Hong Kong, 1934. Chen Chen-pang (Cheung), também conhecido como Mestre 12, frequenta o bordel Yi Hung onde conhece a cortesã Fleur (Mui). Chen volta frequentemente ao estabelecimento, tentando ganhar os favores da jovem, e os dois apaixonam-se. A família dele, ligada ao comércio e relativamente abastada, opõe-se à relação, não só devido à condição social de Fleur, mas também por existir já um casamento preparado entre ele e uma prima. Hong Kong, 1987, Ting (Man) vive com Chu (Chu) e ambos trabalham no mesmo jornal. No final de um longo dia de trabalho, Fleur dirige-se a Ting, solicitando-lhe a colocação de um anúncio para encontrar Mestre 12.
Baseado num livro de Lilian Li Pik-wah, autora de «Bawang Bieji/Adeus, Minha Concubina» (1993) e «Chuen Do Fong Ji/Kawashima Yoshiko» (1990), «Rouge» foi produzido por Jackie Chan e é considerado uma das obras máximas do cinema de Hong Kong, recolhendo considerável unanimidade no que toca a elogios da crítica: na votação de doze críticos promovida para o livro “Hong Kong Babylon”, de Fredric Dannen e Barry Long, «Rouge» alcançou a 5ª posição, com a mesma pontuação de «Dip Huet Seung Hung/The Killer» (1989) de John Woo e «A Fei Jing Juen/Days of Being Wild» (1991) de Wong Kar-wai, situando-se acima de «Hard-Boiled» de Woo e «Sin Nui Yau Wan/A Chinese Ghost Story» (1987) de Ching Siu-tung. Ganhou o Prémio Especial do Júri no Festival de Turim, os troféus para Melhor Actriz, Melhor Fotografia, Melhor Director Artístico, nos Prémios Cavalo de Ouro de Taiwan e ainda Melhor Filme, Melhor Actriz, Melhor Realizador, Melhor Montagem, Melhor Música e Melhor Canção Original, na oitava edição dos Prémios de Cinema de Hong Kong. Apesar de tudo, «Rouge» está longe de ser um filme muito divulgado no Ocidente, mesmo pelos circuitos de “arte e ensaio”, e o nome de Kwan não é facilmente reconhecível, ao contrário do de Wong Kar-wai, talvez o único cineasta de Hong Kong, fora do circuito dito comercial, a estrear regularmente filmes fora da Ásia.
«Rouge» ilustra as relações entre dois casais, afastados por mais de 50 anos, evocando as mudanças sócio-culturais numa cidade em constante mudança e “sem história”, numa altura em que já se fazia sentir a tensão pré-retrocessão [1] e a incerteza quanto ao futuro do território. As duas épocas, separadas pelas memórias de Fleur (Ruhua, no original, “como uma flor”), definem um contraste entre ideais românticos e formas de vida: nos anos 30, a sociedade e a família obriga os amantes a separarem-se e a ponderarem actos desesperados como solução para os problemas; nos anos 80 não há nada que possa destruir a relação entre Ting e Chu, para além deles mesmos. Vive-se velozmente na Hong Kong do presente, onde a carreira profissional se pode sobrepor a tudo o resto, sem haver tempo para parar e apreciar a beleza das coisas mais simples. O consumo desenfreado substitui a cultura (um teatro onde se podia assistir a Ópera Chinesa deu lugar a um shopping center). Outra transformação da paisagem de Hong Kong revela maior ironia: um bordel é agora um infantário. Antes, os homens deixavam as mulheres em casa com as crianças e procuravam o “entretenimento” das cortesãs; agora homens e mulheres estão ocupados com as suas carreiras e as crianças passam o dia com educadores profissionais.
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Mestre 12 tenta uma carreira na ópera (em cima). Ting e Chu, numa relação em crise, ajudam Fleur (em baixo).
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O percurso de Fleur é de permanente desilusão, não só devido à aparentemente infrutífera procura pelo amante, desaparecido décadas atrás, mas pelo confronto com um tempo presente que não reteve os valores do passado. O filme procura também esses valores perdidos em tempos idos e a conclusão, inevitável, é de que esses valores não voltarão nunca e de que as lamentações pelo seu falecimento não passam de "um balde de água de lágrimas num vasto oceano" (citando a canção final, interpretada por Mui).
