|
VHS MIHK (Reino Unido).
|
Macau, depois da Segunda Guerra Mundial. Lo Tung (Hung), por alguma razão também conhecido como “Tung Gordo”, é o líder de um grupo de condutores de táxis a pedais ou riquexós [1], onde se incluem os seus três melhores amigos, Mai Chien-tang (Mok), também conhecido por “Rebuçado de Malte”, “Pudim de Arroz” (Mang) e Shan Cha (Lo). Tung começa a sair com a padeira Ting-ting (Li, que já o era antes de casar com Jet Li Lienjie), para grande infelicidade do mestre Fang (Sun), dono do estabelecimento. Chien-tang conhece, acidentalmente, Hsiao-tsui (Yuen) e tudo parece correr bem para todos, no grande caminho da idílica felicidade. Mas nem tudo são rosas... O vicioso Mestre Yu (Sham), um criminoso dos da pior espécie, que odeia toda a gente, incluindo o próprio pai, vai-se cruzar com Tung e com os seus companheiros.
«Pedicab Driver» é um dos melhores filmes – se não o melhor – da já longa carreira de Hung Kam-bo, reunindo uma série de ingredientes bem diversificados para um resultado surpreendente, num “género” de filme que representa a diversificada mélange ("misturada", em português), que se podia encontrar num filme de Hong Kong, na década de 80. É, ao mesmo tempo, uma comédia, um drama e um filme de artes marciais, conseguindo mudar de um registo para o outro, sem preocupações de coerência, mas sem alhear o espectador. Há humor slapstick, como o duelo de “sabres de luz”, há romance, com um simpático par de casalinhos e os seus passeios ao sol, acompanhado por um pouco de cantopop, há drama intenso, à medida que o filme evolui e – como não poderia deixar de ser, num filme de Hung – há artes marciais, com um conjunto de cenas intricadamente coreografadas.
|
Ting-ting (Li) tem um encontro imediato com Mestre Yu.
|
Algumas sinopses, como a que está no verso da cassete britânica, resumem o filme a uma história de vingança, mal tal só se manifesta no segmento final; até lá temos uma série de quadros dispersos: a comédia ligeira originada no triângulo entre Tung, Ting-ting e o padeiro Fang, as relações amorosas que se desenvolvem ou a introdução que apresenta um conflito entre dois grupos de “taxistas”, e que pode sugerir que tais desentendimentos terão algum relevo narrativo, para além de fornecerem uma simples cena de acção. O tom ligeiro da primeira parte do filme é, de súbito, cortado pela introdução do vilão de serviço, interpretado com requintes de malvadez por Sham Kin-fun, que alterna entre uma caricatura pateta e um ser desprezível e cruel. Sham – que, para além de realizador, assume também posições politicas como activista pró-democracia – é mais conhecido pelas plateias de Hong Kong pelos seus papéis na comédia disparatada, de filmes como os da série «Lucky Stars», também ao lado de Hung, pelo que aqui surge bastante afastado das suas personagens-tipo. Na sua primeira cena, vemo-lo a punir severamente uma prostituta que fugiu de um dos seus bordéis, com um dos seus homens, sendo o casal apanhado durante o trabalho de parto. Não há nada que o comova e o assunto é resolvido de um modo bárbaro, sendo de registar que o comentário final de Yu se revela mais chocante do que a violência crua da luta que o precede. A partir deste momento, o espectador fica de sobreaviso, ficando a saber de que não está bem perante uma simples comédia. Esta cena tem também relevo dramático, pois faz-nos recear o pior, mesmo quando vemos as coisas a correrem bem para alguns dos protagonistas, uma vez que já sabemos o que Yu é capaz de fazer. O mecanismo é muito eficaz, porque acreditamos e desejamos que as coisas corram bem e tentamos esquecer que o mais provável é que uma desgraça se avizinhe.
