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China, 859 D.C. Depois de 241 anos de prosperidade, a Dinastia Tang está em declínio. O imperador é fraco e incompetente. O seu governo, fragilizado pela corrupção, já não controla o território. A inquietação varre o país. Aldeia a aldeia, uma aliança subterrânea forma-se: “A Casa dos Punhais Voadores”. Com base no condado de Feng Tian, perto da capital imperial, a Casa do Punhais Voadores move-se nas trevas, roubando aos ricos para dar aos pobres, ganhando o apoio e a admiração do povo. Ao mesmo tempo, são temidos e odiados pelos seus amargos rivais, os agentes da lei. [Introdução do filme]
Dois capitães das tropas governamentais investigam uma rapariga cega, Xiao Mei (Zhang) que trabalha num bordel, suspeitando que pertence a um grupo de foras-da-lei que conspira com vista à queda da Dinastia Tang. Jin (Kaneshiro) fica encarregue de se passar por um simpatizante do movimento, libertando Xiao Mei e levando-a de encontro aos seus correligionários, enquanto Liu (Lau) os segue de perto, acompanhado de soldados. No entanto, as coisas não correm conforme o planeado entre os dois e a lealdade de Jin irá ser posta à prova. (1)
O sucesso internacional de «O Tigre e o Dragão» (2000), de Lee Ang, deu azo à produção de alguns wuxia de orçamento confortável e valores de produção notáveis — por comparação com a imensidão de filmes de género feitos em Hong Kong, nos anos 80 e 90, que demoravam algumas semanas a completar, desde o início da escrita do texto até as bobines estarem prontas a enviar para as salas de cinema. O sentido "prático" era tal que muitos destes filmes prescindiam do próprio guião; pegava-se num conceito, uma eventual estrutura e ia-se improvisando uma história mais ou menos coerente durante a rodagem. Os diálogos eram pouco importantes e como os filmes seriam pós-sincronizados podiam até ser escritos finda a rodagem.
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O Capitão Jin (Kaneshiro Takeshi) infiltra-se num bordel para conhecer uma potencial agente subversiva (Zhang Ziyi). |
O investimento no wuxia pian de Hong Kong, para atingir um produto final bem polido, de grande qualidade técnica, foi iniciado com «Stormriders» (1997), de Andrew Law, um filme com um conceito formal diverso; mais assumidamente fantástico, sem tantas preocupações de usar os efeitos digitais para reforçar o "realismo" da linguagem do género. «Crouching Tiger» também não foi o primeiro filme deste género "popular" realizado por um "autor"; Wong Kar-wai, com «Ashes of Time» (1994) já tinha abanado verdadeiramente o wuxia, num filme que não teve a felicidade de viajar para fora da Ásia como «Chungking Express», completado num par de meses, enquanto o dispendioso épico de artes marciais aguardava a montagem final.
Lee partiu para outros voos, após «Crouching Tiger Hidden Dragon», mas Zhang optou por pegar imediatamente noutro wuxia na sequência de «Herói» (2001), antes de voltar aos dramas humanos com os pés assentes na terra e com orçamentos mais comedidos. (2) Se o filme anterior investia numa estética vincada e numa narrativa quebrada, desenvolvendo um conceito que apostava na relevância histórica e política do material — o "politicamente correcto", na apreciação das autoridades chinesas, devido à mensagem de submissão do individuo ao interesse comum — «Shi Mian Maifu» reduz a importância da mensagem política e concentra-se no drama romântico, alimentado por um triângulo de gumes letais.
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O Capitão Liu (Lau Tak-wah) dá o sinal de partida para uma das melhores sequências do filme: A Dança do Eco. |
Tecnicamente, o filme de Zhang é quase irrepreensível, não fosse alguma utilização de CGI menos satisfatória, nomeadamente a insistência nos artificiais “punhais voadores”. A fotografia de Zhao Xiaoding é deslumbrante e Zhang Yimou pôde ainda recorrer aos serviços dos mais reputados profissionais de várias áreas, da China e do Japão: desenho de vestuário por Wada Emi (colaboradora de Kurosawa e Greenaway) música de Umebayashi Shigeru (assinou o score de «2046», no mesmo ano), direcção de acção de Ching Siu-tung (realizador da trilogia «A Chinese Ghost Story») ou design de produção de Huo Tingxiao, que inclui nos seus créditos o trabalho na produção coreana «Musa» (2000), com Zhang Ziyi no elenco. Zhang volta a trabalhar com vários profissionais e artistas cujo talento contribuiu para o sucesso de «Herói», incluindo os anteriormente referidos, Wada, Ching e Huo.