Enquanto melodrama e história de fantasmas, «Rouge» é um objecto artístico de irrepreensível mérito. A estrutura está perfeitamente delineada, com saltos temporais fluídos, recuperando a história passada, gradualmente, momento a momento, até termos de enfrentar a conclusão no presente. A melancolia é acentuada na montagem, que nos leva ao passado em momentos rigorosamente seleccionados, de forma a estabelecer um contraste com aquilo que Fleur vai conhecendo do presente. Anita Mui tem aqui o que poderá ser o seu melhor e mais marcante desempenho, dando corpo a uma jovem mulher, solitária e perdida num mundo estranho, incorporando uma frieza sedutora, ao mesmo tempo que se revela subtilmente arrepiante. Cheung é eficaz, mas a sua personagem acaba por ser meramente acessória. Man e Chu são convincentes, encarnando o casal contemporâneo, que, através do drama de Fleur, tem a oportunidade de reflectir sobre a sua relação, desgastada por um quotidiano que tende a fazer os indivíduos abstraírem-se de si mesmos e dos outros, mesmo dos mais próximos, concentrando-se em outras prioridades. Man Chi-leung não tem tido grandes oportunidades de brilhar num papel principal, mas a sua participação neste filme e a composição de papéis tão diferentes como os que desempenhou em «Dang Doi Lai Ming/Hong Kong 1941» (1984), de Leong Po-chieh e «Wong Gok Jut Moon/As Tears Go By» (1988), de Wong Kar-wai, servem para ilustrar as suas capacidades como actor. Chu é uma actriz secundária, conhecida por papéis tipo “a namorada de –“ em «Ying Hung Boon Sik II/A Better Tomorrow II» (1987), de Woo ou «Long de Xin/Heart of Dragon» (1985), de Hung Kam-bo.
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Fleur tenta ser aceite pela família de Mestre 12.
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Stanley Kwan é constantemente referido como “cineasta de mulheres”: as personagens femininas ocupam recorrentemente o lugar central nas suas obras. É o caso dos seus dois títulos mais importantes: este «Rouge» e «Ruan Lingyu/Actress» (1992), com Maggie Cheung Man-yuk, a encarnar a história trágica da actriz chinesa que dá nome ao título original. Não deixando de ser uma bela, mas triste, história de amor, «Rouge» centra-se em Fleur, dando menos tempo de ecrã à relação entre ela e Chen. Vemos o seu olhar, no presente, sobre a curta relação amorosa, enquanto se tenta entender o que sucedeu no passado. Por este prisma, não estamos propriamente dentro das convenções do drama romântico – Cheung desaparece de cena cedo e não sentimos muito a sua falta; não queremos tanto revê-lo quanto assistir ao culminar da busca de Fleur. É a perspectiva dela que nos interessa; não é a relação romântica, em abstracto, que desejamos ver “resolvida”.
No campo do cinema fantástico, «Rouge» tem uma abordagem completamente diversa de títulos populares como a série «Sin Nui Yau Wa/A Chinese Ghost Story» (1987-1991), «Geung Shut Sin Sang/Mr. Vampire» (1985) ou «Wa Jung Sin/Picture of a Nymph» (1988), sendo filmado sem recurso a efeitos especiais ou cénicos, assentando a sua força emocional no trabalho dos actores e nos diálogos. Este contraste e a assumpção deste “realismo” – no que toca ao modo de apresentar o filme, não necessariamente em relação à temática – são desenvolvidos na cena em que visitamos um estúdio onde se roda um desses filmes, com fantasmas voadores. O fantasma aqui é tão ou mais humano que as personagens de carne e osso. «Rouge» é um drama "puro", inteligente e sem compromissos para com audiências sequiosas de entretenimento ligeiro. Se "divertimento" é o que procura, «Rouge» não é um filme aconselhado. Por outro lado, se quer ver bom cinema, uma história sólida e irrepreensivelmente desenvolvida e representada, e um dos melhores títulos produzidos em Hong Kong nos anos 80, então esta é uma obra incontornável.
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«Rouge» não é só uma história de amor com contornos fortemente dramáticos; é também uma reflexão melancólica sobre a Hong Kong do Séc. XX, à medida que se aproximava a data da retrocessão do território para a administração da República Popular da China. A inquietude com a transferência de poderes manifestou-se em várias obras a partir de meados dos anos 80, mas sempre de modo subtil, uma vez que a legislação local estatuía que as obras de cinema não deveriam conter material considerado ofensivo para “potencias estrangeiras” (wink wink). Ao transportar uma personagem dos anos 30 para os anos 80, confrontada com todas as mudanças sociais e arquitectónicas, Kwan está também a questionar o que permanecerá e o que mudará radicalmente na década seguinte, depois de 1997.
[1] A transferência para a soberania chinesa foi acordada em 1984, por Margaret Tatcher e Deng Xiaoping, através da assinatura da Declaração Comum que estabeleceu 1997 como o ano da transformação do território sob administração britânica na Região Administrativa Especial de Hong Kong, durante um período de 50 anos, isto é, até 2046.
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