China, 700 D.C, durante a Dinastia Tang (1). O tenente Li (Jiang) torna-se um fora-da-lei depois de se recusar a executar prisioneiros turcos. Lai Xi (Nakai) é um emissário do Japão que ficou na China ao serviço do imperador. Quando finalmente se avizinha o momento em que poderá regressar ao seu país, é-lhe atribuída uma última missão: eliminar o ex-soldado Li, conhecido como “o Carniceiro”. Depois de uma tempestade de areia, Li encontra uma caravana destroçada e passa a acompanhar os sobreviventes: um soldado e um jovem monge budista, guardião de um misterioso artefacto. Após uma reunião com os seus homens de confiança, Li protege a caravana e Lai Xi suspende a sua missão em nome dos interesses da pátria. A mercadoria chama a atenção de um senhor da guerra chamado An (Wang).
Numa altura em que, na sequência de blockbusters como «O Tigre e o Dragão/Wo Hu Cang Long» (2000) e «Herói/Yingxiong» (2002), existe espaço no mercado local e internacional para mais um wuxia de grande orçamento, enquadrando as vastas planícies da China e servido por uma fotografia luxuosa, a Columbia Pictures investe na produção e distribuição de títulos novos: «Warriors of Heaven and Earth» e «Shi Mian Mai Fu/House of Flying Daggers» (2004), de Zhang Yimou, filmes rapidamente acessíveis, seja em salas de cinema seja em edições de DVD, pois o distribuidor tem um comportamento distinto da Miramax, que prefere deixá-los a marinar, enquanto executivos e estrategas de mercado pensam como adaptá-los de modo a que as audiências consigam entender a apreciar os filmes. E eis porque tanto Zhang Yimou — depois de «Hero» — e Stephen Chow Sing-chi — depois de «Siu Lam Juk Kau/Shaolin Soccer» (2001) — têm agora os seus filmes distribuídos pela Columbia, enquanto a Miramax procura outras obras para adquirir e analisar durante um par de anos.
Infelizmente, este «Tiandi Yingxiong» (2) deixa-nos o gosto insatisfatório de um cozinhado que ficou por finalizar, com uma multitude de ingredientes soltos, a serem provados um a um. As intenções subjacentes à produção estão a descoberto, com personagens-tipo sem desenvolvimento suficiente que lhes dê credibilidade, seguindo rumos por vezes ilógicos, e uma trama demasiado tradicional, cheia de arestas por polir. As personagens são típicas q.b.: um soldado cujos valores morais e de respeito pela vida humana se sobrepõem a ordens superiores, mas que continua a ser um patriota — algo talvez essencial para que o guião fosse aprovado pelas autoridades —, um estrangeiro com saudades da sua pátria, mas fiel ao Imperador Tang; um vilão com momentos de hesitação, por razões patrióticas (surpresa). E também não podia faltar a “princesa”, que é preciso proteger, mas a personagem de Wen Zhu (Zhao), filha de um nobre, não assume uma função de particular relevância, dado que o motor narrativo assenta na misteriosa relíquia transportada na caravana e não na necessidade de levá-la em segurança até à capital — um ingrediente que, em determinada altura, parece ter sido considerado central, mas que depois se secundarizou. Na realidade, a presença de Zhao reduz-se a um “vaso de flores” e a imagem promocional da actriz em trajes de guerra pode induzir alguns espectadores em erro, porquanto a sua participação em cenas de acção é quase inexistente e limita-se a intervir quando é mesmo preciso e a ser empurrada contra uma parede. Preze-se, ao menos, ter-se evitado fazer dela uma constante dama em perigo.
As inconsistências de «Warriors of Heaven and Earth» são mais notórias a nível da montagem, mas também no modo como se filma a acção. Nesta área, Tung Wai (3) é co-coreógrafo mas os combates e duelos são abordados de forma relativamente realista, com excepção de alguns segundos onde se usam fios, conferindo um pendor de fantasia que destoará com o resto do filme, pelo menos até chegarmos a um desenlace que se assemelha a um surreal enxerto de um conhecido filme de aventuras dos anos 80. Tal pode sugerir ter havido, em algum momento, uma indefinição entre o wuxia fantasista e a vertente mais assente no drama épico, com acção de grande impacto e a respeitar a generalidade das leis da física.
A montagem tem momentos desconcertantes, com quebras na continuidade e, por vezes, com uma enganadora localização das personagens no terreno. Contínuos avanços e retrocessos no percurso parecem servir apenas para empastelar o filme até uma duração de duas horas. Por exemplo, há um momento em que An decide retirar-se, sem que nos convençamos da sua motivação, para minutos depois o vermos a reaparecer em cena, plenamente motivado, como quem voltou de uma pausa para chichi. Do mesmo modo, o texto recorre a outros expedientes para colocar os heróis em perigo, adiando confrontos ou salvando-os no último momento, por mecanismos artificiais que introduzem pausas na acção e protelam os confrontos.
Com uma estrutura familiar de uma infinidade de westerns clássicos, que culmina com um punhado de heróis numa fortificação, cercados por um inimigo em número muito superior, o filme de He Ping remete-nos, pela sua proximidade temática e cronológica, para «Musa» (Coreia do Sul, 2001), de Kim Seong-su, onde se conseguiu o equilíbrio entre os drama das personagens, os elementos históricos — a relação entre povos e culturas diferentes que também está aqui presente —, e a acção. «Tiandi Yingxiong» não consegue esse equilíbrio: falha como drama sério, mas perde-se por aí o tempo suficiente para deixar muito a desejar no que toca à componente de entretenimento, de filme de acção. A personagem de Zhang Ziyi em «Musa» não deixa de ser “típica”, mas a sua presença é essencial para o desenvolvimento da história. E a acção mantém-se realista no filme coreano, coerente na sua intensidade e brutalidade (a um nível que não se poderia esperar numa produção da RPC).
(1) A Dinastia Tang 唐 governou a China entre os anos 618 e 907.
(2) Literalmente, “Herói(s) do Céu e da Terra”.
(3) Stephen Tung Wai surgiu brevemente no grande ecrã ainda em criança como pupilo de Bruce Lee em «Enter the Dragon» (1973). Um dos papéis pelo qual o seu rosto é mais conhecido é o do informador em «Hard Boiled» (1992), de John Woo. Foi também uma das cabeças de cartaz da série “Jovens Heróis de Shaolin”. É prolífero como director de acção e coordenador de duplos em Hong Kong e realizou «Hitman» (1998), o último filme de Jet Li em Hong Kong, antes de partir para os EUA.
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