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Udine 2005
Encontros: Cinema Chinês
Com Feng Xiaogang. Domingo, 24.
Com Xu Jinglei, Zhang Bingjian, Wang Jing e Chen Daming. Quarta-feira, 27.
Este ano realizaram-se dois encontros onde intervieram cineastas chineses: um no domingo, dia 24, com a presença de Feng Xiaogang («A World without Thieves») e outro, na quarta-feira, dia 27, com Gu Changwei («Peacock»), Xu Jinglei («Letter from an Unknown Woman»), Zhang Bingjian («Suffocation»), Wang Jing («The Last Level») e Chen Daming («Manhole», FEFF 5). O tempo do primeiro encontro, onde Feng foi apresentado como “rei das bilheteiras”, foi dividido com a equipa do filme japonês «Lorelei». A coordenação esteve a cargo dos consultores do festival, Maria Barbieri, Maria Ruggieri e Shelly Kraicer. Esteve também presente o director da Mostra de Cinema de Veneza, Marco Müller.
Iª Parte: Feng Xiaogang
Durante a conversa com o realizador Feng Xiaogang abordou-se por diversas vezes a temática “arte e ensaio vs. cinema comercial”, uma bipolarização que viria a estar em foco noutros encontros que decorreram durante esta edição do Far East Film. Feng e o colega Wang Shuo — cineasta, mas também romancista famoso na China — são apontados como os precursores de um cinema mainstream, dirigido ao grande público chinês, mas o realizador de «Cell Phone» (FEFF6) e «A World without Thieves» renega existirem intenções de comprometerem o desejo de trabalhar naquilo que gostam, para ir ao encontro dos gostos médios do maior público-alvo do mundo.
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Feng Xiaogang, realizador de «A World without Thieves». |
“Gosto de fazer filmes que abordem temáticas diversas, porque o cinema para mim não é apenas um trabalho — preciso de fazer coisas que me divirtam.”, disse Feng. O cinema chinês das décadas passadas era tendencialmente propagandista. O cinema moderno oferece possibilidades muito mais vastas e o suplício de lutar contra a oposição do regime já não é tão vincado. De acordo com o realizador, ele e Wang Shuo começaram a trabalhar juntos em séries de TV e estenderam a colaboração ao cinema, concebendo filmes que abordavam a realidade e as mudanças na China. “Os nossos filmes não são de fantasia, nem de propaganda, nem são feitos a pensar nos festivais internacionais. Encontrámos uma fórmula que funciona bem no mercado chinês. Próxima da Hollywood, em parte, mas sobretudo próxima dos chineses”.
O sucesso que Feng afirma não perseguir cegamente — encontra-o sem o procurar — tem os seus perigos, nomeadamente a pressão por parte dos produtores e financiadores que podem preferir que se sigam as fórmulas vencedoras, impedindo a exploração de novos caminhos e novos registos. Em «A World without Thieves», o realizador não quis voltar a fazer comédia, mas conseguiu prosseguir com os excelentes resultados nas bilheteiras, excedendo mesmo os ganhos obtidos com os filmes anteriores.
Feng Xiaogang assume que é impossível não efectuar compromissos alguns com o mercado. No caso do seu último filme, que abriu a secção competitiva do FEFF, destaca-se, desde logo, a presença de duas estrelas, uma de Hong Kong (Andy Lau Tak-wah) e outra de Taiwan (Rene Liu Ruoying) a encabeçar o elenco, uma forma hábil de optimizar os resultados comerciais nos vários territórios chineses. Outras cedências relacionaram-se com os dialectos usados (ou não usados) no filme, evitando-se regionalismos. Mas a este tipo de concessões Feng não dá grande importância.
