Michi (Aso) e os colegas de trabalho de uma florista de Tóquio estranham a ausência de contacto por parte de Taguchi (Mizuhashi), de quem esperam a entrega de uma diskette. Michi decide visitá-lo. Ryosuke (Kato), um estudante universitário, liga-se à Internet com algumas dificuldades (o Windows é um verdadeiro quebra-cabeças, como o leitor deverá saber). O seu computador parece querer ligar-se sozinho a um “Quarto Proibido”, onde se vêem pessoas sozinhas, a comportar-se de modo estranho, por vezes com os rostos cobertos por sacos de plástico pretos. “Gostava de conhecer um fantasma?” Intrigada com a situação, Harue (Koyuki), uma estudante com experiência na área, oferece-se para ajudá-lo. Muitas pessoas começam a desaparecer na cidade, bem como em outras partes do Japão. Os suicídios aumentam.
«Kairo» coloca uma questão que pode fazer recordar algum filme clássico de zombies: o que aconteceria quando não houvesse mais espaço no inferno para os mortos? Ao contrário dos filmes de mortos-vivos, «Kairo» não lida com corpos reanimados desejosos de fazerem festins com seres humanos, mas sim com entidades incorpóreas. (Há um outro ponto de contacto com os filmes de zombies, mais para o final do filme, que talvez seja desnecessário especificar.) A Internet é um bom meio para ilustrar este ponto de partida. À frase que diz que “na Internet podias ser um cão, que ninguém daria por isso”, poder-se-ia acrescentar que alguém com quem contactamos poderia, porque não?, ser um fantasma (isso explicaria determinados sites, com muito pouca vida, raramente actualizados, etc.)
Kurosawa arrisca a fusão entre elementos tecnológicos com que todos estamos familiarizados e o tradicional filme de fantasmas. Por tradicional, não se deve entender um vulto tapado com lençol branco e correntes, como é óbvio. O ambiente e a mecânica visual assemelha-se ao que pudemos ver noutros títulos de produção asiática recente. Os fantasmas não andam por ali a chacinar ou a possuir pessoas, preferindo antes mexerem-se pouco. Quem viu «Ring» (1998), de Nakata Hideo, terá uma ideia próxima do modo de filmar a “acção” sobrenatural em muitos destes títulos produzidos nos últimos anos, apesar dos dois filmes não terem grandes pontos de contacto, para além do conceito referido. Também se poderá esclarecer que, aparte a temática da consciência incorpórea que vive (eventualmente) numa rede digital, não há qualquer semelhança entre «Kairo» e o filme de animação de Oshii Mamoru, «Ghost in the Shell/Kokaku Kidotai» (1995).
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Em «Korei [Séance]» (1998), Kurosawa integrava os espíritos num ambiente moderno e realista, podendo surgir junto de pessoas banais, num banal café da vizinhança. «Kairo» cria uma atmosfera completamente diversa, com uma cidade negra, desolada, muito diferente da imagem que normalmente temos da metrópole japonesa. Alguns planos com fábricas abandonadas fizeram-me inclusive recordar de «Eraserhead» (1978), de David Lynch, e este filme não deixa de conter uma boa dose de surrealismo, com alguns acontecimentos apresentados numa sequência que nem sempre nos permite seguir uma linha lógica e sem muito tempo dedicado a explicações científicas ou metafísicas sobre a origem dos acontecimentos. As razões acabam por não nos preocupar muito quando, em muitas ocasiões, temos dificuldade até em saber o que é que está a acontecer. Tal mecanismo contribui para uma sensação de estarmos perdidos no meio de um local desconhecido, sem saber o caminho para casa, ou simplesmente num pesadelo (o que o citado filme de Lynch reproduz na perfeição). O que não vemos e o que não sabemos acaba por ter um contributo tão importante para a criação da atmosfera de horror, e para nos fazer sentir incomodados, como aquilo que nos é exposto defronte dos olhos.
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Tal como outros filmes do género, a banda sonora de «Kairo» é cuidadosamente elaborada, com a finalidade de ampliar a sua atmosfera surreal e de constante inquietação. É um caso em que o ruído é tão ou mais importante do que um acorde musical. Não deixa de ficar a sensação de que a duração do filme poderia ser ligeiramente encurtada, pois chegamos a um ponto em que não precisamos de ser convencidos de mais nada, mas a acção prossegue como se desejasse desenvolver um epílogo a qualquer custo. Há um conjunto de sequências de considerável impacto, que dependem normalmente da “focagem” e de pré-disposição do espectador e um momento particular, em plano contínuo, que pode provocar uma daquelas reacções “como raio é que fizeram aquilo?” [utilização muito subtil de CGI, será a resposta] e convidar a retroceder a imagem (daí a vantagem de poder ver o filme numa sala de cinema).
«Kairo» poderá ser encarado como uma metáfora sobre o isolamento em que os cidadãos do mundo moderno cada vez mais se embrenham, à medida que a tecnologia ocupa cada vez mais o tempo das suas vidas, o qual anteriormente seria preenchido com actos de socialização directa ou, por um prisma diverso, sobre o simples medo da solidão (“toda a gente morre sozinha”, para citar, talvez pouco a propósito, «Donnie Darko»).
Este não é o tipo de obra que potencie interpretações impressionantes, dado o registo lento e introspectivo, mas tem um bom elenco, sendo de anotar a presença de Yakusho Koji (num papel relativamente pequeno), presença habitual de outros títulos de Kurosawa e também conhecido de filmes como «A Enguia» e «Água Quente sob a Ponte Vermelha», de Imamura Shohei, e a intérprete da personagem feminina principal, Aso Kumiko, de «Kanzo Sensei», do mesmo realizador, e «Ring 0», de Tsuruta Norio.
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