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Indielisboa 2007
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II — Filmes


Competição

Tal com sucede com festivais de cinema internacionais de maior dimensão, o IndieLisboa não vive dos filmes em competição. Os doze títulos seleccionados para formar o núcleo central do festival reflectem uma linha editorial coerente, com filmes mais ou menos interessantes, que tendem a integrar-se numa linguagem “arte e ensaio” contemplativa, onde a narrativa é secundarizada. Tal poderia sugerir uma meditação sobre o que é o cinema “independente” — uma questão recorrente em muitos dos textos sobre este ou outros festivais que utilizam o termo para circunscrever a respectiva programação. Ora o termo não tem que ver com a linguagem cinematográfica, mas com a estrutura produtiva por detrás da criação do filme e que, de um modo geral, coloca nas mãos do realizador ou “autor”, a génese e o controle da obra, por oposição a um filme de estúdio, de intuito exclusiva ou primordialmente comercial, onde produtores e executivos dão cartas e avocam o direito à montagem final, sempre que consideram necessário — ou quando o realizador não passa de um técnico contratado para supervisionar a execução do filme. Claro que há quem use a palavra num contexto menos rigoroso, como representativo de “estéticas”, “atitudes” e outros sentimentalismos.

Falkenberg Farewell
O actor David Johnson, em «Falkenberg Farewell» (Suécia).
Alguns dos filmes em competição desagradaram de forma notória ao público presente nas salas, mas não deixaram de deslumbrar alguns críticos. É provável que o contrário também tenha sucedido. A votação para o prémio do público é reflexo que a linguagem dos títulos em competição não é a que mais seduz a audiência do festival. Os cinco mais votados foram: «Forever» (4.44), «Shortbus» (4.37), «The U.S. vs. John Lennon» (4.22), «La Antena» (4.19) e «Floripes» (4.16) — todos integrados no Observatório, excepto «La Antena», parte da secção Director's Cut. Já nas curtas, curiosamente, os três títulos mais votados estavam em competição: «Voyage en Sol Majeur», «Zepp» e «Jantar em Lisboa», seguindo-se «Eût-elle Été Criminelle» (Observatório) e «Olhar o Cinema Português» (Director's Cut).

Anota-se a boa recepção do cinema nacional, com uma curta de animação e outra documental entre as cinco obras mais votadas, e «Floripes», vindo a ser a quinta longa preferida pelo público. É também digno de registo (e como) a apreciação dos formatos documentais, colocados no topo das preferências da audiência — tanto nas curtas, como nas longas.

Drama/Mex
Diana Garcia, em «Drama/Mex» (México).
A competição integrou três filmes sul-americanos («El Amarillo», Argentina, «Drama/Mex», México, e «Rabia», Chile), dois norte-americanos («Analog Days» e «Day Night Day Night», co-produção com a Alemanha), cinco europeus («Le Dernier de Fous», França, «Falkenberg Farewell», Suécia, «Fresh Air», Hungria, «Pas Douce», Suiça/França, e «Summer '04», Alemanha) e dois asiáticos («Close to Home», Israel, e «Love Conquers All», Malásia).

Assistir a nove dos 12 filmes permitiu uma visão razoável do conjunto, já acima expressa, no que toca à coesão da selecção. Boa parte destas obras de natureza ensaísta, revelam-se (por essa mesma natureza) cultural e etnograficamente descaracterizadas — isto é, afirmam-se “cinema de autor universal”. Os dramas e problemas abordados (no caso das obras que tinham tais preocupações) podiam ser transferidos de um continente para qualquer outro; as desempregadas de «Rabia» podiam ser europeias, a família de «Le Dernier de Fous» podia ser norte-americana, a rapariga de «Love Conquers All» poderia ser sul-americana.

Os vencedores do IndieLisboa foram «Love Conquers All» (Holanda/Malásia) e «El Amarillo» (Argentina), duas obras formal e tematicamente diversas, ligadas pela fonte vídeo e por personagens longe de casa, fragilizadas, de alguma forma, por esse estado de deslocação geográfica. No caso do filme argentino, o vídeo conferia um aspecto mais do que low budget, amador, uma vez que em boa parte dos planos nocturnos mal se vislumbravam os contornos das figuras que por ali se moviam e os rostos dos actores reduziam-se a uma mancha de pixels indistintos em planos médios. Claro que a aproximação distanciada e documental compadece-se com essa penumbra vídeo que para uns terá um intuito e significâncias várias; quanto a mim, apenas não se vê grande coisa. O filme desenvolve-se na viagem de um homem pela Argentina profunda, até se ficar por um bar, alternando-se momentos “verdadeiros” com os populares e canções da artista (e prostituta) de serviço. Simples e sedutor para uns, simples e irrelevante para outros.