Shelly Kraicer questionou Feng sobre a sua relação com o “bad boy” da literatura chinesa, Wang Shuo, apreciado por grande parte da população, mas longe de cair nas graças das autoridades chinesas. “Wang influenciou muito o meu modo de fazer filmes”, respondeu. “Usa uma linguagem muito interessante, sobretudo no modo como recorre a expressões clássicas e as emprega de forma moderna. Ensinou-me a analisar a realidade mais próxima, em vez de me limitar a beber na tradição, nos temas clássicos.” Nesse momento, Feng Xiaogang aproximou-se de Marco Müller e, colocando as mãos junto à cabeça deste, de um e de outro lado, explicou que é possível estar mesmo junto a alguém mas ainda assim conseguir vê-lo por um ângulo menos óbvio. O conceito foi reforçado com o exemplo de «In the Heat of the Sun» («Yangguang Canlan de Rizi», 1995) de Jiang Wen, adaptado de um livro de Wang, onde se fala da Revolução Cultural de uma forma diferente da que conhecemos dos filmes de Zhang Yimou ou Chen Kaige, através da perspectiva de adolescentes.
Em resposta a uma questão do público, Feng debruçou-se sobre a relevância de utilizar o cenário do Tibete no início do filme. Houve preocupação em contornar questões sensíveis (políticas), para evitar problemas com os censores. As duas razões para se rodar no território foram de ordem funcional. A primeira prendeu-se com o factor espiritual, essencial para justificar o caminho da personagem de Rene Liu, que, ao rezar num mosteiro, descobre algo que está na origem da sua decisão de abandonar o crime. A segunda razão foi a mera necessidade de utilizar um local distante para iniciar a viagem, dado que o filme decorre duas horas dentro de um comboio.
“O elemento religioso é muito importante no filme. Todos precisamos de acreditar em qualquer coisa.”, afirmou o realizador chinês. “Quando Rene Liu encontra o rapaz ingénuo, toma-o por um bodhisattva — enviado para conduzi-la para o caminho correcto. Os ladrões deparam com um rapaz extremamente idealista mas são eles que acabam por confirmar o idealismo dele”.
12/05/2005
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Xu Jinglei, Maria Ruggieri, Chen Daming, a tradutora e Zhang Bingjian (da esquerda para a direita). |
2ª Parte: Gu Changwei, Xu Jinglei, Zhang Bingjian, Wang Jing e Chen Daming
O segundo encontro dedicado ao cinema chinês arrancou, como é costume, com a apresentação dos cineastas. Wang Jing dirigiu um telefilme antes de assinar «The Last Level», o seu segundo filme, mas, como o próprio se lhe referiu, o primeiro “a sério”. Zhang Bingjian manifestou a sua satisfação pelo sucesso de «Suffocation», que tinha estreado há apenas uma semana na China. Chen Daming havia sido convidado do FEFF de há dois anos, altura em que o seu filme «Manhole» foi apresentado, mas acabou por não se poder deslocar devido à SARS. Gu Changwei teve de regressar à China mais cedo do que o previsto, por motivos familiares, não podendo participar. Esteve presente, no entanto, no encontro do dia anterior — foco sobre três cinematógrafos asiáticos.
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Zhang Bingjian, realizador de «Suffocation». |
Na continuidade do primeiro encontro, falou-se sobre as pressões para a produção de filmes comerciais na China. Zhang Bingjian falou numa “missão” dos cineastas chineses: ter no mercado local mais filmes chineses do que de Hollywood. Quando à “pressão”, disse que “é preciso fazer dinheiro, uma vez que agora o financiamento é privado e não do Estado.”
Chen Daming passou oito anos nos EUA. Quando voltou à China, em 1998, encontrou um panorama dominado pela “arte e ensaio” da 6ª Geração de cineastas. Mas, presentemente, afirmou, “toda a gente quer fazer filmes comerciais — de acção, artes marciais, etc. Ninguém parece considerar o drama como um género comercial. Eu quero apenas fazer filmes; não me interessa se são comerciais ou não.”
Zhang mostrou-se optimista perante o actual cenário de produção na China, apesar das dificuldades acrescidas para vender o filme não só aos investidores, mas também aos distribuidores e exibidores, já que, actualmente, muitas produções contam no seu orçamento com o dinheiro obtido com as pré-vendas. O realizador tem também um papel na venda dos direitos de exibição do filme, convencendo os canais de distribuição a adquiri-lo. Claro que nem tudo são rosas. “Nem todos os filmes produzidos chegam às salas”, prosseguiu Wang Jing. “Temos de pensar bem em estratégias de marketing e controlar bem os orçamentos. Também devemos potenciar outras formas de difusão, como a TV, DVD e as vendas ao estrangeiro.”
