Um sexagenário (Jeon Seong-hwan) é o proprietário de um barco velho, estacionado em alto-mar, que aluga a grupos de pescadores. Com ele vive uma adolescente de 16 anos (Han), com quem pretende casar quando atingir a idade legal — 17. Num dos grupos de pescadores surge um rapaz, estudante universitário (Seo), que se interessa por ela. A rapariga parece corresponder. No entanto, sempre que os pescadores se querem aproximar demasiado da bela jovem, o velho usa o seu arco para os fazer mudar de ideias.
«The Bow» foi um rotundo fiasco na Coreia do Sul, onde o nome de Kim Ki-duk nunca foi exactamente garantia de resultados nas bilheteiras, mesmo a um nível de cinema independente. O filme estreou com apenas uma cópia, vendeu cerca de mil e quatrocentos bilhetes e foi retirado de cartaz depois de uma semana de exibição, o que levou o realizador a dramatizar e a afirmar que iria deixar de estrear as suas obras localmente se «Time» («Sigan», 2006) não vendesse 200 mil entradas. Tal esteve longe de suceder, mas Kim, entretanto, arrependeu-se dos comentários feitos a quente 1.
Os filmes do realizador coreano têm-se portado bem nos circuitos de arte e ensaio de países como a Alemanha, França ou os Estados Unidos. Quando o realizador se revoltou contra as audiências locais, não se esqueceu de referir que «Ferro 3/Bin Jip» tinha vendido mais bilhetes na Europa do que «Taegeugki» (2004) — o segundo título a ultrapassar a barreira dos dez milhões de bilhetes na Coreia do Sul, depois de «Silmido» (2003). No entanto, depois do pico de prestígio internacional, com os prémios de melhor realizador em Berlim e Veneza — por, respectivamente, «Samaritana/Samaria» e «Ferro 3» (ambos de 2004) — a recepção aos seus filmes seguintes tem sido mais moderada.
«The Bow» tem semelhanças formais com «The Isle» («Seom», 2000) e «Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera» («Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul geurigo Bom», 2003), que nos poderão fazer pensar se Kim Ki-duk não começa a ter algumas dificuldades em escrever um guião que não parta de um barco a flutuar na água. A função do cenário é simbólica e aí encontramos um dos defeitos dos filmes menos interessantes do realizador: deixar demasiado por conta de um nível simbólico pouco subtil, envolto num conjunto de imagens bonitas, que enchem o olho, mas que nem sempre vão muito mais longe do que isso.
Nos filmes anteriores, o realizador tem mostrado propensão para movimentar as personagens através de poucos ou nenhuns diálogos. Ou são dois protagonistas que não falam entre si, ou um único que se remete ao silêncio — como se se isolasse numa ilha, para usar uma metáfora que o próprio talvez apreciasse. Neste último filme, à falta de algo substancial para nos apresentar, o silêncio do velho e da adolescente acabam por parecer fazer parte do desejo incontornável pelo “enigmático”. E os actores surgem aqui em particular como meras marionetas, sob o controle de um realizador cujos motivos os próprios talvez não compreendam.
Han Yeo-reum (a rapariga) passa todo o filme com um sorriso vazio no rosto. Poderíamos admitir que tal deriva da particular condição da personagem, isolada num barco em alto-mar desde tenra idade, mas Kim Ki-duk não está interessado em explorar esses aspectos de psicologia. A expressão da actriz é a mesma de «Samaria», onde interpreta uma estudante que se prostitui para juntar dinheiro para uma viagem à Europa 2. A razão é que, ao contrário de realizadores que discutem as personagens com os actores ou os impelem ao improviso, Kim filma rápido e não se interessa por caracterização ou densidade dramática, mas pela representação directa do conceito que lhe vai na mente.
O método das personagens de olhar vazio e boca fechada funcionou em «Bad Guy» («Nabbeun Namja», 2001) e «The Isle» — ajudado também pela presença ou carisma dos actores principais, Jo Jae-hyeon e Seo Jeong — e é de alguma coerência com a lógica interna de «Ferro 3». Em «Hwal» a coerência é outra: o método encaixa no vazio global que atravessa um filme sem ideias para envolver o conceito ou premissa simplista, e que se adorna com a “fotografia deslumbrante” e algum folklore “exótico” — como a adivinhação que consiste na jovem balouçar-se em frente de uma imagem budista pintada no casco, enquanto o velho dispara flechas na sua direcção.
O vazio e a simbologia rude caminham para a tolice, à medida que o filme se aproxima do final [Se o leitor não viu o filme preferirá ignorar o resto do parágrafo]. O filme termina com a actriz Han Yeo-reum a contorcer-se sozinha no convés de um barco, como se estivesse a ter sexo com um homem invisível. Uma flecha — disparada para o ar três minutos antes — cai-lhe entre as pernas (a um palmo do seu corpo, note-se). No final vemos sangue na sua roupa branca. Será mais uma noite de núpcias espiritual — que representa a maturidade e a “libertação” (da castidade) da rapariga — do que uma referência a «The Entity» (1981), de Sidney J. Furie, mas que contribuiu para não ter conseguido levar o filme a sério.
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1 Vd. Comentário a «Time».
2 Em «Samaria», a actriz usava o nome Seo Min-jeong.
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