O realizador Mike Ott, depois da projecção de «Analog Days», no cinema Londres.
«Love Conquers All» já foi comentado no site. Tem uma vantagem formal sobre «El Amarillo»: a fonte é vídeo (digital e não Beta, como registado no catálogo), mas a imagem tinha uma qualidade muito aceitável na sala de cinema; pelo menos, há luminosidade, contraste e definição que permitem ver os rostos em planos médios. Há muito de interessante e “cinemático” no filme, mas o aparente distanciamento da realizadora sobre as suas personagens não me pareceu coerente com a necessidade de forçar uma “narrativa”, tornando difícil entender as decisões da personagem central — que parece uma borboleta a investir de cabeça contra um candeeiro, depois de ter sido avisada para se afastar da luz.

«Analog Days» e «Drama/Mex» são dois títulos cuja independência não é tão próxima da arte e ensaio, dando primazia a uma estrutura narrativa. Ambos utilizam o flashback, ainda que de forma diversa. O primeiro, apresentado pelo realizador Mike Ott, no cinema Londres, foi, em certa medida e segundo o próprio, inspirado nos filmes que John Hughes dedicou à adolescência na década de 80. É um filme que não se pretende “notável”, centrado num grupo de estudantes que enfrentam a transição para a idade adulta, com alguma crítica social e política, patente nas opiniões e atitudes de algumas personagens. Uma interessante primeira obra com uma banda sonora (independente, claro) à altura. Ott, distribuiu cassetes (cassetes, por favor!) ao membros do público interessados e afirmou que se o filme for lançado comercialmente poderá ser difícil assegurar os direitos de todas as canções.

«Drama/Mex» acompanha dois grupos de personagens em Acapulco. Há um triângulo amoroso que se forma quando um jovem regressa e quer a namorada de volta. Esta, numa nova relação, diz que não está interessada (mas é muito pouco convincente). Quando esta história está já avançada, surge uma nova personagem, não relacionada. Um homem mais velho abandona a família e a empresa, com o dinheiro dos ordenados dos funcionários, e vai para a praia com desejos suicidas. Aí, cruza-se com uma adolescente que se quer dedicar à prostituição. Existem ligeiros desajustes na linha temporal, no modo como as duas histórias se cruzam, mas que não servem propósito algum que não seja ao espectador reconhecer algo que já viu suceder por outro ponto de vista, minutos antes. Apesar da temática pouco “politicamente correcta”, o filme desenvolve-se por via do humor.

A realizadora Jeanne Waltz com Miguel Valverde, um dos directores do festival, na sessão de perguntas e respostas que se seguiu à projecção de «Pas Douce».
O francês «Le Dernier des Fous» e o chileno «Rabia» tinham um ponto em comum, que consistiu num final com necessidade de apresentar uma consequência forte (“chocante”?) de tudo o que ficou para trás. Um e outro — filmes intrinsecamente diversos, note-se — beneficiariam sem essa necessidade de querer resolver. No caso de «Rabia», um filme com pouquíssimos planos, com diálogos improvisados entre mulheres à espera de uma entrevista para emprego, a acção final afere-se de uma falta de subtileza contundente. O filme francês funciona com base nas várias personagens, elementos de uma família em crise (de relacionamentos, de saúde e financeira), mas não se pode dizer que seja positivo que, no final, nos lembremos, sabe-se lá por quê, de Mario Bava.

Um dos mais interessantes em competição, quando a mim, foi o outro francófono, «Pas Douce», de Jeanne Waltz, um filme com personagens reais e uma estrutura narrativa normal. O título tem uma origem curiosa, cujos pormenores não vou revelar, mas surge numa frase que se traduz por algo como “tu não és nada doce!” A personagem central é uma enfermeira praticante de tiro ao alvo, que vive e trabalha numa cidade fronteiriça na Suiça. A vida corre-lhe mal por isso decide terminar tudo, dirigindo-se para a floresta com a sua espingarda de competição. Só que, claro, não é bem sucedida (ou o filme seria uma curta) e torna-se responsável por um ferimento grave num miúdo insuportável. O filme sustém-se na relação entre a vítima (que gostaríamos que tivesse sofrido um ferimento fatal ou que, pelo menos, a impedisse de falar) e a enfermeira, responsável pela terapêutica, mas também pelo estado clínico do miúdo.

