Kekexili, no noroeste do planalto tibetano, junto à fronteira com a Região Autónoma de Xinjiang e a Província de Qinghai, é a terceira área com menor densidade populacional do mundo. Em 1985, caçadores furtivos começaram a caçar antílopes tibetanos naquele que é o seu último habitat natural, pela lã que atingia valores elevados nos mercados estrangeiros. No espaço de alguns anos, a população baixou de um milhão para menos de dez mil. Uma patrulha civil, liderada pelo capitão Ritai, formou-se em 1993 para proteger a espécie ameaçada. Quando, em 1996, os caçadores mataram um dos homens da patrulha, um repórter de Pequim deslocou-se a Kekexili para escrever sobre os antílopes e os homens que davam a vida para assegurar a preservação da espécie.
Com base em factos reais, «Kekexili» é um filme de aventuras que já foi comparado a um western americano. O realizador e argumentista Lu Chuan caiu nas boas graças da Columbia, que produziu a sua primeira obra, «The Missing Gun» — um exemplo de ruptura formal e narrativa com as tradições da 5ª Geração de cineastas chineses. Lu, no entanto, confessa ter-se interessado pelo cinema depois de ver «Milho Vermelho» (1987), de Zhang Yimou, e passados poucos anos já parece considerar que a sua primeira obra padece de alguma “imaturidade” característica dos novos realizadores, por vezes mais interessados em experimentar com as câmaras e a montagem do que em desenvolver o texto ou dirigir os actores.
«Kekexili» representa, formalmente, um corte radical com «The Missing Gun» e traz-nos um realizador muito seguro da sua visão e do modo de abordar o material. O filme anterior era um bom entretenimento sem compromissos fáceis, parte da vaga do novo cinema comercial chinês (1). Há ainda aqui uma estrutura de cinema comercial ou não fosse a 6ª Geração influenciada directamente pelos métodos e linguagem de Hollywood (2), mas a imparcialidade e o distanciamento — que costumam justificar o rótulo de “documental” nos comentários ao filme — com que Lu filma as personagens potenciam um bom equilíbrio.
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O jornalista de Pequim Gao Yu (Zhang Lei) acompanha a patrulha de Ritai (Tobgyal, ao centro da segunda imagem). |
Um dos elementos que reconhecemos do cinema ocidental, tradicionalmente mais preocupado em assegurar-se que chega à sua audiência, é o a figura do observador externo, o jornalista — um chinês han (3) da grande cidade —, que representa o olhar do público, mas também do realizador.
A sobriedade do filme é exemplar. Apesar da temática, não se alardeiam mensagem ecológicas nem se exalta o heroísmo dos homens que trocam uma vida normal pela protecção de uma espécie. Nem sequer se tenta apresentá-los apenas sob os ângulos que mais os favorecem. Pelo contrário, pois chegam a cometer actos passíveis de censura da nossa parte. Paralelamente, nem todos os caçadores são apresentados como criminosos insensíveis: alguns fazem o que fazem porque não têm outra forma de sobreviver e de alimentar a família.
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A composição scope de Cao Yu captura deslumbrantes cenários tibetanos. |
O desprendimento do registo e o “realismo”, decorrente de uma vertente documental que por ali espreita, acabam por potenciar o efeito choque de momentos de súbita violência que não é particularmente gráfica. Aparte o esfolar de alguns animais que presumimos não fazerem parte da espécie em vias de extinção central à história que aqui se conta.
Obviando mecanismos de construção dramática, uma montagem espartana que reduz o filme a menos de 90 minutos, a partir de uma versão inicial muito mais extensa, a utilização de actores amadores (à excepção dos protagonistas, o tibetano Tobgyal e o chinês Zhang Lei) e os deslumbrantes cenários naturais do Tibete, foram os ingredientes reunidos para um resultado que nos exige recomendar atenção ao trabalho futuro do realizador Lu Chuan e ao novo cinema chinês, “comercial” ou “de autor” — rótulos difíceis de aplicar num filme como «Kekexili».
Vencedor do Prémio Don Quixote/Menção Especial na Berlinale de 2005, o Prémio Especial do Júri no Tokyo Internacional Film Festival de 2004 e de Melhor Filme nos Golden Horse Awards de Taiwan, batendo «2046», «Breaking News», «The Moon also Rises» e «One Nite in Mongkok». «Kekexili» venceu ainda em Taiwan o prémio para Melhor Fotografia (Cao Yu).
(1) Vd. comentário a propósito do Festival de Deauville 2003
(2) Sobre o tema sugere-se a leitura do encontro com cineastas chineses em Udine 2005.
(3) 91,59% da população da China continental pertence à etnia han. O termo está também associado à língua (“hanyu”) e aos caracteres chineses (“hanzi”, pronunciado “kanji” em japonês e “hanja” em coreano). |