| Lançado em Hong Kong em 12 de Janeiro de 2001, o DVD de «Crouching Tiger, Hidden Dragon» foi um grande sucesso de vendas. Entretanto, a Columbia decidiu suspender a distribuição de novos stocks, para remover a legendagem e a dobragem em inglês. Muitos meses antes da saída da edição americana, e enquanto o filme ainda estreia em muitos países, esta edição contrariou o fluxo normal da importação de filmes e preocupou seriamente o estúdio. Alguém poderia lembrar-se de, por exemplo, dividir o mundo em regiões...
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China, há mais de 200 anos atrás, no decurso da Dinastia Qing. Li Mu Bai (Chow), famoso espadachim, treinado de acordo com os ditames de Wudan, decide retirar-se, oferecendo a mítica espada Destino Verde ao seu amigo, Sir Te (Lung). Mu Bai confia a entrega da arma a Yu Shu Lien (Yeoh). Os dois reprimem o que sentem um pelo outro, desde há muito tempo, devido a Shu Lien ter sido noiva do melhor amigo de Mu Bai. Um novo governador chega a Beijing, e a sua filha, Jen (Zhang), torna-se amiga de Shu Lien. A jovem está prometida em casamento ao filho de uma família rica e influente, mas sonha com o "jiang hu", o submundo mítico povoado de heróis e vilões, dotados de extremas habilidades em artes marciais. Entretanto, surgem indícios de que Raposa de Jade (Cheng), assassina do mestre de Li Mu Bai, se encontra escondida algures na cidade. Mas tudo começa quando a Destino Verde é roubada por uma misteriosa personagem...
«O Tigre e o Dragão», o título português do filme de Ang Lee, de regresso ao cinema mandarim, evita o literal «Tigre Agachado, Dragão Escondido», transposto para a denominação internacional pela qual o mesmo já era conhecido. A linguagem é uma questão crucial, ao falarmos deste objecto peculiar, em termos de mercado, já que ultrapassou com alguma facilidade os resultados de bilheteira do anterior filme falado em língua estrangeira mais rentável de sempre, nos EUA, «A Vida É Bela», mesmo antes de chegar aos Oscars. É um grande feito que uma obra falada em chinês mandarim conquiste as audiências "internacionais", em festivais e nos multiplexes, ao mesmo tempo que convence a generalidade dos críticos. Disse Lee – que condena o processo de dobragem – que é tempo do público americano "começar a ler". O realizador expõe também a contradição que é um filme de artes marciais ser destinado ao grande público na Ásia, mas, por virtude das legendas, ser rotulado de "arthouse" nos EUA. 80 milhões de dólares depois, só nos EUA, este paradoxo pode já ser questionado.
«Wo Hu Cang Long» não têm o mais básico dos argumentos, mas não é uma obra de particular complexidade narrativa ou dramática, tendo sido criado por Ang Lee, em homenagem aos "wuxia pian" que via em Taiwan, enquanto jovem. Como parte de um género específico, aspira, antes de mais, a ser "pulp", entretenimento. Isto não quer dizer que o realizador e os argumentistas (James Schamus, Wang Hui-Ling e Tsai Kuo-Jung) se tenham confinado ao objectivo mais óbvio e directo, ao empreender a tarefa de transpor o quarto volume da pentalogia de Wang Du-Lu. Os resultados nunca seriam os mesmos, se Lee não desejasse revestir o bolo com uma cobertura de chocolate, desenhando contornos épicos e procurando dimensionar as personagens, e respectivos conflitos internos, dando-lhes forma, de modo a prender as audiências menos interessadas nas artes marciais. Por outro lado, a chama dos filmes de artes marciais feitos em Hong Kong, por vezes em dois meses desde o conceito à exibição em sala, tinha-se extinguido desde meados dos anos 90.
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A expressão chinesa que dá nome ao filme sugere cautela perante perigos dissimulados ou pessoas que podem não ser o que parecem. Mas Lee joga com outros conceitos, especialmente o de desejo reprimido. Pelos próprios (Shu Lien e Mu Bai) ou pelos valores da sociedade e da família (Jen). Este desejo de liberdade é personificado pela personagem de Jen, cujo nome chinês é Yu Jiaolong (long = dragão), não se encontrando nenhuma justificação óbvia para a "adaptação" na legendagem (que, obviamente, vem da versão inglesa). Ela quer ser livre para amar quem quiser (Lo), mas também para fazer o que bem entender, sem respeito pelas normas de conduta do mundo a que quer pertencer, sem dar "face" a opositores ou àqueles que com ela se preocupam. Para ela, o caminho da liberdade passa pela ruptura com a família e com a sociedade aristocrática a que pertence, e pela entrada no "jiang hu". Ironicamente, Mu Bai e Shu Lien – os quais perseguem o "dragão" –, pertencem a esse mundo, mas isso não os torna mais livres, pois permanecem constritos por convenções que os forçam a não resolver a longa repressão de sentimentos.