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Chen Daming, realizador de «Manhole» (FEFF5). |
Chen descreveu o método de produção nos anos 80, durante o reinado da 5ª Geração. Na altura, os realizadores de Hollywood ficavam surpreendidos porque os cineastas chineses conseguiam fazer tudo o que queriam. Foi uma boa época no que toca a liberdade criativa, mas também no que diz respeito a possibilidade de levar um projecto a bom termo. “Como os orçamentos eram sustentados pelo Estado, as restrições eram poucas”, disse. “«Terra Amarela», de Chen Kaige, levou cinco meses a rodar. O realizador podia dar-se ao luxo de manter os actores e técnicos à espera se não lhe apetecesse filmar naquele dia ou interromper as filmagens por algum tempo. Hoje quase que não se tem um mês para filmar, é tudo mais complicado.” Chen Daming avançou com outra razão para não existirem prazos rigorosos: nos anos 80, actores e técnicos eram pagos pelo trabalho e não à hora como nos dias de hoje. “Os investidores não são necessariamente produtores, mas agem como tal. Querem filmes comerciais, mas não sabem exactamente o que é isso do cinema comercial. Em todo o caso, é interessante convencê-los, mostrar-lhes o que o filme que queremos fazer tem de bom.”
A realizadora Xu Jinglei não esteve presente desde o início do encontro, mas quando chegou pegou no tópico ainda em discussão — o estado do cinema chinês. Xu enumerou alguns factores que prejudicam a expansão comercial do cinema na China: número insuficiente de salas/ecrãs, baixos rendimentos da população e preços altos dos bilhetes de cinema, principalmente em cidades grandes como Pequim e Xangai. Um bilhete nessas cidades custa cerca de US$10, i.e., cerca de €7 à cotação actual. Estes valores ajudam a compreender porque é que o cidadão comum prefere ver televisão ou comprar DVDs piratas pelo equivalente a 50 cêntimos, menos de um décimo de um bilhete de cinema. (1)
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Wang Jing, realizador de «The Last Level». |
«Suffocation» sugeriu abordar a temática do cinema de género. Porquê um filme de horror? — perguntou Marria Ruggieri a Zhang Bingjian, pedindo aos outros cineastas presentes para falarem também sobre o que os leva a optar por um género ou um particular registo, na altura de escolher um projecto.
“Xu Jinglei certamente faz melhor dramas românticos do que eu”, começou por dizer Zhang. “Escolhi fazer «Suffocation» porque é um filme de horror fora do comum. A razão mais específica posso dá-la mais tarde depois de verem o filme (2). Queria explorar as mudanças mentais e psicológicas do protagonista. Isso e assustar, claro.”
Wang escolheu a temática de «The Last Level» depois de ler uma notícia no jornal sobre um jovem que se fechou num ciber-café durante dois meses. Pensou que seria interessante tentar desenvolver um filme com base no que se desenrolava na mente de tal pessoa, enquanto passava todo aquele tempo sentado frente a um computador. A opção de intercalar a realidade com segmentos de fantasia — extrapolação de um role playing game que o protagonista jogava online — pareceu-lhe a melhor forma de ilustrar o interior da mente dele.
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Xu Jinglei, realizadora, produtora, argumentista e actriz principal de «Letter from an Unknown Woman». |
As motivações de Chen Daming para realizar «Manhole» derivaram da sua experiência pessoal, regressando à China depois de vários anos nos EUA. O tema do filme são as rápidas mudanças na China, centrando-se num protagonista que volta a casa depois de passar oito anos na prisão e depara com grandes alterações no local onde vive, resultantes do rápida crescimento económico do país. Chen também viu filmes chineses enquanto estava em Los Angeles, mas não lhe pareceu interessante fazer algo do mesmo género: “Não queria fazer um filme com tipos a comer noodles durante dez minutos. Isso não é uma representação fiel do que é ser chinês. Os chineses são muito parecidos com os italianos — falam alto, são optimistas, gostam de se divertir.”
