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Sozinho no seu apartamento desarrumado, Kawajiri Sho (Eita) é acordado pelo pai, que não via há dois anos. Traz com ele uma caixa com cinzas de uma tia de Sho, Matsuko, 53 anos, encontrada morta junto ao rio. Assassinada. Sho não sabia da existência da tia, renegada pela família três décadas atrás. O pai pede-lhe que limpe o apartamento decrépito de Matsuko, que teve, segundo ele, “uma vida inútil”. A partir daí, e das pessoas que com ele se vão cruzando, Sho acompanha o espectador por vários flashbacks que ilustram a vida da tia desde a sua infância.
Os verdadeiros problemas de Matsuko (Nakatani) começam aos 23 anos, quando é professora de música num liceu e assume a culpa de um furto numa estalagem por um estudante, mas a sua instabilidade emocional é fruto das relações no seio da família, centradas na irmã, Kumi (Ichikawa), e na doença que a confina ao quarto. Deixando o emprego e a casa dos pais, Matsuko passa por relações desastrosas com homens que a maltratam, enquanto muda constantemente de local e de ocupação; de professora a cabeleireira a prostituta, de namorada de um yakuza a presidiária.
«Memories of Matsuko» é um filme facilmente associável à longa-metragem precedente de Nakashima Tetsuya, «Kamikaze Girls» («Shimotsuma Monogatari»), pela histeria estética assumida, as cores vivas e os comportamentos extremos das personagens. O tom é diferente, pois «Kamikaze Girls» pode definir-se como comédia, sem grande discussão, enquanto «Natsuko» é uma adaptação de material melodramático – um best-seller de Yamada Muneki.
Nakashima, no entanto, optou por evitar tratar o texto da forma que seria mais natural e previsível; ao invés, filma muitos momentos como comédia, e recheia o filme com números musicais em registos distintos, com algumas evocações de clássicos de Hollywood, a compor uma atmosfera de “conto de fadas” (ainda que decadente e deprimente). A envolvência emocional sai reforçada pela forma atípica – subversivamente colorida, idílica, doce – , com que se tratam e integram os elementos dramáticos, tornando «Memories of Matsuko» um melodrama intenso e inolvidável.
Imersa numa profunda frustração, Matsuko culpa a irmã por todos os seus problemas. Em casa, sente-se preterida, sobretudo pelo pai, que parece dar todo o amor que tem à filha mais nova. A sua recordação mais forte de criança é uma rara visita a um parque de diversões, onde o pai a levou. Nem tudo tem o valor facial, do que as personagens expressam de forma emotiva e, por vezes, histriónica. Matsuko tem uma ligação forte com a irmã – mas passa a expressar o seu amor quase sempre como se se tratasse de ódio – e o pai não despreza a filha mais velha, antes lhe canaliza um tipo de atenção diferente, condicionado pela doença e fragilidade desta.
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A vida aborrecida de Kawajiri Sho (Eita) piora quando a namorada (Shibasaki Kou) o abandona. |
Nakashima enquadra uma imagem que simboliza esta relação, com Matsuko criança: o pai chega a casa com um presente. Matsuko aproxima-se, sorridente. O pai atira-lhe a mala para as mãos e dirige-se com o presente para o quarto de Kumi. Neste e em outros momentos, parece que há prazer em mostrar o sofrimento da personagem, mas é preciso interpretar os códigos formais do realizador.
«Memories of Matsuko» está repleto desses momentos “difíceis”, peculiares, em que a câmara se parece rir da personagem. Imagino que poderá ser estranho assistir ao filme numa sala de cinema cheia se a maior parte da assistência interpretar ou reagir ao filme de forma completamente diversa da nossa. O realizador talvez pretenda também pôr-nos à prova, testar a nossa empatia, com base no modo como reagimos. Estamos prontos para rir dos infortúnios da personagem central ou, apesar dos códigos aparentemente errados, empatizamos com ela?
Não está em causa se estamos perante construções artificiais e “manipulativas” (claro que sim), mas se essas construções funcionam a nível dramático. Toda a ficção é uma construção (artificial) e esse pendor é, necessariamente, mais forte no plano da fantasia. A estética de conto de fadas e de musical, que, numa primeira análise, vai contra o registo que o material original sugeriria é, afinal, uma emanação do desejo forte de Matsuko de conseguir ser feliz, num mundo onde parecem estar reunidas todas as condições, e mais algumas, para que o não seja.