O actor canadiano Robert Seeliger fez parte do elenco do filme alemão «Summer '04» e esteve disponível no final da projecção para responder às perguntas do público.
Durante o IndieLisboa, foi possível assistir a muito cinema alemão, devido à retrospectiva sob o mote do Novo Cinema Alemão, Herói Independente, mas esteve também em competição um título germânico, «Summer '04» («Sommer '04 an der Schlei»). A acção decorre numa casa de férias junto ao mar, para onde se desloca um casal, o filho e a namorada deste — uma rapariga de 12 anos, mas muito precoce. Os miúdos conhecem um homem mais velho — um americano — que, tal como eles, gosta de velejar. A miúda passa algum tempo sozinha com o homem e o casal preocupa-se. A presença dos elementos exteriores vai dar azo ao desagregar das relações familiares. O final estraga tudo — um pouco ao jeito do que foi referido em relação a outros filmes, tenta-se introduzir uma conclusão que pretende “justificar” o que ficou para trás —, mas não é conveniente falar disso. Parece muito “sensível”, mas passávamos sem isso.

«Falkenberg Farewell» («Farväl Falkenberg», Suécia), centra-se nas deambulações de cinco amigos de vinte e poucos anos, durante um Verão, na cidade de Falkenberg, no sudoeste da Suécia. Rodado com um orçamento reduzidíssimo, sustém uma boa atmosfera e envolve-nos no pesar pela perda de dias que não se vão repetir. Inspirado e improvisado a partir das vidas reais dos actores, que usam os próprios nomes no filme e incluem o próprio realizador Jesper Ganslandt. Tem uma estética particular, elaborada, sem se apresentar como sofisticada, que constitui um bom exemplo de como sem dinheiro se consegue fazer um filme visualmente atractivo — a fonte original é DV, transferido para 35mm, mas é algo que dificilmente será registado pela maioria dos espectadores. Mais interessante, quando a mim, do que os dois vencedores do Grande Prémio juntos.

Por fim, da Hungria veio «Fresh Air» («Friss Levegö»), caracterização de uma realidade social através da relação entre mãe e filha adolescente. A mãe trabalha em casas de banho públicas e tem fixação em sprays desodorizantes de ambiente; a filha, aspirante a estilista, faz questão de frisar que não gosta da profissão da mãe: sempre que ela chega a casa, corre a abrir as janelas. As duas não têm uma má relação, no entanto, e vêem juntas a série “O Polvo”, da qual são fãs, bem como do actor Michele Placido. O “ar fresco” do título é afinal também um símbolo de um desejo de mudança. Outro favorito da Competição.


Herói Independente: Aoyama Shinji

Aoyama Shinji, Herói Independente e membro do júri internacional do IndieLisboa, esteve presente nas sessões onde se projectaram os seus filmes.
A selecção de filmes do realizador Aoyama Shinji era um dos maiores atractivos para todos os que seguem com alguma atenção as cinematografias asiáticas, ainda que o realizador esteja mais próximo de uma linguagem da arte e ensaio europeia do que de muitos dos seus conterrâneos. Apenas «Eureka» (2000) foi distribuído em Portugal e num DVD tecnicamente limitado (4:3 letterbox), de modo que o IndieLisboa, que já tinha exibido no ano passado o então mais recente filme do cineasta nipónico, «Eli, Eli, Lema Sabachttani» (2005), permitiu a descoberta de um cineasta à maioria dos espectadores, que ocorreram com interesse às salas onde foram projectadas as suas obras. A disponibilidade de filmes em edições estrangeiras, com legendas em inglês, é também limitada, e com excepção da sua obra mais recente, têm-se mostrado pouco no estrangeiro, algo reflectido na existência de várias cópias sem legendas na película.

Os nove filmes visionados permitem extrair alguns temas caros ao realizador, como a predilecção por narrativas que integrem religião e seitas. As personagens de Aoyama encontram-se, na maior parte dos casos, numa encruzilhadas das suas vidas, onde decisões importantes têm de ser tomadas. Mais do que isso, procuram uma alteração radical à sua existência quotidiana, questionam o modo de vida em sociedade comummente aceite. Essa atitude reflecte-se, por vezes, na perda da vontade de viver — ou, por outro prisma, a mudança radical de vida pode passar pela morte. Em termos de espaço, esse desejo de fuga, pode corporizar-se na vontade, materializada ou não, de abandonar a cidade com destino a um local isolado no interior ou numa pequena cidade. É o que sucede em «Crickets», «A Forest with no Name», «Desert Moon» e «Shady Grove». «Embalming» e «A Forest with no Name» utilizam seitas religiosas como destino de algumas das personagens que querem renunciar à sua posição na comunidade onde se integram.