Xu Jinglei decidiu fazer «Letter from an Unknown Woman» depois de ter lido o livro de Stefan Zweig pela segunda vez — dez anos depois da primeira leitura. Quanto a questões de orçamento, não teve quaisquer problemas. “Falei com o produtor do meu primeiro filme, apresentei o script e ele perguntou-me quanto dinheiro precisava.” Max Ophüls realizou uma versão da mesma história em 1948. Xu afirmaria mais à frente não ter usado quaisquer elementos desse filme, sobretudo por não ter gostado dele.
Uma das opções para conseguir financiamento é procurar investidores estrangeiros e vários filmes chineses recentes têm sido co-produzidos. Zhang Bingjian disse que aceita o dinheiro de onde quer que ele possa vir, mas parece-lhe vantajoso que, para o futuro, a tendência seja encontrar financiamento no interior do país, pelas vantagens que tal trará, a longo prazo, à economia local. “É um desafio para os realizadores chineses”, disse. “Hoje ainda é uma luta, mas as coisas estão a mudar. Em quatro ou cinco anos veremos o cinema chinês atravessar mudanças radicais.”
Questionado sobre o sistema de censura — um tema recorrente quando se fala de certas filmografias (3) — Zhang minimizou as restrições. “Há factores que nos levam a ter de encontrar um equilíbrio entre a integridade artística a possibilidade de distribuir os filmes. Não há 100% de liberdade em lugar algum. Penso nesses limites como uma força positiva, leva-nos a procurar formas de contornar os obstáculos. Antes, as restrições eram muito mais fortes — não poderia ter feito «Suffocation» há cinco anos. Os governantes percebem que têm de abrir mais o mercado, permitir que o cinema chegue a mais pessoas. O meu filme foi aprovado sem qualquer problema.” Zhang concluiu que, por contraste, nos EUA há pessoas que não sabem apreciar a liberdade que possuem.
No tópico “mainstream vs. arthouse”, Xu Jinglei afirmou que realizou «Letter...» sem ter presente nenhum dos rótulos. “Quis apenas passar as minhas emoções para a audiência. Acho que é possível integrar elementos de ambos os 'tipos' de filme”. De acordo com a realizadora, apenas 1 a 2% dos filmes chineses são, de facto, “comerciais”, mas tal é difícil de apurar, até porque nem todos os cineastas se referem às suas obras recorrendo a esses rótulos.
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Maria Ruggieri traduz uma pergunta para Xu Jinglei. |
Chen lembrou a tendência de, no estrangeiro, todos os filmes provenientes do exterior que não sejam de Hollywood serem automaticamente rotulados como “arthouse”. Independentemente do rótulo associado a uma linguagem comercial ou de autor, há uma preocupação em chegar às audiências que se foi generalizando. “Até Jia Zhangke anda preocupado com as bilheteiras”, afirmou Chen. “Um bom resultado no box-office significa que se pode arranjar financiamento para o próximo filme, por isso agora todos pensam em fazer filmes comerciais.”
Com o encontro a terminar, Shelly Kraicer perguntou qual era a situação da crítica de cinema na China, referindo que alguns realizadores lhe disseram que não há grande apoio na imprensa local ao cinema chinês. De acordo com Xu Jinglei, “não há ainda crítica de alta qualidade na China. Na Internet aparecem pessoas que parecem mais interessadas e melhor preparadas para escrever sobre cinema.”
(1) Mais difícil talvez seja compreender como é que em Portugal há quem compre DVDs piratas pelo mesmo preço de um bilhete de cinema.
(2) «Suffocation» foi projectado nessa noite mas não sei se alguém se lembrou de procurar o realizador no final da sessão para lhe pedir mais pormenores.
(3) Veja também o Encontro Cinema Filipino [a publicar].
Fotos: Pedro Oliveira
15/05/2005
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cinedie asia © copyright Luis Canau. |
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