No plano narrativo e, consequentemente, dramático, estamos longe dos resultados alcançados a nível técnico e estético. As personagens masculinas despertam pouco interesse, sobretudo por se movimentarem sobre uma rede de surpresas mal desenvolvidas e que pouca ou nenhuma falta faziam numa obra que almejaria suceder como drama romântico e não como thriller político. Como filmes de outro género afogados numa necessidade absoluta de se revelarem “complexos” e repletos de reviravoltas “inteligentes”, «House of Flying Daggers» culmina na artificialidade quando, findo o desfile de revelações, constatamos que algumas coisas que ficaram para trás acabam por não fazer sentido, existindo apenas para a conveniência do momento. [Se viu o filme, seleccione o texto com o rato para ler o resto do parágrafo.] Quando conhecemos a relação entre Liu e Mei como interpretamos o combate no bordel? A maior parte deste passa-se longe de olhos indiscretos; para quem é toda aquela encenação e dramatismo, em que ele parece prestes a afogá-la? Quando Liu é levado, amarrado, perante a chefia do Punhais Voadores, para quê fingir que não conhecia Xiao Mei e desconhecia que não era cega? Para quê sequer manter a máscara de agente da lei ali? Toda a gente o conhecia, excepto Jin — que deveria ser executado de qualquer forma.
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Os dois eventuais amantes/aliados/inimigos vêem-se repetidamente cercados de dez direcções. |
O argumento acaba por parecer inacabado e indeciso quando ao seu rumo. Sugere-se um confronto épico entre as forças dos rebeldes e do governo, conhecemos as intenções de ambas as partes, mas depois nada surge e nada colmata a sensação de que falta uma batalha entre as tropas, paralela à outra que vemos, na neve. Cria-se, sobretudo, uma expectativa em relação ao grupo de resistentes, que depois acaba por sair frustrada; nem sequer os vemos realmente em acção — apenas as suas lâminas em CGI. E que interesse vem a ter quem é ou quem não é o verdadeiro líder do grupo?
Zhang optou por desvalorizar a componente de combate épico e focar a nossa atenção no destino de relações românticas, mas essas não tiveram grande sustentabilidade até então. A montagem é repetitiva, com pessoas que decidem voltar para trás, regressam, voltam novamente... Kaneshiro diz, várias vezes, “Voltei por causa de uma pessoa”, e é suposto que o espectador pense para consigo “Ah, que bonito” em vez de “Acabem-lhes com a miséria!”. [Seleccione o texto com o rato para ler o resto do parágrafo.] E porque é que duvidamos que uma execução será efectuada sempre que o executor designado leva o condenado para um local ermo? (Convenhamos, é um cliché, não um problema exclusivo do filme.) E que sentido tem um líder confiar que um soldado execute, longe de todos, alguém com quem pode ter ligações emocionais?
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O final arrasta-se e arruína qualquer réstia de dramatismo. Não há bom trabalho de representação que salve o protelar da resolução. Se subsiste algo que possa provocar alguma comoção é tão só a dedicatória final, a relembrar-nos a perda prematura de uma actriz e “diva” pop.(3)
(1) Os nomes pelos quais as personagens de Andy Lau e Kaneshiro Takeshi são conhecidas correspondem aos caracteres dos respectivos apelidos: Liu e Jin, em mandarim. No caso de Lau, a tradução optou pelo mais english-friendly Leo (a adaptação portuguesa, que nos trouxe um título mais empolgante a partir do inglês, também podia ter ido mais longe: Capitão Leão?).
(2) À data da escrita deste texto, «Qian Li Zou Dan Qi» já havia estreado na China.
(3) Anita Mui Yim-fong teria um papel importante no filme. Infelizmente viria a falecer em Dezembro de 2003.
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