Depois de quase perder a vida num atentado contra uma testemunha que escoltava para o tribunal, o inspector Chan Kwok-chung (Yam) dedica-se a tentar levar perante a lei o criminoso que viu a acusação contra si esvanecer-se, Wang Po (Hung). Sendo informado que possui uma doença possivelmente fatal, Chan vê o tempo a fugir-lhe por entre os dedos; para educar a pequena Hoi Yee (Lau Ching-lam), filha da testemunha assassinada, à sua guarda, e para pôr Wang atrás das grades. Entretanto, o dia da reforma aproxima-se e o seu substituto, Ma Kwan (Yen), prepara-se para assumir o comando.
No seio de uma indústria em crise, «SPL» foi celebrado como um título bem sucedido nas bilheteiras e que não desiludiu os fãs do cinema de acção de Hong Kong. De facto, a coreografia de artes marciais, assinada por Donnie Yen Ji-dan, que igualmente encabeça o elenco, é o principal chamariz. Isso e a oportunidade de ver um Sammo Hung Kam-bo envelhecido — mais maduro diríamos —, ainda em forma e a interpretar um vilão vicioso.
«Sha Po Lang», dirigido e co-escrito por Yip Wai-shun, é um filme feito com o dinamismo das produções de Hong Kong dos anos 80 e 90. Yip parece reforçar tais intenções ao situar a acção no período pré-1997, data da retrocessão do território para a China. O contraste com a generalidade dos produtos recentes é notória: ao invés de utilizar estrelas pop juvenis, o realizador dirige três artistas marciais que não necessitam de duplos para as cenas de combate mais movimentadas: Hung Kam-bo, Yen Ji-dan e Wu Jing.
Tanto Donnie Yen como Jackie Wu (que não surge creditado pelo nome anglicizado) são referenciados como discípulos de Yuen Woo-ping. Yen teve os seus primeiros papéis de relevo, bem como trabalho de director de acção, em filmes como «Tiger Cage» (1988) e «In the Line of Duty IV» (1989), dirigidos por Yuen. Este, por sua vez, contratou o jovem Wu Jing para protagonizar «Tai Chi 2» (1996), um filme de época com uso extensivo (ou abusivo, conforme o ponto de vista) de wireworks.
|
|
Ma (Yen Ji-dan) é o substituto de Kwan (Yam Tat-wah). A zona é controlada pelo criminoso Wang Po (Hung Kam-bo). |
Os dois pupilos de Yuen Woo-ping têm a oportunidade de brilhar num embate explosivo, numa das sequências mais marcantes de «SPL». Surpreendentemente, o combate entre Yen e Wu terá sido improvisado entre os dois, ao longo de toda uma noite (1). Os confrontos físicos, com recurso frequente a lâminas, são realistas e violentos, vindo a justificar uma classificação Categoria III em Hong Kong.
O confronto entre Yen e Hung, a marcar o clímax do filme, era também aguardado com expectativa pelos fãs do cinema de acção feito em Hong Kong. Os dois não são exactamente de gerações diferentes, mas a maior experiência e reputação de Hung intimidariam qualquer um no lugar de Yen. Este, no entanto, é conhecido por ser muito seguro de si (há quem seja menos diplomático e sugira que o actor gosta demasiado de olhar para o seu umbigo).
|
Os dois polícias tentam reunir provas para conseguir colocar Wang Po atrás das grades. |
A coreografia não é inteiramente “realista”, mas Yen reteve-se, como é norma num filme que não seja de época. Ainda que o peso de Hung por vezes pareça metade do que realmente é, a personagem consegue ser credível enquanto lutador experiente e temível. Por outro lado há um ou outro momento em que se dispensava o modo como ele é elevado no ar por Donnie Yen.
Ainda que o argumento não pretenda ser complexo nem, felizmente, espertinho e preocupado em surpreender o espectador com reviravoltas improváveis — como tem sido moda ultimamente —, a direcção de Yip eleva-o para lá de mero filme de acção (e não era nada mau, se se ficasse por ser um bom filme do género). As personagens secundárias estão bem definidas, apesar da reduzida exposição e diálogo, e a oposição entre Chan e Wang Po também funciona bem, sem grande elaborações narrativas. Não sentimos falta de desenvolvimento, sentimos sim que estamos apenas a ver excertos de uma história mais longa.
|
|
Yen e Wu Jing, no papel de um assassino exímio com uma lâmina, nas sequências de acção mais dinâmicas de «SPL». |
O título de três caracteres de «Sha Po Lang» refere-se a estrelas na astrologia chinesa, cada uma delas equivalente às personagens principais (de Yen, Hung e Yam), mas há uma simbologia mais imediatamente palpável pela audiência internacional, assente nas relações entre pais e filhos: a acção principal decorre à noite, durante o Dia do Pai. A data tem importância tanto para polícias como para o vilão e o drama do noir (a tragédia e a violência) cai sobre as personagens quando tentam comunicar ou restabelecer laços há muito interrompidos com pais ou filhos.
Chan quer tanto prender ou eliminar Wang Po, como ter a oportunidade de educar a filha do homem que não conseguiu proteger. Entre os seus homens, um tenta fazer as pazes com o pai e o outro quer aproveitar uma oportunidade rara de ver a filha que há muito se afastou dele.
|
|
Os homens de Ma estão a seu lado mesmo quando se requerem métodos ilegais para realizar os objectivos. |
Por vezes, há personagens que não funcionam por serem mal construídas, mas em certos casos — como aqui — quando se oblitera quase por completo histórias e razões por detrás de uma situação presente tal contribui para maior realismo; afinal, faz mais sentido vermos alguém simplesmente a lidar com um problema, do que assistir a uma pausa artificial para que a personagem debite uma página de diálogo, considerada essencial para fornecer contexto.
Yip Wai-chun consegue assim um bom equilíbrio entre acção e drama. Apreciamos o desenrolar de uma história bem contada, cujo cerne são os obstáculos que se levantam entre pai e filho, bem como a acção, bem coreografada e com momentos de uma intensidade e brutalidade rara no cinema de Hong Kong recente.
Há que ter presente que na indústria local há, tradicionalmente, uma verdadeira simbiose entre realizador e director de acção; este, no caso Yen, controla de facto as câmaras e enquadra os planos do modo que lhe parece mais conveniente. Quando o processo funciona, nem o director de actores arruína a acção (com enquadramentos demasiado próximos ou deixando que uma montagem fragmentada esconda a sua incapacidade), nem o director de acção dá palpites no modo de filmar os momentos mais sensíveis.
O final é típico de um bom noir, ainda que até lá possam surgir situações que pareçam más opções. Note-se que antes do DVD de Hong Kong circularam cópias (legais ou não) com a montagem para o mercado da China continental. Por isso se ler algures um comentário que refira um final ridiculamente feliz e positivo já sabe que estão a falar de um filme algo diferente.
(1) Ver entrevista ao site Kaiju Shakedown. |