gótico e de mistério, com sugestões de sobrenatural. Funciona muito bem até aos momentos finais, onde o confronto com a origem do horror e a própria conclusão deixam a sensação de que o cozinhado precisava de apurar mais. O catálogo aponta semelhanças a alguns episódios de “X-Files” e conseguimos vê-lo; «Black Kiss» é como um episódio especial da famosa série televisiva, cruzado com um giallo, com gore e alguma nudez.

Inserido na “Forbidden Zone”, «Flower and Snake» («Hana to Hebi»), de Ishii Takashi é de 2004 e já tem sequelas. Ishii começou a carreira no cinema com a escrita de argumentos para os roman pornos dos estúdios Nikkatsu «Angel Guts», baseados nas suas próprias manga, “Tenshi no Harawata”. Como realizador, é mais conhecido pelos dois «Gonin» (1995 e 96) e «Freeze Me» (ou «Freezer», 2000).

Shizuko, famosa dançarina de tango, é casada com o presidente de uma empresa que se vê em apuros e sob chantagem da Yakuza. O líder criminoso, já passados dos 90 (!) é fã dela e perdoa a “dívida” se Shizuko dançar para ele uma noite. Mas ela acaba por se ver no palco de um circo de torturas e humilhação, um snuff ao vivo para audiências seleccionadas.

Shinobi
Um épico de época, com romance e ninjas: «Shinobi».
Sem pudor, Ishii dirige um sexploitation próximo da pornografia (mas com valores de produção, bem fotografado e iluminado), com bondage refinado, algum sadomasoquismo e micção forçada. Há sugestões de que tudo se poderá tratar de fantasias de uma mulher aborrecida e insatisfeita, mas não é nada que nos apoquente. (9)

Posso imaginar que muitos pensarão que é preciso ser tarado para assistir a tal filme até ao fim (10), mas a audiência era constituída em grande parte por jovens senhoras que não pareceram perturbadas com as sevícias contínuas a que a protagonista era sujeita, e não mais que meia dúzia de pessoas abandonou a sala, na zona onde me encontrava.

Já fora do âmbito fantástico tradicional (não deixa de ter um fugaz ingrediente de fantasia), «Under the Same Moon» («Onaji Tsuki wo Miteiru»), é o filme que Fukasaku Kenta dirigiu depois do lamentável «Battle Royale 2», tendo a curiosidade de contar com Edison Chen Koon-hei a passar-se por japonês (não tenho capacidade para julgar as suas capacidades linguísticas, nem registei se poderia ter sido dobrado), como vértice de um triângulo amoroso, com rapaz rico – rapaz pobre – menina doente.

O filme bem poderia ter sido encurtado numa meia hora, com espaço para surpresas, melodrama e um segmento com mafiosos que não serve grande propósito. Custa a entender como é que a personagem feminina aceita os pecados/crimes dos rapazes e também não se digere, sem um quilo de sais de fruta, toda a abnegação da personagem de Chen. A determinada altura, pensei sair da sala se o realizador cortasse para mais um grande plano da lua, mas acabei por ficar quedo até aos créditos, suportando mais uma boa meia dúzia deles.

Sono Sion
O realizador japonês Sono Sion durante uma longa sessão de perguntas e respostas com a audiência.
Conseguia imaginar, com muito dinheiro investido em marketing, «Shinobi», subtitulado «Heart under Blade» (11), a ser vendido no mercado internacional como um «Crouching Tiger Hidden Dragon» japonês. Trata-se de um filme de época, de grande orçamento, e com um imaginário que estamos mais habituados a ver no cinema chinês do que no originário no Japão.

O material não é estranho à cultura japonesa, sobretudo se considerarmos manga/anime e jogos de computador. (Na verdade, a história é adaptada de uma manga, já feita jogo de computador.) Num passado remoto, depois de muitas batalhas, o Japão é unido por um shogun, mas duas aldeias escondidas nas montanhas albergam dois clãs de ninjas rivais, detentores de poderes místicos. Temendo-os, o shogun põe em prática um plano, propondo um duelo mortal entre os melhores guerreiros de ambos os lados (não parece escrito directo para jogo de computador?)

Além da acção convencional, corpo a corpo ou com espadas, existem combates mais fantásticos, com recurso a CGI (do qual não se abusa muito). Alguns poderes dos intervenientes têm potencial dramático, como o homem “difícil de morrer”, ou uma mulher que tem veneno nas veias. Os desfechos de muitos combates acabam por decepcionar e o típico romance “Romeu e Julieta” não tem espaço para respirar. Também se sente a necessidade forçada de manter tudo ligeiro: apesar de muitos combates mortais e lâminas a trespassar corpos, mal se vê sangue.

Só mais um japonês: «Noriko's Dinner Table» («Noriko no Shokutaku»), de Sono Sion. O realizador afirmou que, quando terminou «Suicide Club» (2002), sentiu que tinha sobrado muito para dizer e que «Noriko» nasceu dessa necessidade. O que Sono tinha para expor não era pouco: o filme tem duas horas e meia. Apesar da longa duração, a maioria dos espectadores ficou ainda quase mais uma hora, para a sessão de perguntas e respostas com o realizador.

Ainda que haja referências ao “Clube do Suicídio” e que parte da acção se situe na altura em que 54 colegiais saltaram alegremente, de mãos dadas, para a frente de um comboio, não estamos perante uma sequela convencional, pois o cerne do filme são as relações familiares. A personagem central, Noriko, é uma adolescente que foge de casa e procura outra rapariga, mais velha, que conheceu através da Internet.

Sono questiona o papel da família e as relações entre os seus elementos, comparando-os a uma representação; Noriko está insatisfeita com a vida em casa, mas envolve-se num serviço de "aluguer de familiares", com uma representação que tende a sobrepor-se ao real.

Talvez demasiado longo e com demasiados formalismos para uma mensagem que poderia ser exposta sem particular densidade, «Noriko's Dinner Table» foi rodado em vídeo e transferido para película, com um orçamento que o realizador afirmou ser difícil de calcular por ser tão diminuto.

Sono Sion
Apesar da longa duração do filme e da hora tardia, a maior parte da audiência do Bogsakol Cultural Center ficou por mais 55 minutos para ouvir Sono falar sobre «Noriko's Dinner Table».


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(7) Toda a série Masters of Horror seria programada para o mês de Agosto no Seoul Art Cinema.

(8) O filme esteve pendurado mais de um ano, antes de estrear. O título original seria alterado mais tarde, mesmo no Japão, para «Black Kiss». O título na cópia visionada era «Synchronicity».

(9) Filme é fantasia, não precisamos de fantasia dentro da fantasia para tornar o material um pouco mais aceitável moralmente.

(10) No meu caso, era uma missão. Por muito que o que estava no ecrã me revoltasse o estômago, precisava de escrever o relato para os nossos fiéis leitores saberem que filmes evitar (já disponível em DVD nos EUA).

(11) Achei interessante ver o título no ecrã ao lado do caracter chinês ren 忍, pois a frase soa bem como sound byte promocional, mas é também a descrição do caracter, composto por lâmina/espada dao 刀 e coração xin 心. O coração sobre a lâmina significa, obviamente, "contenção", algo que os protagonistas desejam, e o mesmo é comum ao cinema de artes marciais em geral, mas que resultaria em filmes muito mais aborrecidos caso fosse respeitado. Vd. imagem no comentário a «Fist of Legend».

4/08/06

Continua
Capítulo 3: Ásia
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