Uma aldeia tailandesa entra em crise quando, durante a celebração de festividades locais, Don (Siriput), antigo habitante da povoação, rouba a cabeça de Ong Bak — uma estátua de Buda. Ping (Yeerum, já com o nome Tony Jaa preparado para o mercado internacional), atleta especialista em boxe Muay Thai, parte para Bangkok à procura de Don e da relíquia, onde tenta obter a ajuda de outro conterrâneo, George (Wongkamiao) e de uma jovem chamada Peng (Wacharakun). George tem pouco amor às memórias da terra natal e evita Ping, até perceber que pode ganhar alguma coisa com as suas extraordinárias capacidades atléticas. No rasto do ladrão, o protagonista envolve-se em combates ilegais que gerem quantias astronómicas em apostas.
«Ong Bak» é um dos filmes de acção mais falados e aguardados dos últimos anos. A sua fama foi-se construindo à medida que a palavra se ia espalhando e o hype se ia solidificando. Luc Besson, atento, adquiriu os direitos de distribuição para os EUA, Europa e Austrália. O notório desejo de Besson de "ser" Hollywood parece estar a subir-lhe à cabeça, uma vez que achou conveniente "melhorar" o filme para o mercado “ocidental”. De acordo com o jornal Libération e o site HKCinemagic.com, o realizador e produtor francês cortou o filme em sete minutos, visando uma montagem mais rápida e despida de “humor étnico”. O Libération fala em "effets scratch et rap", numa banda sonora aparentemente composta por Cut Killer, um marroquino que já trabalhou anteriormente com Besson. Por aqui deduzimos que não são apenas os estúdios americanos que pensam que o público "ocidental" não consegue apreciar as obras "orientais" tal e qual como são feitas. O jornal francês, anteriormente citado, também coloca uma questão interessante, que é o facto do júri da secção Action Asia do Festival de Deauville — onde estivemos o ano passado e onde lamentamos não ter regressado — ser presido por Gérard Krawczyk, («Wasabi», «Fanfan La Tulipe» e os «Taxi» são produzidos por Besson) e integrar ainda o referido músico, Cut Killer, Mary Gillard (actriz n' «O Quinto Elemento» e Moebius (designer desse mesmo filme). O jornal questiona assim o conflito de interesses por parte de alguns membros do júri e o valor do prémio atribuído a «Ong Bak».
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Ping é um rapaz muito espiritual, mas que se vê envolto em circunstâncias que o obrigam a correr e a partir alguns ossos.
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Até ao momento desconhecem-se edições em DVD com legendas em inglês; o filme foi editado na Tailândia, onde a maioria dos DVDs inclui legendagem em inglês, e na Malásia apenas em VCD, no momento da escrita deste texto. Se a informação que refere a extensão territorial dos direitos adquiridos por Besson estiver correcta, e se a distribuidora não tiver negociado um contrato que vede a legendagem em inglês em edições asiáticas, poderemos esperar uma edição em Hong Kong para breve. Por outro lado, o filme foi exibido em Sitges [vd. análise], já adquirido para Espanha pela Manga Filmes, na sua versão original, de modo que não será irrealista esperar por uma edição com legendas em castelhano e sem hip hop.
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Dar demasiada importância ao hype só serve para provocar desilusões. Quando entrámos no enorme auditório do Hotel Meliàs Gran Sitges para a projecção, já tínhamos lido e ouvido muito sobre o filme, de modo que talvez existissem condições para sairmos de lá desiludidos. Pessoalmente, não creio que o hype me afecte em grande medida. Esperar muito ou pouco de um filme não impede que o aprecie tal e qual se me apresenta. Em todo o caso, não houve tempo para desilusões; é um filme popular, de acção, com um argumento minimalista, assente nas capacidades físicas do actor principal, Panom Yeerum. Há muitas formas de apreciar um filme e não podemos deitar a uma obra desta natureza o mesmo olhar que deitamos a, digamos, um filme intimista iraniano. É difícil que «Ong Bak» desiluda, pois quem o for ver já deverá ir preparado para um filme de acção “puro e duro”, brutal, sem complexidade narrativa. Não nos engana, não entra por caminhos de humor tolo, nem tenta rechear o argumento com dramas rebuscados à última hora ou lições de moral artificiais, que tentem “justificar” 100 minutos a partir ossos.
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Panom Yeerum é um performer extraordinário. Aqui é difícil utilizar o termo “actor”, porque não lhe é exactamente solicitado representar, mas antes executar algumas proezas físicas absurdas, sem o recurso a efeitos visuais, CGI ou cabos. Ele corre rua fora, salta por cima de carros em movimento, rodopia por entre duas lâminas de vidro separadas por dois palmos de distância, salta por cima dos seus oponentes e caminha sobre as suas cabeças. A acção corpo-a-corpo, o boxe Muay Thai, não é menos impressionante. O filme demora uns 15 minutos a aquecer, mas depois mal se detém para recuperar o fôlego. A primeira intervenção de Ping é curta, brutal e eficaz, mas os cineastas conseguem manter o impacto nos confrontos que se seguirão, e que incluem o actor a lutar com as pernas em chamas ou a aplicar golpes de joelho e cotovelo ao mesmo tempo, em pleno ar, no desgraçado de um opositor. A violência dos golpes faz-nos questionar se muitos dos actores/duplos não terão ido directos para o hospital e se o filme não andará perigosamente perto do território do snuff!
«Ong Bak» relembra-nos a produção de Hong Kong, de meados dos anos 80, e algumas das coreografias mais duras de Jackie Chan e Sammo Hung Kam-bo, interpretadas por alguém como Yuen Biao, que executava as mais aparatosas proezas físicas, com uma energia e flexibilidade sobre-humanas, ou para as acrobacias do próprio Chan, que incluíam saltos e quedas quase suicidas. O filme de Prachya Pinkaew recupera, em larga medida, o espírito desses filmes, centrados nas capacidades reais de um conjunto de destemidos artistas e na utilização de duplos como extras a actores secundários, aptos a serem bons sacos de pancada, de modo a conferir um grande realismo às cenas de acção. A estrutura narrativa também não anda longe, criando-se uma motivação para mover a história de uma cena de acção para outra, com a vantagem de não termos uma pandilha de comediantes a fazer tolices como na série “Lucky Stars”, onde se intercalava uma elaborada sequência de combate com Chan, Yuen ou Hung, com piadas infanto-juvenis.
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Enquanto se aguarda a oportunidade de rever «Ong Bak», não se pode evitar um certo gosto amargo com a antecipação da eventual cópia portuguesa vir da parte de monsieur Besson, o Harvey Weinstein europeu. Se assim for, que venha um bom DVD asiático com legendagem em inglês (e que nos acusem de não apoiar o produto nacional). Por outro lado, também é verdade que, neste filme, os diálogos não são muito importantes e que o argumento linear não será exactamente impossível de se decifrar sem legendas, pelo que se os apressados sempre poderão tentar a edição tailandesa, cujo preço reduzido deverá compensar a esperada qualidade limitada.
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