Entre 1986 e 1991, várias mulheres foram encontradas mortas na província de Gyeonggi, na Coreia do Sul (1). O autor dos crimes nunca foi descoberto. O filme apresenta o inspector Park (Sang) a conduzir uma investigação que peca pela quase total desorganização. Numa altura em que manifestações regulares nas ruas apregoam o final da ditadura, os métodos de interrogatório tendem a ignorar direitos dos suspeitos e os meios à disposição das forças de investigação são, de um modo geral, arcaicos. O inspector Seo (Kim Sang-kyeong), vindo de Seoul, junta-se à equipa, trazendo uma nova perspectiva e uma atitude mais moderna, opondo os seus métodos científicos à “intuição infalível” de Park.
Vencedor de vários prémios internacionais incluindo o Grande Prémio do Festival do Film Policial de Cognac, França, e Melhor Realizador em San Sebastian, Espanha.
Bong Jun-ho assinou em 2001 o inclassificável «Peullandaseu-ui Gae» [«Barking Dogs Never Bite»], um dos mais emblemáticos títulos da recente produção do cinema sul-coreano, mas que não convenceu o público a afluir às salas. Tendo em conta o conceito — crimes cujo autor nunca foi descoberto e punido —, «Memories of Murder» não parecia mais apto para atrair as audiências. É natural que qualquer obra assente em realidades históricas contenha uma grande dose de dramatização; continua a ser ficção, mesmo que se introduza com o chavão "baseado em factos reais". Mas uma coisa é dramatizar, outra é criar uma realidade alternativa. Se Bong "resolvesse" o mistério, o filme perderia boa parte do impacto que decorre da relação dos sul-coreanos com este episódio marcante do seu passado recente. Por outro lado, seria difícil construir um filme de mistério envolvente, quando se sabe como não vai terminar. Nunca se poderia desenvolver a narrativa com base num eixo que fosse um puro whodunit. A identidade do assassino teria de se remeter para um plano secundário.
Em «Barking Dogs Never Bite», Bung Jun-ho revelou-se tão interessado na história e nas suas personagens como na linguagem cinematográfica usada para a ilustrar. Tratando-se de uma primeira obra, poder-se-ia esperar alguma insegurança da parte do realizador, reflectida num desequilíbrio entre as vertentes formal e substancial, mas tal não veio a suceder. A direcção é firme e não se perde em devaneios formais ou brincadeiras com o meio que ponham de parte o texto. Numa segunda obra, haverá menos tendência para querer mostrar habilidade ou um estilo próprio. «Memories of Murder» não foge a tal regra, mas a sua maior sobriedade decorre, naturalmente, do material-base. Câmara e montagem são exímias ao serviço das necessidades dramáticas, algo que se pode constatar na utilização dos planos-sequência, sobretudo aquele que introduz a acção e nos coloca no meio do mais puro caos, no local onde se encontrou um corpo, rodeado de mirones e onde nenhum agente de investigação parece capaz de cumprir a sua função com o mínimo de competência, de modo a preservar a integridade da cena do crime.
«Salinui Chueok» não almeja ser um thriller pós-moderno; Bong Jun-ho não se rege pelas estruturas e pela linguagem de género. Não a respeita, nem se preocupa em evitá-la. Parte de uma moldura mais vasta, traçando um retrato da Coreia do Sul rural de meados dos anos 80. As especificidades económicas e sociais da época reflectem-se aqui: a indústria pesada está em força e é o principal motor da economia, fazendo-se notar fortemente mesmo num meio rural onde a agricultura é essencial para o sustento de uma franja da população. É um cenário de gente simples, mas onde se sente algum conforto e bem-estar económico. A nível tecnológico, a Coreia do Sul ainda não estava na posição de destaque a nível internacional que ocupa nos dias de hoje e tal reflecte-se nos meios disponíveis para a polícia, que, a dada altura, necessita de uma análise de DNA que tem de ser requerida aos EUA. Na realidade, foi para o Japão que se remeteram as amostras, mas procura-se assim uma maior coerência com a dramatização e com as constantes referências à América como potência económica e ao FBI como paradigma de polícia de investigação moderna, com todos os meios ao dispor.
Além do contraste entre o arcaísmo da investigação dos polícias coreanos e os métodos modernos do FBI, estabelece-se uma oposição mais tradicional e familiar dentro do subgénero do filme policial, colocando lado-a-lado um investigador da cidade, com formação e cultura modernas, e um detective que se orgulha de usar a intuição para desvendar crimes. Park, interpretado por Song Kang-ho, revela uma suposta capacidade para descobrir um culpado olhando-o nos olhos. Não temos informações sobre a sua carreira, mas seria interessante saber qual a sua taxa de sucesso. Este elemento poderá ser dramatizado — o “olhar” é constante ao longo do filme —, mas membros da força policial terão, a dada altura, recorrido realmente aos préstimos de um médium.
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Depois de seguirem uma pista nova os inspectores confrontam um suspeito. |
Ao longo de duas horas, Bong doseia o ritmo da acção, admite humor que não entra em conflito com o registo de um filme que se leva a sério, e prepara-nos para um ou outro cliché, para depois seguir outro caminho. As câmaras abstêm-se de intricados malabarismos, a acção reduz-se a uma ou outra correria, pontuada por uma banda sonora que se entusiasma nos momentos certos; não há tiroteios nem cenas de pancadaria "coreografadas", mas não se deixa espaço para momentos mortos. Com «Memories of Murder», Bong Jun-ho surge como o autor de duas obras incontornáveis no contexto da cinematografia sul-coreana moderna.
(1) Gyeonggi-do situa-se no centro-oeste do país e engloba a capital Seoul e a cidade portuária de Incheon.
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