Ruan Lingyu (Cheung) foi uma das mais famosas actrizes chinesas dos anos 30, altura em que Shanghai era apelidada de "Paris da Ásia" e a indústria cinematográfica prosperava, apesar do conflito com o Japão e da fragilidade política da república de Cheng Kai-shek. Ruan tornou-se famosa depois de ingressar no novo estúdio Lianhua, protagonizando mulheres modernas em luta contra a sociedade tradicional e patriarcal da época. Relações amorosas falhadas e a vida privada escrutinada e censurada pela imprensa acabariam por levá-la ao suicídio antes de completar 25 anos. O filme recuperou a sua memória seis décadas depois.
Apesar de ser uma das obras mais célebres de Kwan Kam-pang, «Center Stage», esteve indisponível durante anos na sua versão completa. A culpa foi de uma edição em Laser Disc, para a qual o filme foi remontado para uma duração mais conveniente, sendo a montagem curta utilizada subsequentemente, devido a preguiça e incúria por parte do detentor dos direitos.
Integrado agora no catálogo da Fortune Star, distribuído pela IVL em Hong Kong, «Ruan Lingyu» é pela primeira vez disponibilizado numa versão longa, que vai inclusive para lá da montagem original, exibida no Festival de Berlim, onde Maggie Cheung Man-yuk recebeu o prémio para Melhor Actriz.
«Center Stage», tal como «Rouge», é uma produção da Golden Way de Jackie Chan. «Rouge» foi protagonizado por Anita Mui Yim-fong (falecida prematuramente em 2003), a primeira escolha do realizador para encarnar Ruan. Mui alegaria motivos pessoais para recusar o papel, abrindo assim o caminho para a consagração internacional de Maggie Cheung.
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Ruan torna-se uma estrela graças a filmes como «Shennü» [«The Goddess», 1934] (em rodagem, à direita). |
O filme de Kwan é um biopic atípico. A recriação da vida da actriz de Shanghai convive com regulares interferências da realidade: entrevistas com sobreviventes da época, como a actriz Li Lili (interpretada, no filme, por Lau Ka-ling), com o escritor Shen Chi, autor de uma biografia sobre Ruan, conversas com o elenco sobre as suas personagens e clips de alguns dos filmes de Ruan ainda sobreviventes.
A opção do realizador — que até certa altura considerou montar o filme como uma biografia convencional, deixando as entrevistas de fora — não deixa de ser curiosa, tendo em conta que a vida da actriz se assemelha a um sofrido melodrama, sem necessitar de "dramatização".
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Ruan com Zhang Damin (à esquerda) e com o realizador Cai Chushen (Leung Ka-fai), em frente a um cenário do estúdio. |
Ao separar-se de Zhang Damin (Lawrence Ng), Ruan tem de suportar um penoso processo judicial, acabando por anuir no pagamento de uma pensão, para que ele a deixe em paz (o dinheiro é canalizado para o vício do jogo). Quando passa a viver com Tang Jishan (Chin Han), um homem de negócios abastado, a sua vida não melhora muito: ele é casado, mantém outra amante e é possessivo, sendo regularmente acometido por ataques de fúria.
A história de Ruan foi atribulada até ao fim. Deixando duas cartas de despedida, foi mais tarde revelado que as mesmas tinham sido falsificadas a pedido de Tang, pois punham em causa o seu comportamento e a sua responsabilidade, indirecta, na morte da actriz 1.
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O filme «Xin Nuxing» [«New Women», 1934], realizado por Cai, enfurece os media: baseado na vida da actriz e argumentista Ai Xia, condena o comportamento da imprensa, que terá contribuido para levá-la ao suicídio - uma situação que viria a ter paralelo na vida de Ruan. Para maior intensidade dramática, o realizador sobrepõe na imagem a frase "Quero viver!", ao invés de recorrer aos convencionais intertítulos. |
Depois da sua morte, custa a acreditar que a pressão dos media e a censura social conseguissem sobrepor-se ao amor e carinho por parte do seu público: a procissão do funeral estendeu-se ao longo de cinco quilómetros e, segundo reza a história, várias fãs suicidaram-se. De acordo com o New York Times, que colocou Ruan na primeira página, a procissão funerária foi mais extensa do que a de Rodolfo Valentino, falecido na década anterior.
Apesar de «Center Stage» ser um filme equilibrado, não podemos deixar de pensar como resultaria, tendo em conta as particularidades biográficas, se Stanley Kwan estivesse interessado numa dramatização convencional, e que outras possibilidades se abririam ao elenco, nomeadamente a Maggie Cheung.
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(1) Um segmento onde se inclui a frase “[...] se não estivesses envolvido com XX, se não me tivesses batido naquela noite e novamente hoje, acho que não teria dado este passo” não se encontrava na primeira carta tornada pública. (Texto traduzido das notas do DVD.)
Vd. comentário a «The Goddess» |