Um grupo de gangsters menores de Hong Kong tenta por todos os meios levar a cabo um golpe que os catapulte para a primeira divisão criminal. As oportunidades surgem na forma da venda de carros roubados na China ou com um contrato para matar em Taiwan. No entanto, a inexperiência, incompetência ou lamentáveis coincidências, parecem impedi-los de ser bem sucedidos.
«Too Many Ways to Be No. 1» é um de entre um conjunto de filmes com que nos últimos anos a produtora Milky Way tem revisto o cinema género "tríade", e o olhar que deita sobre cenários e personagens algo familiares é de uma ironia extrema. Há muito humor, mas há também amargura e frustração, decorrentes da incapacidade dos personagens concretizarem o que quer que seja. Não seria suposto apreciarmos o esforço de criminosos e desejarmos vivamente o seu sucesso, mas este grupo está fadado a falhar no mais básico, pelos motivos mais ridículos. Por exemplo, para o transporte de carros roubados, um dos veículos tem de ser abandonado porque alguém só demasiado tarde revela que não sabe conduzir. Um homicídio não pode ser executado porque se perdeu a morada do empregador. Ou o cérebro da operação acaba de ser atropelado. Ou alguém morre, é emparedado e só posteriormente é que se sente a falta do pager com a mensagem vital.
Este filme é um desfilar infindável de incompetência e de azar, onde o realizador mostra um saudável sadismo no modo como ironiza as situações em que os personagens se envolvem. Não há dúvida que não é para levar a sério, mas não é por isso que «Too Many Ways…» deixa de ser um olhar tão frio quanto apurado a um género tão popular no final dos anos 90. Só que então os gangsters tinham estilo e inteligência, os polícias disparavam com uma pistola em cada mão, voando em câmara lenta, e as mulheres eram normalmente decorativas. Aqui, os elementos femininos são relativamente activos, como o personagem que toma o comando dos falhados e lhes atribui outro serviço: e se eles, perdidos na China, não percebem muito bem Mandarim, são esclarecidos com auxiliares gestuais (como uma arma apontada). Os criminosos são uns mais incompetentes do que os outros: uns assaltam a mulher de um patrão do crime, os outros convencem-se que na verdade foram eles e até confessam… Acaba-se por se negociar em dedos e em cabeças para fazer a paz. O culminar dos segmentos tem sempre a mão do acaso, porque o tempo dos planos perfeitos e milagrosos (seguidos de perseguição e conflito final) já passou.
É de ignorar comparações com «Pulp Fiction» - e é algo estranha a referência ao filme de um realizador com tantas referências (assumidas) do cinema de Hong Kong - já que o filme de Wai Ka-Fai não possui narrativas paralelas com elementos a integrar num todo, antes constitui uma distorção na cronologia subjugada a pontos de vistas diferentes. Isto é, Wai extrapola fios narrativos diferentes a partir de uma mesma situação inicial, sempre através do olhar do mesmo personagem principal, desempenhado por Lau Ching-wan. As duas linhas principais de desenvolvimento são os contratos em Taiwan e na RPC, que, em abstracto, constituem histórias isoladas e com estruturas próprias.
No plano visual, o filme em análise está bem mais próximo de Wong Kar-Wai do que de Woo ou Lam (e parece que há quem se confunda com dois nomes tão semelhantes). Não há "ballets balísticos", apenas há o caos no meio de tiroteios, falta de munições e tiros que acertam alvos aleatórios. Wai usa e abusa de grandes angulares, com um efeito que lembra, pelo menos parcialmente, «Anjos Caídos/Doh Lok Tin Si» (1995) de Wong. Só que aqui a câmara percorre cenários repletos de cadáveres, quase se enfia no nariz dos actores e acentua o ridículo de cenas de sexo. Tal também permite inserir mais elementos por enquadramento, acentuando o descontrole das situações.
Algo que também poderá remeter-nos para Wong Kar-Wai, desta vez para «Felizes Juntos/Chun Gwong Ja Sit» (1997), é a sequência de alguns minutos com a câmara de cabeça para baixo. Aqui não se trata de expressar qualquer sentimento "poético" por uma cidade no outro lado do mundo, antes se pretende reforçar a sensação de estarmos perdidos e de não conseguirmos seguir a acção. (Para além disso, a câmara vira-se realmente ao contrário, não se tratando apenas de inverter a imagem filmada). Aqui importa apenas o resultado e a integração com o fluxo dos acontecimentos. Paralelamente, veja-se o momento do tiroteio entre dezenas de elementos de dois gangs, filmado no escuro, iluminado apenas pelos flashes das armas de fogo (pode fazer lembrar Kitano em «Sonatine» (1993), mas a semelhança é menor do que pode parecer).
«Too Many Ways to Be No. 1» tem o nome de Lau Ching-wan escrito em todos os fotogramas. Lau encarna diferentes faces do gangster moderno em diversas produções Milky Way e fá-lo com grande empenho e excelentes resultados, seja no drama romântico «Zoi Gin Aa Long/Where a Good Man Goes» (1999) ou no ensaio sobre lealdade e relacionamento entre criminosos, «Zan Sam Jing Hung/A Hero Never Dies» (1998). Lau é um actor reconhecido na indústria local, contando com algumas dezenas de títulos na sua filmografia, mas até meados da década de 90 seria mais facilmente visto em papéis secundários em obras como «Yin Doi Ho Hap Juen /Executioners» (1993) ou «Hak Hap/Black Mask» (1996).
Vd. Mostra de Cinema de HK, Lisboa 1999
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