Shanghai, anos 30. Uma jovem mãe solteira vê-se obrigada a prostituir-se para alimentar e educar o filho. Ao fugir da polícia, acaba por envolver-se com um gangster que a passa a explorar, ameaçando a criança. A vida dos dois é ainda mais infernizada: os vizinhos não querem que as outras crianças brinquem com o filho de uma prostituta e são enviadas várias cartas ao director da escola exigindo a sua expulsão.
«Shennü» foi o penúltimo filme interpretado pela estrela do cinema mudo de Shanghai Ruan Lingyu, antes de cometer suicídio, aos 24 anos, na sequência de uma atribulada vida sentimental e da condenação, por parte da imprensa e da sociedade, do seu estilo de vida.
Os ataques por parte dos jornalistas foram reforçados depois do filme «Xin Nuxing» [«New Woman»] (1934), biografia da actriz Ai Xia, que se terá suicidado devido ao modo como era continuamente retratada na imprensa cor-de-rosa. A trágica ironia do destino iria colocar Ruan numa posição semelhante.
O primeiro filme sonoro foi «The Jazz Singer» (EUA, 1927) e a dinâmica indústria de cinema de Shanghai preparava-se para introduzir o som nos filmes, algo que era visto com apreensão por parte de actores com pronúncias vincadas e com maior fluência em dialectos que não o mandarim. Entretanto, os filmes mudos continuavam populares e beneficiavam do facto da produção americana sonora — devido ao factor língua — não conseguir competir localmente.
O estúdio Lianhua produzia filmes tanto anti como pro-establishment, sendo inevitável que os demasiado "progressistas" sofressem o escrutínio por parte da censura do regime de Chiang Kai-shek. O melodrama, ainda que permitisse subtexto político dissimulado, era um género popular e mais ou menos seguro. Ruan Lingyu tornou-se uma estrela com base em papéis associados a uma mulher chinesa moderna — forte, independente e segura de si, a lutar contra preconceitos sociais.
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A "Deusa" prostitui-se para poder criar o filho. A entrada em cena de um rufia torna-lhe a vida ainda mais difícil. |
O filme não procura exactamente desenvolver-se em redor da personagem simpática, a (hoje) típica "prostituta com coração de ouro", mas antes fazer uma análise social dos tempos correntes, a partir da situação de uma mulher forçada a extremos para sobreviver, sacrificando-se, a qualquer custo, para dar um futuro ao filho. Pouco pode esperar da vida e a sociedade rejeita-a; desiste de si mesma e entrega-se de corpo e alma à única razão da sua esperança: o filho.
Mais do que o gangster, interpretado pelo actor Zhang Zhizhi, é a cidade de Shanghai que se isola como vilã do filme, através de vários inserts, ilustrações de modernidade, mostrando uma cidade que não dorme — prédios altos recortados na noite e luzes de néon cintilantes. A certa altura, Ruan olha para a noite de Shanghai e manifesta, perante o filho, o desejo de fugir da cidade (e da sociedade) que não lhe permite levar uma vida normal.
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O gangster (Zhang Zhizhi) explora a "Deusa" e gasta o dinheiro no jogo. |
De acordo com Tony Rayns, citado no livro “Ruan Ling-yu — The Goddess of Shanghai”, de Richard J. Meyer, distribuído com o DVD de «The Goddess», o filme de estreia de Wu Yonggang foi “o primeiro produzido em qualquer parte do mundo, a abordar a prostituição sem a associar a degradação moral” (1).
Apesar dos mais de 70 anos que o filme já tem, algumas ideias de direcção chegam a surpreender. Enquadramentos e movimentos de câmara funcionais reforçam o impacto dramático de alguns momentos, como quando Ruan investe contra o seu opressor, aproximando-se da câmara, olhos cheios de determinação. Apesar da degradação do material original, a utilização da luz e de contrastes, que melhor funcionam a preto e branco, contribuem para enriquecer a experiência cinematográfica. É notório que os aspectos técnicos não foram descuidados.
É difícil julgar um actor apenas por um filme, mas Ruan demonstra aqui que não era uma mera estrela que enchia páginas de jornais graças à sua vida sentimental; era também uma excelente actriz que se deixava consumir pelos papéis que desempenhava.
Não seria difícil deduzir que as tragédias da sua vida pessoal contribuiram para o trabalho de representação de personagens também vítimas do meio social onde se inseriam. É uma pena que Ruan se viesse a revelar mais frágil emocionalmente que as suas personagens e que a não tenhamos podido ver e ouvir no cinema sonoro.
(1) O livro de Richard J. Meyer, além de biografar Ruan Lingyu elabora um retrato da época em que a actriz viveu, permitindo compreender melhor o contexto em que este e outros filmes foram produzidos. |