Crickets
«Crickets», de Aoyama, protagonizado por Suzuki Kyoka.
Dos filmes projectados, «Wild Life» (1997) era talvez o menos pessoal, próximo do yakuza eiga. «Embalming» (ou «EM», 1999) deixava transparecer alguma da visão autorística de Aoyama, mas é, em grande medida, um thriller, com uma linguagem comercial. A protagonista é uma mulher que embalsama cadáveres, restaura os corpos por forma a que a imagem final, pela qual as famílias irão lembrar o ente querido que os deixou, seja a melhor possível. Quando desaparece a cabeça de um jovem cuja morte a polícia investiga — tudo indica tratar-se de um suicídio —, a protagonista vê-se envolvida numa trama que envolve uma seita religiosa e tráfico de órgãos. Pelo meio, alguns ingredientes mais telenovelescos, como a procura de um pai há muito desaparecido.

Apesar das influências do cinema de arte e ensaio europeu — não esquecendo a utilização de um sample de um filme de Pedro Costa, em «Crickets» («Korogi», 2006) —, alguns dos filmes de Aoyama, onde as personagens questionam e filosofam sobre as suas existências e o seu papel em sociedade, caminhando para comportamentos extremos, incluindo a morte auto-induzida, recordaram-me os filmes de Sono Sion, «Suicide Club» (2002) e «Noriko's Dinner Table» (2005).

Em «A Forest with no Name» («Shiritsu Tantei Hama Maiku: Namae no nai Mori», 2002), Aoyama pegou num franchise com a personagem do detective (Yoko)hama Mike — um trocadilho com o famoso Mike Hammer, criação de Mickey Spillane. Curiosamente, transparecem as suas marcas e temas pessoais. A premissa é clássica: o detective fica encarregue de encontrar a filha de um homem rico. Mas a rapariga retirou-se para uma comunidade isolada no interior, gerida por uma guia espiritual que afirma ajudar todos os que ali estão a encontrarem as suas razões de existir. Essa temática cedo absorve a linguagem do policial, que subjaz à concepção do filme.


Herói Independente: Novo Cinema Alemão

O cinema alemão seleccionado parecia diverso e interessante, mas não sendo uma prioridade minha, é possível deixar notas apenas em relação a duas sessões, onde se apresentaram duas longas e uma curta metragem.

«Nightsongs» («Die Nachtsingt ihre Lieder», 2003) é puramente teatral, e assente nos diálogos sempre presentes. Uma relação em crise, um casal com personalidades muito distintas e um conflito agravado pelo facto dele não ter emprego, passando o tempo em casa, a trabalhar num livro. O filme mantém algum ritmo, mas, na parte final, quando a personagem feminina diz e desdiz, torna-se pouco credível — e também se dispensava o “impacto” que se achou necessário atribuir a um filme que estava, até então, a viver apenas do diálogo.

The State I'm In
«The State I'm In»: Julia Hummer
«The State I'm In» («Die Innere Sicherheit», 2000) foi apresentado com a curta «November» (1994, 25'). A opção de programação teve em conta a temática dos dois filmes; ambos têm envolvem elementos ligados à resistência (ou terrorismo) contra o poder. «November» é dedicado a uma amiga da realizadora, guerrilheira curda que foi executada na Turquia, acusada de terrorismo, enquanto «The State I'm In» segue um casal alemão — radicais de esquerda, terroristas — e a filha adolescente, que vivem em Portugal na clandestinidade. O filme desenrola-se em redor de uma relação familiar, tendo como pano de fundo questões políticas do passado da Alemanha, que nunca são trazidas para primeiro plano; importa-se, antes de mais, com a situação de uma adolescente que nasceu em fuga e que deseja apenas uma vida normal. Olaf Möller referiu-se ao contexto político, na introdução que precedeu a projecção, mas enganou-se no local, em Portugal, onde a primeira parte do filme foi rodada; em Cascais, não no Algarve, ainda que as personagens ponderem deslocar-se para lá.

Continua
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16/06/07

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