Herói/Yingxiong
英雄 (yīng xióng)
Realizado por Zhang Yimou
China, 2002 Cor – 98 min. Anamórfico.
Com: Jet Li Lianjie, Tony Leung Chiu-wai, Maggie Cheung Man-yuk, Zhang Ziyi, Chen Daoming, Donnie Yen Ji-dan, Liu Zhongyuan, Zheng Tianyong, Qin Yan, Chang Xiaoyang.
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poster
Sete reinos lutam pelo domínio do território que virá a formar a China, numa carnificina que se prolongou durante duas centenas e meia de anos – o período dos Estados Guerreiros (475-221 A.C.). O Reino de Qin é o mais forte e o seu monarca o mais determinado a unir os territórios, formando um vasto estado sob o seu jugo. Os inimigos querem assassiná-lo a qualquer custo e o Rei de Qin (Chen) decreta a entrega de elevadas recompensas contra a cabeça dos mais poderosos guerreiros que procuram eliminá-lo: Espada Quebrada/Can Jiang (Leung), Neve Flutuante/Fei Xue (Cheung) e Céu/Chang Kong (Yen). A tarefa parece impossível, mas um oficial de baixo estatuto, xerife de província, é levado à presença do rei, alegando ter morto os três assassinos e apresentando as suas armas como prova. Em audiência com o soberano, Sem Nome/Wu Ming (Li), explica como conseguiu vencer inimigos aparentemente superiores [1].

O novo filme do conceituado realizador chinês da 5ª Geração, Zhang Yimou, prossegue a rota da recuperação do wuxia tradicional, que, com o melhoramento das tecnologias aliadas aos efeitos especiais, cada vez mais consegue ser ilustrado não só como um género de cinema popular de acção, mas também como cinema de “arte e ensaio”, onde o intuito das coreografias é extrapolar o estado de espírito dos heróis que vogam pelo jianghu, tornando-se secundário o objectivo supostamente primordial da derrota do adversário. Esta abordagem não é exactamente novidade e «Dong Che Sai Duk/Ashes of Time» (1994), de outro realizador normalmente afastado do cinema de grande público, Wong Kar-wai, era já uma construção de género, subjugada ao desenvolvimento dos temas habituais do autor.

Li e Yen: o reencontro de dois ícones do cinema de acção de Hong Kong.
Tal como sucedeu com o outro wuxia pian com difusão global, devido à distribuição por uma major americana, «O Tigre e o Dragão» (2000), «Herói» beneficiou de condições de produção muito favoráveis: além de reunir um elenco repleto de cabeças de cartaz, o orçamento confortável permitiu uma refinada elaboração das mais complexas peças de combate em baixa gravidade, ainda que algum do CGI não seja exactamente perfeito. Visando alcançar um grande nível de qualidade técnica e artística, reuniram-se os talentos de Ching Siu-tung («Shaolin Soccer», trilogia «A Chinese Ghost Story»), na construção das cenas de acção e wirework, a fotografia de Christopher Doyle, colaborador de Wong Kar-wai desde «Days of Being Wild» (1990), o guarda-roupa da japonesa Wada Emi («8 1/2 Mulheres» e «Os Livros de Próspero», de Greenaway, «Gohatto», de Oshima, vencedora de um Oscar por «Ran», de Kurosawa) [2], e a música de Dun Tan (Oscar por «O Tigre e o Dragão»).