A componente dramática decorre da relação entre as personagens de Mok Siu-chung e Yuen Kit-ying e a eficácia desta componente não estará só na dependência da direcção de Hung, mas do impressionante trabalho da actriz, tanto nos momentos mais ligeiros, como quando é necessário mostrar sofrimento a sério. Muitos verão o filme apenas pelas artes marciais (e certamente não ficarão decepcionados), mas o impacto da violência é multiplicado várias vezes graças ao desenvolvimento das suas personagens principais e das rotas de colisão entre os inocentes e os que querem virar costas ao passado e o vilão sanguinário, que só pensa no dinheiro que pode deixar de ganhar e despreza completamente a vida humana (o próprio se define como "um animal"; até urina na banheira).
|
Mai, "Rebuçado de Malte", num brutal conflito com os homens de Yu.
|
Yu é um vilão carismático, não no sentido de fazer comentários espirituosos, para o nosso entretenimento, mas porque, apesar de ser um criminoso bárbaro, demonstra um sentido prático avassalador, resumindo toda a sua actuação a critérios económicos (as mortes são geralmente uma compensação por danos causados), como quando convence Tung a deixá-lo em paz e a virar-se sim para o seu homem forte (Chow), uma vez que aquele é, afinal, pago para isso, apontando também responsabilidades ao próprio pai, que acusa de ser responsável por aquilo em que ele se tornou. Talvez para ilustrar esta ligação, o pai de Yu é igualmente interpretado por Sham, recorrendo-se a um duplo (quase, quase parecido com o actor), nas cenas em que ambos os rostos têm de ser vistos.
No que toca às artes marciais, não é à toa que «Pedicab Driver» costuma ser incluído em listas dos melhores filmes do género, mesmo em algumas que englobam tanto obras modernas como da “velha escola”. Podem-se destacar três sequências principais (o filme não tem momentos mortos, mas não está propriamente recheado de acção do início ao fim). O primeiro é o combate entre Hung e Lau Kar-leung (também conhecido pelo mandarim Liu Chia-liang) – um verdadeiro ícone do cinema chinês de artes marciais, veterano realizador e director de acção da Shaw Brothers –, que junta dois mestres de estilos diferentes, sendo de admirar o respeito que o realizador (e a “estrela” do filme, afinal) revela pelo seu oponente e o modo como se ignora o estereótipo de que os “bons”, na sequência de um confronto desta natureza, acabam sempre por apertar a mão no final. A segunda sequência não envolve Hung, mas Mox com os homens de Billy Chow. Para além da coreografia se basear num realismo cru que acentua a violência e as suas consequências (que longe que estamos aqui do combate “slapstick” da cena de abertura!) e de se envolverem machetes (não são cavaquinhos, mas armas brancas com lâminas de uns 30 cm), estamos perante um momento que conduz a um pico dramático, de modo que é difícil separar o prazer de assistir à luta impecavelmente coreografada, da tensão provocada pela violência imposta sobre algumas personagens, em luta pela vida. A terceira referência fica, como não podia deixar de ser, para o clímax. Apesar de haver algum humor (o arroz...), continuamos com violência crua, com pouco embelezamento estilístico, incluindo-se aqui algum trabalho de duplos impressionante, como uma queda do topo de uma escadaria, directa ao chão, em plano contínuo. O confronto entre Chow – um impressionante “artista marcial”, que raramente faz papéis de bom da fita – e Hung é um dos previsíveis pontos altos e não desilude.
|
Tung (Hung) revela-se um inimigo de peso.
|
Hung é por vezes acusado de misoginia, devido à frequente violência contra mulheres que apresenta nos seus filmes, algo que refuta com o argumento da igualdade de oportunidades entre os sexos. Porque é que apenas os homens podem ser estropiados no cinema? Este não será o melhor (pior?) exemplo, apesar de existir uma sequência bastante violenta com uma personagem feminina. Estas preocupações são, por vezes, ridículas. Afinal pode-se fazer um filme onde morre uma centena de homens, das mais variadas formas, e chamar-lhe “um filme de acção”, mas se se apresentar uma mulher a ser espancada violentamente, está-se a apresentar “violência contra mulheres”? Estas preocupações provavelmente têm mais origem em censores do sexo masculino do que em espectadoras de cinema e talvez se possa referir, para ilustrar que o suposto problema não é da classe feminina, que Hung casou com a actriz Joyce Godenzi, depois desta ser muito mal tratada num dos seus filmes.
Imagens da cassete vídeo Made in Hong Kong
[1] O termo "riquexó", é um aportuguesamento da anglicização "rickshaw", que por sua vez corresponde à pronúncia japonesa dos caracteres chineses 人力车, que se lêem "renliche". A palavra traduz-se, literalmente, por "veículo com rodas puxado por força humana".
|