No Período Sengoku (1), um conflito pelo poder divide o Japão feudal. A guerra civil que se prolonga por mais de um século tem consequências sérias, sobretudo para os mais pobres: as terras são abandonadas e é difícil obter alimentos. Duas mulheres, sogra (Otawa) e nora (Yoshimura), vivem numa cabana no meio de um canavial, junto a um rio. O seu modo de vida consiste em matar os samurai feridos e moribundos que por ali passam, para trocarem armas e armaduras por comida. Um dia, Hachi (Sato), um vizinho que tinha partido para a guerra com o marido da mulher mais jovem, regressa, pondo em risco a manutenção da economia familiar.
Shindo Kaneto é autor de uma extensa obra que se iniciou ainda nos anos 50 e se prolongou até esta década. Os seus títulos mais conhecidos — no Ocidente, pelo menos — continuam a ser de há quatro décadas ou mais. Aí se inclui «Kuroneko» (1968) e este «Onibaba», já anteriormente disponíveis em edições vídeo (por exemplo via Tartan, no Reino Unido).
No contexto da sua série Masters of Cinema, a editora britânica Eureka! lançou, nos meses de Julho e Agosto de 2005, três filmes de Shindo: «The Naked Island» (1960), «Onibaba» e «Kuroneko». A organização da colecção, reunião de suplementos essenciais, cuidado nos materiais usados e até o bom gosto das capas, fiéis, tanto quanto é possível avaliar, aos designs originais de cada obra, constituem pontos fortes para apelar aos cinéfilos.
«Onibaba» tem como ponto de partida um texto budista com uma moral bem definida. Ainda que mantendo os elementos essenciais desse conto, canalizados no clímax da narrativa, Shindo não faz assentar o filme na moral religiosa — as suas preocupações são terrenas.
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Sogra e nora atacam soldados para trocar os despojos por alimentos. O regresso de Hachi irá pôr em causa a sociedade. |
A premissa do filme indica um dos temas: a sobrevivência em condições extremas. Quando conhecemos as personagens centrais podemos ficar chocados, porquanto mesmo antes de lhes vislumbrarmos os rostos sabemos que são assassinas impiedosas. Mas o desenvolvimento da narrativa, à luz do contexto histórico, dilui o rótulo (“assassinas”). Pomos de parte os juízos que o filme não pretende fazer.
Com a chegada da personagem de Sato Kei, o desejo sexual assume-se como conceito essencial subjacente ao filme. As ervas altas (“suzuki”) preenchem o enquadramento, ondulando, sem parar, de um lado para o outro, agregando uma simbologia lata: guerra, dualidade, mas também os ímpetos carnais.
A jovem corre ao longo do campo para satisfazer desejos físicos, indiferente a condições atmosféricas e, mais no final do filme, resistindo a outras ameaças. Tal como Shindo nunca reveste com um contorno moral o acto de matar (é um modo de viver), também não se sugerem sentimentos de qualquer espécie entre ela e Hachi (é um modo de se saciarem).
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A nora (Yoshimura Jitsuko) segue os seus instintos e corre pelos campos de suzuki na direcção de Hachi (Sato Kei). |
Shindo Kaneto afirmou-se socialista e o conceito de luta de classes está presente, ainda que acompanhemos quase exclusivamente pessoas no fundo da pirâmide social (se tal expressão faz sentido numa sociedade desagregada, em ruínas). O tema torna-se mais notório nos momentos em que a sogra contracena com o samurai que esconde o rosto por detrás de uma máscara, mas impregna toda a obra: a situação limiar em que os camponeses se encontram tem origem nos conflitos dos poderosos. O período histórico caracteriza-se também por uma revolta de servos contra senhores (apropriando-se de terras, por exemplo) — algo que não é explicitamente abordado, mas que Shindo deverá ter tido presente.
Sendo uma obra que sugestiona ensaios de análise política, sociológica, histórica e até psicológica, «Onibaba» não se contém na componente formal. A óptima composição scope e a fotografia a preto e branco, pontuada por uma iluminação que ressalta as ânsias e os pulsares dos corpos, aliada à música e ao design sonoro dinâmico, dominado por tambores que exacerbam sentimentos primitivos, tornam o visionamento uma refinada experiência sensorial de grande cinema.
Filme espartano, rodado num cenário minimalista — um rio, ervas altas, cabanas, uma caverna —, num mundo cruel e violento, onde a realização dos instintos primários não deixa espaço para o amor, contém, ainda assim, uma visão optimista sobre a capacidade de sobrevivência da humanidade.
(1) Sengoku-jidai ou “Período dos Estados Guerreiros”, de meados do Século XV até ao início do Século XVII. Vd. Wikipedia para mais informação.
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