Lua (Zhang Ziyi) e Neve Flutuante (Cheung Man-yuk) em rota de colisão
É difícil não referir o filme de Lee Ang, dadas as circunstâncias similares de produção e distribuição – para além das presenças duplas do compositor, da actriz Zhang Ziyi (Lua/Ru Yue) e do produtor, Bill Kong –, mas os filmes apresentam duas visões diversas do wuxia: «O Tigre e o Dragão» é realizado por um Taiwanês com residência nos EUA e co-escrito pelo americano James Schamus, existindo um notório ensejo de agradar a dois hemisférios, através de uma estrutura narrativa sustida no romance e na aventura; «Herói» denota uma visão mais “pura” do material e uma maior ligação à história e às tradições chinesas. É também por aqui que o filme de Zhang recebeu algumas críticas, que, no fundo, surgem no decorrer de outras feitas aos seus filmes mais low profile, pequenas e emotivas histórias de pessoas simples, a marcarem um afastamento definitivo da abordagem de material sensível, que forçaria à censura ou à proibição por parte das autoridades chinesas [3]. Essa perseguição envolve as obras numa certa panache, durante a sua passagem pelos grandes festivais de cinema, mas não será muito legítimo, apenas com essa base, criticar um realizador, que não deverá estar muito interessado em ser impedido de filmar durante uma década, como Tian Zhuangzhuang, depois de «Papagaio de Papel Azul» (1993).

«Herói» é, naturalmente, um filme patriótico, mas, como já referimos no âmbito do Festival de Deauville, também o são muitas das produções de Hong Kong onde os heróis se revoltam contra a dinastia dos manchus (Qing), pelo restabelecimento da Dinastia Ming (dos han). No filme de Zhang, afirma-se o interesse supremo da unificação da Nação (a unidade de tudo e todos, “sob o céu” – 天下 Tianxia), algo passível de despoletar a discussão de questões políticas (e de direitos humanos?) actuais. Por este ponto de vista, «Herói» trabalha para nos convencer de que a causa merece todo e qualquer sacrifício. Mas será essa a única firma de encararmos o material? O Rei manifesta o desejo de unificação territorial, mas também cultural, o que é exemplificado com a necessidade de erradicar variações na escrita. É “bom” que um povo tenha regras de linguagem oral e escrita unificadas; é “mau” – naturalmente –, se tal passar pelo extermínio de uma cultura ou se se determinar que uma comunidade vizinha é, na verdade, parte da nossa, apesar de não se terem apercebido disso. Continuando a tentar ver as coisas por um prisma menos óbvio, poderíamos questionar-nos se a resistência passiva dos alunos da escola de caligrafia, enfrentando a morte, agarrados à sua cultura até ao fim, não poderia ser considerado um comentário “subversivo” em relação à questão tibetana?

De um lado, uma pátria em gestação, do outro, o amor de uma mulher: um conflito de interesses irresolúvel (Leung Chiu-wai e Cheung Man-yuk).
Alguns colunistas mostraram insatisfação com o facto do Rei não ser apresentado de modo mais “realista”, como um déspota responsável pela morte de milhares de pessoas. Mas os seus métodos não são exactamente camuflados ou branqueados (os estudantes de Zhao não são soldados, mas civis inocentes, cuja aniquilação o monarca não lamenta), havendo também que ter em conta a diferença na valoração moral que resulta da passagem de dois mil anos de história após tais actos. Poder-se-ia também esperar que ficção baseada nos descobrimentos portugueses ou espanhóis assentasse grandemente no genocídio, violações, conversões religiosas à força, etc., quando é muito mais estético, épico, poético e fica melhor, nos livros de História de cada país, apresentar bravos soldados ou marinheiros, a vencer as fúrias dos mares e a desbravar território em perigosos e exóticos países. Como se fosse possível que a história de uma nação se pudesse sustentar sobre a violência e a barbárie...

«Herói» é uma obra com grande força estética, sem diluir uma estruturação narrativa, assente em flashbacks com vários pontos de vista de uma realidade já consumada (a morte dos três assassinos), desenvolvida, conforme referido, na prossecução do conceito de que tudo e todos se devem submeter a um ideal superior que é a criação da China imperial [4]. A história é contada várias vezes, rashomonescamente – se me é permitido tentar o neologismo –, e Zhang conta com a arte e a técnica de Chris Doyle para compor vários segmentos, dominados por cores específicas (vermelho, azul, branco e verde), conferindo às imagens um certo abstraccionismo poético, isolando vários níveis de realidade. Os trajes desenhados por Wada foram tingidos numa multitude de tons (mais de 50 variações de vermelho, por exemplo) e os momentos para a rodagem de cada plano cuidadosamente seleccionados (para capturar a cor certa nas folhas das árvores ou beneficiar da luz adequada).