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Sho encontra com uma porn star (Kurosawa Asuka, em multi-ângulo) amiga de Matsuko. A t-shirt diz: "Eu respeito o meio ambiente" (em português). |
Há momentos que poderão ser descritos como kitsch, mas que conseguem estabelecer uma forte ligação emocional da personagem à audiência. As preferências do público de festivais como o FEFF, de Udine, o New York Asian Film Festival e o canadiano Fantasia refletem-no 1, bem como o registo de plateias emocionadas de volta dos pacotes de lenços de papel. Visionado em público, «Matsuko» é um embaraço para muitos homens.
Nakashima usa o “kitsch” ou, talvez mais correctamente, os exageros cénicos e dramáticos do musical para exprimir sentimento por vezes opostos. Um número musical pode acompanhar a exultação da alegria (fugaz) de Matsuko, quando esta vira uma nova página na vida – uma nova profissão, nova relação, etc. –, mas o registo não se altera quando surge mais uma desgraça: o júbilo formal, da linguagem de cinema, assume assim contornos de amarga ironia. Podemos ilustrá-lo através de duas sequências.
A primeira, a delirante “Happy Wednesday”, que arranca como um comercial a um supermercado, repleto de donas de casa com um look América anos 50, acompanha Matsuko até a um novo idílio doméstico. Mas a heroína dura pouco como doméstica, uma vez que a sua casa é a nº 2 do seu amante. Mas a música continua enquanto Matsuko visita a casa da rival, a esposa legítima, e pergunta se é ali “a residência dos Kawajiri”. O momento que potencia a possível “destruição” de um lar, termina com Nakatani Miki a saltitar e a cantarolar, ostentando o seu sorriso de musical.
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Maltratada, Matsuko encontra-se com o irmão no parque de diversões onde o pai a levou, em criança. |
Uma outra sequência, em que Matsuko caminha sob um canteiro de flores que preenche a parte inferior do enquadramento, acompanhada por passarinhos saídos da «Cinderella» da Disney, tem uma réplica em versão down com a personagem a arrastar uma mala, mal-tratada e a coxear, mas ainda sob o mar de flores e acompanhada pelos mesmos passarinhos que parecem agora fora de contexto.
São nestes momentos que nos podemos questionar se Nakashima gosta da personagem ou se está a rir dela, mas são também aqueles em relação aos quais o realizador diz ter querido confundir a assistência ou obrigá-la a interpretar e reagir de acordo com aquilo que sente, que derivará das experiências da vida de cada um. Ou seja, alguns destes momentos podem ser vistos como uma tragicomédia por uns e com simples gozo por outros.
A experiência da actriz Nakatani Miki («Chaos», «Rikidozan») durante as filmagens foi muito difícil, devido à relação com um realizador com fama de ser muito exigente e de repreender constantemente os actores. Nakashima não é um realizador que goste de dar espaço para improvisos; tem ideias específicas e exige que as realizem na perfeição. No making-of (disponível no DVD de Hong Kong), Nakatani está pouco presente, e, no final, afirma que não quer voltar a trabalhar com ele, não quer voltar a vê-lo, mas está contente por tê-lo conhecido. Nakashima manifesta o desejo de voltar a trabalhar com ela, mas receia que a actriz recuse o convite.
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Dois números musicais coloridos de «Memories of Matsuko». |
Houve quem comparasse «Memories of Matsuko» a «Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain» e há uma breve sequência que remeterá para «Magnolia», com várias personagens a cantarem uma linha de uma canção, mas falar do filme de Nakashima Tetsuya requer mais do que simplificações formais ou comparativos redutores baseados em tais referências. É uma obra visualmente excessiva, mas há método em toda a loucura, em todas as transições e na confusão dos sinais emocionais que são enviados para o espectador. Obra fulgurante, musical, comédia, melodrama, resulta em todas essas vertentes, sem deixar de manter uma surpreendente coerência formal e narrativa e sem que deixemos de nos importar com o destino de Matsuko.
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(1) No Fantasia, «Memories of Matsuko» ganhou ainda Melhor Filme. Os prémios do público foram dois Prémios de Bronze nas categorias de Melhor Filme Asiático e Filme Mais Inovador (Groundbreaking).
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