Lo é uma personagem algo secundarizada, apesar de protagonizar um longo segmento em flashback, talvez por não intervir em nenhuma das memoráveis cenas de acção. Uma vez mais, o seu nome chinês corporiza um segundo elemento, contraposto e complementar do primeiro: Lo Xiaohu (hu = tigre). Esse momento narrativo foi uma decisão do realizador que muitos não apreciaram. Mas esses 20 minutos no deserto, adicionados aos 15 iniciais, destinados a introduzir o público ocidental à sociedade chinesa da Dinastia Qing, constituem compromissos narrativos mínimos e acabam por reforçar o efeito dos segmentos mais movimentados (como poderia dizer Li Mu Bai, "sem contenção não há acção").
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Michelle Yeoh Chu-keng em pose pré-combate.
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A definição das personagens é essencial às artes marciais. A personalidade e a formação/treino nas artes definem o modo como cada guerreiro luta. Shu Lien está mais presa à terra (e à memória do noivo), sendo tal notório na cena da perseguição ao ladrão da Destino Verde. Jen, pelo contrário, não tem nada que a prenda, estando disposta a abandonar tudo e (provavelmente) todos, daí a sua maior leveza. Os combates em si funcionam como um libertar de frustrações. No fundo, é como se estivéssemos perante um convencional drama de época, com os conflitos familiares, rupturas de relações, gritos e lágrimas, substituídos por artes marciais.
Ang Lee inspirou-se grandemente em King Hu, célebre realizador de wuxia pian em mandarim, sendo a sequência na floresta de bambu uma homenagem a «Xia Nu/A Touch of Zen» (1975), Grande Prémio da Comissão Superior Técnica de Cannes. A presença de Cheng Pei-Pei não é casual, pois a actriz protagonizou diversos filmes no auge da popularidade do género, em meados dos anos 60. Cheng abandonou o cinema e foi residir nos EUA, onde tem trabalhado como professora de dança e apresentado um programa de TV. Entre diversos "regressos" ao cinema, inclui-se «Wing Chun» (1994), onde participou movida pelo desejo de contracenar com Michelle Yeoh. Ironicamente, devido a uma lesão de Yeoh, as cenas onde as personagens surgem juntas (nesse filme Cheng é a mestre de Yeoh), tiveram de ser rodadas em separado. «Wing Chun» é, claro, um filme de Yuen Woo-Ping, aqui responsável pela coreografia de artes marciais.
O trabalho dos actores é adequado ao drama e à componente mais física, no chão ou pendurados em fios. Yeoh, em particular, precisou de efectuar um esforço suplementar, dadas as exigências de gravação de som síncrono em mandarim, que é a sua quarta língua (nascida na Malásia é fluente em inglês e cantonês). Tendo trabalhado como dupla e sendo uma "artista marcial" completa, mostra aqui que os seus talentos não têm muitos limites. Ao contrário de outros emigrantes de Hong Kong, já com muitas ofertas de papéis em filmes americanos depois de «Tomorrow Never Dies», tem preferido dedicar-se ao cinema asiático e ao desenvolvimento da sua própria produtora. Enquanto não houver tempo para voltar ao cinema falado em inglês.
Zhang Ziyi, considerada por Ang Lee como a representante da terceira geração de guerreiras femininas do cinema chinês (na sequência de Cheng Pei-Pei e de Yeoh Chu-Keng), depois de uma estreia num filme de Zhang Yimou («O Caminho Para Casa/Wode Fuqin Muqin», 1999), é agora considerada uma das maiores promessas do cinema asiático, sendo natural que não se deixe prender a géneros. Segundo consta, detesta ser comparada com Gong Li.
Este género não é familiar a grande parte do público ocidental. "Wuxia" significa literalmente "guerreiro" ou "cavaleiro errante" e está para a China como o western pode estar para os EUA. A acção do wuxia passa-se num passado mítico, uma espécie de realidade alternativa, onde os praticantes de artes marciais podem atingir capacidades sobre-humanas. A canalização da energia interna (qi), em consonância com elementos naturais (água, vegetação, etc.) permitem-lhes executar "saltos sem peso", com maior ou menor graciosidade. Para além dos filmes de King Hu e de outros clássicos, duas obras de referência recentes são «Baak Faat Moh Nui Juen/The Bride with White Hair» (1993), de Ronny Yu Yan-Tai e «Siu Ngo Gong Woo Ji Dung Fong Bat Baai/Swordsman II» (1992) de Ching Siu-Tung, por acaso ambos protagonizados por Lin Ching-Hsia (que se retirou da Sétima Arte, "não oficialmente", com «Chungking Express»). Sendo ambos extremamente "entertaining", o primeiro exemplo é uma verdadeira obra-prima.
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Também não é a primeira ocasião em que um filme de artes marciais é apreciado como um objecto artístico, contrariando o habitual desprezo e a ideia feita das fitas marginais remontadas, reenquadradas e dobradas em inglês, a passar às 3 da manhã na TV. «Wong Fei-Hung/Once Upon a Time in China» (1990), de Tsui Hark, revitalizou o filme de artes marciais na década de 90 e sobreviveria como drama histórico sem o kung fu. O wuxia pian de Wong Kar-Wai, «Dung Che Sai Duk/Ashes of Time» (1994), é uma visão muito particular do género, um objecto curioso e invulgar e talvez o melhor e mais complexo filme do realizador.
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