O constraste entre a escrita e a guerra (wen - wu) está presente em vários momentos de «Yingxiong»: em cima, um combate na biblioteca; em baixo, as espadas repousam, enquanto se desenham caracteres.
Ainda que Zhang Yimou afirme que «Yingxiong» é um filme “popular”, a obra foge, na sua essência, aos mecanismos clássicos do confronto entre facções do bem e do mal. Aqui, afinal, a solução não passa por vencer, eliminando fisicamente o inimigo, mas por aceitar ou não um ideal patriótico, uma abstracção que justificará os maiores sacrifícios, incluindo a condenação de relações amorosas. A estratificação e o recontar da história gera algum desprendimento emocional do espectador face às personagens, uma vez que podemos ver alguma morrer várias vezes e no final, depois de chegarmos à versão definitiva, acabámos por não as ter acompanhado durante muito tempo, numa linha temporal cronológica.

A acção não deixa de ser um ponto forte do filme e o resultado final decorre, em larga medida, das reais capacidades de Li Lianjie, bem como de Yen Ji-dan, ainda que este tenha uma presença reduzida no ecrã. O duelo entre os dois veteranos, uma década depois de «Once Upon a Time in China 2», constitui um grande atractivo para as audiências conhecedoras do cinema de artes marciais de Hong Kong. O resto do elenco dá também o corpo ao manifesto, com as suas limitações compensadas pela coreografia, enquadramentos e montagem. Cheung, mais ligada ao cinema de “arte e ensaio”, não aceitava um papel num filme de artes marciais desde 1993, ano de «Dung Fong Saam Hap/The Heroic Trio» e da sua sequela (co-realizados por Ching Siu-tung) e «Ching Sau/Green Snake», de Tsui Hark.

Sendo difícil de saber o que realmente se passou durante a produção e montagem do filme, há indícios muito fortes que sugerem o descontentamento de Zhang e dos produtores chineses pelo tratamento dado ao filme pelos distribuidores americanos. Aparentemente, devido à pressão da Miramax, o realizador reduziu a duração em cerca de 20 minutos e, apesar dos rumores sobre a edição da versão mais longa em DVD, vários meses depois do filme ter sido editado no formato digital na Ásia, continuamos à espera de uma confirmação. Outra questão prende-se com a promoção: a estreia foi adiada constantemente e o filme chegou aos Oscars em completo low profile, candidato apenas a Melhor Filme em Língua Estrangeira, enquanto a Miramax investia fortemente em produções suas.

No que toca à questão do desenvolvimento das personagens, haveria espaço para que se criasse outra dimensão e um maior envolvimento com o espectador, quebrando um pouco uma certa sensação de abstracção estética que trespassa mesmo os momentos mais íntimos na interacção entre elas, pelo que deixaria em aberto uma nova revisão do filme na (eventual) versão longa.

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[1] à data da escrita deste texto não foi visionada a cópia portuguesa, pelo que é natural que os nomes sejam traduzidos de modo diverso na legendagem.

[2] Os títulos anteriores de Zhang Yimou têm comentários disponíveis no site: «O Caminho para Casa», «Nenhum a Menos» e «Happy Times».

[3] Wada criou também o guarda-roupa para outro wuxia chinês: «The Bride with White Hair» (1994), de Ronny Yu Yan-tai.

[4] O nome do país usado no Ocidente não tem qualquer similaridade com a pronúncia original (Zhongguo), devendo derivar da primeira dinastia, fundada em 221 A.C., na sequência de factos (naturalmente dramatizados) aqui retratados. Qin corresponde à grafia oficial em pinyin, cuja leitura corresponde a "tchin". Também é frequente grafar-se Chin.

Deauville 2003. DVD de Hong Kong (Edko, R3) com uma boa transferência anamórfica e uma excelente pista sonora multicanal DTS ES. Segundo disco com extras, em boa quantidade, mas algo dispersos. Muitas entrevistas (à base de pequenos clips) legendadas, mas tal não acontece com todo o material.

publicado online em 30/9/03

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